quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

Nova Década.

Quando se abrem as portas que o medo ocultou, o horizonte fica mais respirável. Mesmo que o ano velho seja uma abstração, a verdade é que a fragmentação artificial do tempo abre sempre novos apetites para abrir as asas. Há quem veja na passagem de ano apenas a sucessão de um dia, neste caso, eu vejo o início de uma década.

Pensar a dez anos a existência, pode não ser muito confortável, mas dá-nos a possibilidade de esticar o otimismo e de acertar o passo com as promessas adiáveis. Se no trabalho isso funciona, no amor o assunto é mais sério. Não deixe que a sua paixão lhe fuja na esquina. O melhor é viver a década de mãos dadas. 

António Vilhena

terça-feira, 23 de julho de 2019

Centenário do poeta João José Cochofel (1919-2019).

O poeta João José Cochofel nasceu em Coimbra a 17 de Julho de 1019. Passam, por isso, este ano, cem anos do seu nascimento. Sabe-se ainda pouco sobre este homem que morou na Rua Doutor João Jacinto, em Coimbra, na Casa do Arco, ali perto da Sé Velha, em frente à Torre de Anto, associada a outro poeta, António Nobre, autor do “livro mais triste de Portugal”, SÓ. É preciso que se conheça este homem generoso que defendia com a mesma determinação as pessoas, os animais e as árvores. Nasceu no seio de uma família aristocrata, o seu bisavô, o Doutor João Jacinto, era lente de medicina, pessoa muito respeitada e reconhecida em Coimbra e no país, tendo sido homenageado em diversas circunstâncias. 

A Casa do Arco, proprietária dos Viscondes do Espinhal, foi comprada em 1883 pelo seu bisavô, tendo permanecido como a casa da família até 2003, em que foi adquirida pela Câmara Municipal de Coimbra, tendo sido requalificada em 2010, e devolvida à cidade como espaço cultural, conhecida, hoje, como Casa da Escrita. O poeta João José Cochofel faleceu, em Lisboa, com 63 anos (1919-1982). Mas que importância tem este poeta? Para Coimbra tem uma relevância extraordinária, porque foi cúmplice da utopia de um coletivo de homens empenhados que viviam na cidade com ligações estreitas a outros escritores que prosseguiam uma transformação da sociedade. E era na sua casa, na rua com o nome do seu bisavô, João Jacinto, que se encontravam Joaquim Namorado, Fernando Namora, Afonso Duarte, Carlos de Oliveira, Álvaro Feijó, Vitorino Nemésio, Fernando Lopes Graça, José Gomes Ferreira, Mário Dionísio, Eduardo Lourenço, Mário Soares e Maria Barroso.

Esta geração de homens, com sólida formação social, frequentavam a casa do poeta, unidos e empenhados, através das Artes, nomeadamente, da Literatura, em operar um debate de ideias que mudasse a situação em Portugal. Para isso recorreram à edição de livros e de revistas. João José Cochofel foi um dos principais responsáveis e fundadores das revistas Vértice, Presença, Altitude, Seara Nova e Gazeta Musical e de Todas as Artes. Integrou a geração de escritores do neorrealismo como poeta e crítico. Foi muito mais do que isso, foi um fraterno anfitrião do aconchego, acolheu na sua casa amigos e próximos, não lhes regateando o essencial, principalmente, a solidariedade da família. 

A Academia sabia onde o encontrar para ouvir os seus conselhos ou para solicitar a sua disponibilidade para as suas lutas. A sua ligação muito forte a Joaquim Namorado, referência política e ideológica de uma geração comprometida, haveria de condicionar a sua poesis, através de uma certa cortina dual que se antecipa no seu livro “Emigrante Clandestino” (1965). A ainda difusa inquietação do Eu poético surge nos versos “Vem aí a manhã / Para que quero eu / a manhã que vem?”.

