Crónicas

Brumadinho: a banalidade do mal.
Fabio Schvartsman é o atual presidente da empresa VALE, S.A., desde 2017, e não morreu em Brumadinho. O município que fica no estado de Minas Gerais, localizado na Região Metropolitana de Belo Horizonte, com uma população de aproximadamente 40 000 habitantes, o equivalente à Freguesia de S. António dos Olivais, em Coimbra, viu morrer 177 dos seus filhos e 133 estão ainda desaparecidos. A dor imensa é sentida por muitas famílias. Algumas foram engolidas pelas lamas. A