O poeta, segundo Fernando Guimarães, fez a sua iniciação no número 52 (Julho de 1938) da revista Presença com três poemas: “Posse”, “Paraíso Perdido” e “Tardes”. Curiosamente, apenas “Paraíso Perdido” não foi excluído do seu filtro, tendo sido publicado em “Búzio” (1940), com pequenas alterações. João José Cochofel reuniu as suas obras poéticas em “46º Aniversário” e “O Bispo de Pedra”. Assim, em “46º Aniversário” temos: “Instantes” (1937), “Búzio” (1940), “Sol de Agosto” (1941), “Os Dias Íntimos” (1950), “Quatro Andamentos” (1964) e, ainda, o inédito “Emigrante Clandestino” (1965).  Em “O Bispo de Pedra” agrupou as obras “Uma Rosa no Tempo” (1968) e “Água Elementar” (1975). O livro de “Críticas e Crónicas” (1982), é publicado no ano da sua morte. 

É obrigatório lembrar a coleção de livros com orientação estética neorrealista, chamada Novo Cancioneiro, que foi editada em Coimbra entre 1941 e 1944: “Terra” (1941), de Fernando Namora; “Poemas” (1941), de Mário Dionísio; “Sol de Agosto” (1941) de João José Cochofel; “Aviso à Navegação” (1941), de Joaquim Namorado; “Os Poemas” (1941), de Álvaro Feijó; “Planície” (1941), de Manuel da Fonseca; “Turismo” (1942), de Carlos de Oliveira; “Passagem de Nível” (1942), de Sidónio Muralha; “Ilha de Nome Santo” (1942), de Francisco José Tenreiro e “A Voz que Escuta” (1944), poemas póstumos de Políbio Gomes dos Santos. Foi esta geração que modelou a vida e a obra do poeta de que se comemora o centenário do seu nascimento. Deram expressão a uma literatura de sopro marxista, opondo-se a uma claustrofobia social. José João Cochofel foi um dos mais puristas da língua, exercitando a lapidação da palavra poética, “depurando o discurso” e oferecendo ao leitor uma luz onde a transparência da modernidade deixava adivinhar uma intimidade quase clandestina. 

Na biblioteca de Cochofel era fácil encontrar quase tudo, talvez, por isso, a sua imensa cultura e conhecimento sobre o que se escrevia e pensava na Europa, permitia-lhe que “estivesse na posse dos segredos do respetivo fabrico”, praticando um humanismo num vocabulário que o levaria à “descoberta que a arte implica”. O poeta perseguia a estética em busca da “Água Elementar”, a trilogia: melodia, ritmo e acompanhamento. Resgato um fragmento do poema excluído “Cidade provinciana”: Há belezas inexprimíveis / nesta cidade provinciana. // É nesta cidade que hoje me enternece / e outras vezes me enche de tédio, / de revolta. // Que poesia / entretanto existe / nas coisas nulas!



António Vilhena

terça-feira, 9 de abril de 2019

O palácio de Fídias.


Madona tem o meu palácio para receber todos os seus cavalos, inclusive, os que são à prova de cheiro, sem ferraduras e trapezistas treinados para não exercitarem o coice. Ofereço-lhe ainda uma espécie de passaporte especial, um livre-trânsito para cavalos, como o que Bolsonaro ofereceu a Trump para os americanos. As lamúrias de Madona, as queixas por tamanha ingratidão, comoveram-me. Eu gosto de Madona, gosto mesmo, sempre que posso vou ver os seus concertos – guardo todos os bilhetes como um bom fã. Acho que Madona tem grande responsabilidade no fluxo de turistas que descobriram Portugal. Só por isso é merecedora de uma comenda. Há uns anos ninguém imaginaria que Madona viveria em Portugal. Seria chamado de louco o que se atrevesse a colocar essa hipótese. 

A “rainha da pop” está triste e pensa abandonar o país, porque o Presidente da Câmara de Sintra impediu que um cavalo entrasse num palácio com 115 anos. O cavalo estava no guião para o seu novo videoclip. O peso do cavalo e o piso de madeira do palácio não são compatíveis – eis a razão para tamanho impedimento! A idade do palácio não deve ter sido o motivo principal. A idade dos palácios conta para estas modernices. Vejamos o que aconteceu com o Pártenon. Foi construído entre 480 e 323 a. C, em Atenas, durante o reinado de Péricles. Mas durante o cerco dos venezianos que atacaram Atenas, em 1687, os otomanos usaram o edifício como paiol de pólvora. 

O resultado foi catastrófico: explodiu e caiu a cobertura e 28 colunas. Quando Péricles convidou o maior escultor grego, Fídias (490 – 432 a.C.) como responsável por esculpir o friso do Pártenon com 160 metros e 378 figuras, entre as quais belos cavalos, nomeadamente, no friso ocidental, não era expectável que cavalos e pólvora cultuassem Atena. O Cavalo de Tróia ditou a orientação da guerra a favor dos gregos. Nesta contenda de Madona e Prefeito não sabemos como vai acabar, mas sabemos que não se pode agradar a gregos e a troianos. Imaginemos um elefante numa loja de cristais da Vista Alegre? Não é fácil. Coloquemos a hipótese de Madona querer colocar um cavalo na Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra. Há limites e o “dinheiro não paga tudo”. 

Vou convidar Madona para um evento literário. Não se riam. Acho que ela vai aceitar. Conheço palácios, onde os responsáveis deixam entrar uma manada de cavalos a troco de uma selfie. Não menorizem a inteligência de Madona com esta história do cavalo. Ela conhece o mundo, é culta, sabe onde está e conhece a história de Portugal. Este episódio do cavalo não passa de um golpe de marketing. A culpa foi do agente que lhe prometeu meter um cavalo no palácio onde iam decorrer as filmagens. Madona admirará ainda mais Portugal por defender o seu património. O que esta situação revela é que há uma consciência coletiva de defesa da história e da memória. Os gatos continuarão a gostar de telhados de zinco, mas cada vez há menos telhados para esse tipo de gatos. Uma coisa é certa, o palácio será mais visitado e terá como ex-libris um cavalo à porta. 

Com sorte os burros do Bom Jesus de Braga serão promovidos e a habitual viagem turística fará parte do cardápio das próximas eleições europeias. A visão europeísta do que é nosso traz-nos à memória a ironia daqueles que, ao longo dos tempos, usaram a sátira como arremesso na defesa da pátria: Rafael Bordalo Pinheiro. Portugal não é “só três sílabas, / linda vista para o mar (…), como escreveu O’Neill; é o “um cântico da terra e do seu povo, / nesta invenção da humanidade inteira / que a cada instante há que inventar de novo (…) ”, segundo Jorge de Sena. Somos a pátria que canta os poetas e as tragédias, as viagens por outros mares com Magalhães e Cabral; que renasce depois da treva e celebra a liberdade com a emoção universal: alegria. 

Somos o pergaminho que herdámos da Grécia, daqueles que ousaram vencer Dario em Salamina. Madona devia ter solicitado aos atenienses o Pártenon para se filmar com o seu cavalo no novo videoclip. Quase que adivinho a resposta. Se alguma coisa aprendemos com a história, é com o que aconteceu ao Pártenon. Os estilhaços das pedras são lágrimas de Fídias, de Ictinos e Calícrates. “O palácio de Fídias” é a metáfora do que resiste ao tempo: a pedra e o simbólico. Madona é o Pártenon da pop, mas as suas esculturas, talvez, não resistam ao tempo como os frisos de Fídias.



António Vilhena



(Crónica publicada no Diário de Coimbra).

domingo, 24 de março de 2019

Natália Correia, morreu há 26 anos.



Natália Correia faleceu a 16 de Março de 1993, no Dia da Liberdade de Informação, uma terça-feira. A última vez que estivemos juntos foi no dia 13 de Março, em Leiria, na apresentação de um livro do poeta Adalberto Alves. A sessão decorreu no Castelo de Leiria, depois seguiu-se um jantar, onde não faltou uma Natália feliz e exortando os amantes e os livres-pensadores. 

Morreu cedo, mas a tempo de não assistir à decadência do país que tantas vezes profetizava. Foi amada, mal-amada, foi aclamada, invejada, oportunisticamente usada, foi solidária, fraterna e, principalmente, incompreendida. Muitos dos que hoje falam dela nunca sentiram as suas mãos frias, nunca a viram chorar, nunca saberão como essa mulher era frágil e forte. Amei-a na intimidade da poesia que nos juntou. Não tivemos tempo de dizer adeus.



António Vilhena

sexta-feira, 15 de março de 2019

"GENÉTICA PARA TODOS"



A Genética que aprendi na Universidade deixou-me grandes ensinamentos, principalmente, porque aprendi, à custa da cadeira de Genética, que “o mais importante” era descender de alguma dinastia ou ter um nome sonante que tivesse correspondência nalguma das Faculdades. Vem isto a propósito do livro “Genética Para Todos”, de Heloísa G. Santos e André Dias Pereira, editado pela Gradiva. Como se escreve na capa do livro, esta obra viaja de Mendel à Revolução Genómica do Século XXI: a prática, a ética, as leis e a sociedade. Não há muitos anos a ciência exibia a descoberta da dupla hélice de DNA de Watson e Crick, em 1953, tendo recebido o Prémio Nobel de Medicina e Fisiologia (1962). Esta descoberta foi inspiradora para a humanidade que deixou marcas indeléveis em poetas que glosaram o feito. Vitorino Nemésio escreve: I - Afinal sou assim, infeliz e volúvel, // Porque a minha alma guarda uma ordem diversa // De pulsões celulares ao longo do eixo: // Decifre-me quem saiba – que dispersa, // Com o nome de A.D.N. aqui na cruz a deixo //   II – Nervo a pavor, fonte renal de rijo, // Cor dos meus olhos, estatura, gosto, // Quanto me importo, ó Deus, quanto me aflijo, // Tudo A.D.N. inscreve no meu rosto. (Obras Completas, vol. II, Poesia, 1971).

“Genética Para Todos” é um livro pertinente, surge quando se colocam à sociedade desafios que o conhecimento científico traz consigo, questões éticas que prometem alterar os paradigmas até agora existentes. O estudo da sequência do genoma humano, em boa parte motivado pela descoberta de Waston e Crick, foi uma das mais poéticas incursões da ciência na vida humana. Os receios de fanáticos religiosos e de políticos não impediu que mais de cinco mil cientistas tivessem cartografado o genoma humano. A viagem ainda estava no princípio. A descoberta implicava riscos e o Prémio Nobel, John Soulston, chamou a atenção para os problemas éticos que se colocam à Ciência e à humanidade: "Ao longo dos anos, a ética na ciência tem diminuído. Este facto tem a ver com os poderosos interesses económicos e políticos em jogo” (2002). Perante os grandes desafios que o desenvolvimento da ciência nos coloca, cresce na comunidade científica um clamor que apela a uma maior ponderação ética. Em 1983, François Mitterrand, antecipou esta realidade ao criar na Europa a Comissão Nacional de Bioética.  O presidente da Comissão Nacional de Bioética, Jean Bernard, foi bem claro: “a honra da medicina, e também, da sua dificuldade, é a aliança entre o dever da ciência e o dever humanitário. A nossa tarefa é favorecer esta aliança” (1991).

Quais as “implicações jurídicas do conhecimento do genoma humano”? Eis a pergunta que o Professor André Dias Pereira faz, recuperando o título de um estudo visionário de Guilherme de Oliveira, em 1991. Os contornos da revolução científica e tecnológica tem tanto de estimulante como de assustador. No futuro o conceito de “humano” pode não ter nada a ver com aquilo que hoje conhecemos. Talvez o futuro da vida nos próximos milhares de anos esteja nas mãos do que hoje se considera a Revolução GNR (Genética, Nanotecnologia e Robótica). Fukuyama é um pouco pessimista: “O mundo pós-humano pode não ser livre, igual, próspero e propiciador de cuidado e compaixão” (pg. 102), não hesitando em alertar para os perigos que ameaçam a humanidade se não “se abrir os olhos e evitar que o Homem, se torne escravo de um inevitável processo tecnológico que não serve fins humanos”. Não é impunemente que cada vez mais se fala de Eugenia, com má memória, na Alemanha. 

Já imaginou que com base no conhecimento do seu genoma pode não conseguir comprar uma casa, ter acesso ao crédito, arranjar emprego ou fazer um seguro de vida? Apesar da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (2005) que estabelece, no seu artº 11, a “Não descriminação e não estigmatização” de nenhum indivíduo ou grupo. Em Portugal, a Constituição da República consagra no artº13/2 que “ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão do seu património genético (pg. 142). Talvez a ficção científica espreite a realidade ao virar da esquina. Escolher a cor dos olhos dos filhos, o sexo ou a cor da pele pode estar ao alcance de qualquer um dentro de poucos anos. A importância da descoberta de Watson e Crick é indiscutível, mas trouxe novos desafios à humanidade. “Genética Para Todos” é um livro indispensável que proporciona uma visão pertinente sobre a ética e o inevitável progresso científico.


António Vilhena



(Crónica publicada no Diário de Coimbra).

terça-feira, 12 de março de 2019

CARLA BERNARDINO: VOZ DIVINA DO "BEL CANTO".


Carla Bernardino é soprano, mas pelo caminho licenciou-se em Direito, na Universidade de Coimbra. A música segredou-lhe inconfidências poéticas. Ficou cativa do canto lírico. Terminou o 8º grau de Conservatório, depois a Pós-graduação em Ópera na Escola de Música de Artes e Espetáculos do Porto (ESMAE). Os acordes afinaram-lhe a vida e descobriu o universo da Ópera: interpretou os principais papéis na Ópera Les Enfant et les Sortileges, em Les Dialogues des Carmelites, em Flauta Mágica e Fairy Queen de H. Purcell. A música é, também, a metáfora dos encontros. Com os maestros António Vitorino D´Almeida e Rui Pinheiro ousou novas experiencias musicais. Participou no “Meeting Place Music, Theatre and Landscape” na Suécia; em Cabo Verde, aquando do aniversário, da Fundação da Orquestra Nacional Cabo-verdiana; e na “Ópera 3 Mil Rios” na cidade de Bogotá, na Colômbia. Atualmente é professora de Técnica Vocal.

1.Onde começa sua genealogia?
Tenho raízes que me ligam a África, nomeadamente Cabo Verde, o país onde meu pai nasceu. Com 18 anos abandonou a sua terra e veio para Portugal. Sou fruto de uma bela história de amor entre uma Portuguesa e um Caboverdiano, relação bastante ousada à época.

2 . Quais as músicas que compõem a banda sonora da sua vida? E os livros?
É difícil enumerar as músicas que me marcaram e ainda marcam, há uma enorme quantidade de temas que adoro ouvir pertencentes a estilos e épocas completamente díspares. Do Clássico ao Romântico, do Rock ao Jazz, mas também Músicas do Mundo que nos dão a conhecer a sua cultura através da música. Sou uma enorme apreciadora da música latino-americana, adoro ouvir Chavela Vargas, Tom Jobim, Omara Portuondo, Astor Piazolla. Depois o Jazz também tem um cantinho especial que me delicía, Nat King Cole, Ella Fitzgerald e Louis Armstrong... e a incomparável Nina Simone. Nos livros tal como na música é difícil eleger aqueles que nos marcaram mas destaco “Quando Nietzsche chorou” de Irvin Yalom.

3.Como surgiu o Prestige, uma formação clássica de três artistas eruditos?
Decorria o ano de 2004/2005, frequentava eu o Curso de Canto no Conservatório de Música de Coimbra, quando fui convidada para cantar num evento. Motivada pelo convite juntei-me a mais dois colegas, também eles estudantes do Conservatório (pianista e violinista) e começámos a estudar e a preparar repertório para o evento. Daí para a frente nunca mais parámos. O Prestíge tomaram uma dimensão e uma credibilidade, na área da música clássica na região centro, incontornável. Abrilhantámos centenas de eventos e são muitas as autarquias e instituições privadas que nos acolhem.


4.Quando decidiu ser uma soprano?
Eu não decidi ser uma soprano, digamos que, a certa altura era uma evidência incontornável e não o fazer tornava-se extremamente penoso. Quando concluí o curso de Direito não coloquei sequer a hipótese de continuar. A música, o “bel canto” já tinham tomado conta da minha vida e do meu coração. Quando me apercebi já estava demasiado envolvida a fazer coisas, com projetos, ideais, aulas... eu não decidi, simplesmente aconteceu!... e quando parei para pensar sobre isso, o Canto já era a minha vida. O meu maior desafio, enquanto cantora lírica é conquistar um público cada vez mais vasto no “bel canto”, tradicionalmente elitista e confinado aos teatros de Ópera. Hoje sou convidada a actuar em espaços e salas onde este tipo de música não tinha lugar.

5.Como é o processo de preparação da voz, para representar os grandes papéis do repertório lírico?
Aprender Canto Lírico é um verdadeiro desafio. Temos de encarar esse processo com algum rigor e dedicação. A preparação e formação da voz não acontece de um momento para o outro e tem momentos verdadeiramente penosos. É necessário conhecermos o nosso instrumento (a voz), trabalhar diariamente e ser persistente e focado no objectivo principal. A preparação de uma personagem, no repertório Lírico, carece do conhecimento profundo da personalidade e do carácter da personagem para que, aquando da interpretação do tema, consigamos transmitir claramente a ideia sentimental e estado de alma. O ouvinte deve sentir-se transportado para aquele contexto e personagem. O cantor é também um actor.





Entrevista: António Vilhena e Angel Machado.

quinta-feira, 7 de março de 2019

O Sol é uma Mulher.


Escrever sobre o Dia Internacional da Mulher sem pieguices; pensar as mulheres não como mulheres, mas como seres humanos; pensar as mulheres como bibliotecas milenares onde é possível ler a história da humanidade: mães que perderam os filhos nas guerras desde a Antiguidade, assalariadas que ganharam o pão que o Diabo amassou, meninas que venderam a infância, avós que contaram os tostões para o pão, atrizes que temeram perder o palco.

Amo as mulheres, sem elas eu era um bicho triste. Escrever sobre a mulher é amar os homens, sem os ismos que viraram moda e são negócio. Sempre defendi as mulheres sem pensar que eram mulheres; sempre respeitei as mulheres como respeito um homem; sempre amei a beleza das mulheres como admiro a beleza que não tem sexo.O modelo cultural de séculos não se muda por decreto, mas pelo exemplo. O inconsciente colectivo não pode ser subestimado - há muita pedra bruta a polir.

Quando o meu filho deixa uma menina entrar primeiro no elevador, eu sei que ele está a ser educado – mas alguns ismos dirão que essa é uma manifestação subliminar do machismo ancestral. Lembro sempre a diferença que Natália Correia fazia: “Sou feminina, não feminista”. Eu diria, sou homem, não sou feminista. Não preciso de ser feminista para defender as mulheres. Indigno-me todos os dias contra a violência sobre as mulheres. Comemoro todos os dias o Dia Internacional da Mulher.

António Vilhena

sábado, 2 de março de 2019

UMA FOTO - EMANUEL VASCONCELOS.

"A minha pele é igual a sua, o meu trabalho é apreciar a rua
e seus personagens, e você é o que representa a Arte do Soul.
Cara, és genial." Emanuel Vasconcelos





sexta-feira, 1 de março de 2019

Brumadinho: a banalidade do mal.


Fabio Schvartsman é o atual presidente da empresa VALE, S.A., desde 2017, e não morreu em Brumadinho. O município que fica no estado de Minas Gerais, localizado na Região Metropolitana de Belo Horizonte, com uma população de aproximadamente 40 000 habitantes, o equivalente à Freguesia de S. António dos Olivais, em Coimbra, viu morrer 177 dos seus filhos e 133 estão ainda desaparecidos. A dor imensa é sentida por muitas famílias. Algumas foram engolidas pelas lamas. A tragédia não tem nome, é tragédia, mas todos sentimos que a morte nestas circunstâncias exige outras palavras: revolta, raiva e protesto. A responsabilidade parece morrer solteira, mais uma vez, tal como aconteceu com a barragem em Mariana. 

É criminoso tudo o que sabemos sobre as condições de segurança da barragem, desde ocultação de informação, falsificação de relatórios, falsas peritagens e cumplicidade entre técnicos e administração. É o capitalismo selvagem, a corrupção e o compadrio na sua expressão máxima. O silêncio foi sempre a regra de ouro da VALE, inclusive, quando foi preciso dar o alerta do rompimento da barragem. Segundo documento interno da empresa mineira, o alerta teria salvado 150 pessoas. Mas o presidente, Fabio Schvartsman, mentiu quando afirmou que as sirenes foram engolidas pelas lamas. Estão, ainda, intactas, só não foram acionadas, como comprovaram investigações posteriores à tragédia. Pese embora as recomendações da empresa alemã TÜV-SÜD, que detetou problemas, os engenheiros da VALE atestaram que a segurança da barragem era boa.

O que fica da tragédia de Brumadinho? Ficam os mortos e os desaparecidos. Uma região sepultada pela lama onde só nasce a revolta; fica uma dor coletiva incomensurável; fica o desejo de que a Justiça seja cega. Mesmo assim, há gestos que falam de corações duros e insensíveis. Quando em Brumadinho foi pedido um minuto de silêncio pelas vítimas, o presidente da VALE, Fabio Schvartsman, foi a única pessoa que não se levantou. Por outro lado, o poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), escreveu um poema, em 1984, onde falava “profeticamente” e abordava a paisagem e as águas do Rio Doce destruído pelas lamas: I O Rio? É doce. // A Vale? Amarga. // Ai, antes fosse // Mais leve a carga. II Entre estatais // E multinacionais, // Quantos ais! // III A dívida interna. // A dívida externa // A dívida eterna. // IV Quantas toneladas exportamos // De ferro? // Quantas lágrimas disfarçamos // Sem berro?

Sim, os gritos e o desespero são sufocados por mães, pais, filhos e irmãos. Imagino um monumento com os nomes do Ricardo, do Henrique, do Veppo, do Lara, da Joana, do Miguel, da Rosa, da Cláudia, do José, do Artur, do Aprígio, da Graça, do Hipólito, da Catarina, do Raposo, do Tavares e de tantos outros a que as famílias não conseguiram dar sepultura. Na imensa vala de lama não crescem flores, apenas ervas daninhas. Perante uma tragédia desta dimensão, o gesto do presidente da empresa VALE, Fabio Schvartsman, ao não levantar-se para prestar homenagem aos mortos numa sessão pública, revela uma inqualificável arrogância e falta de sensibilidade – é o que Hannah Arendt (1906-1975) chamou de “banalidade do mal”.

António Vilhena




(Crónica publicada no Diário de Coimbra)
Foto: Lula Marques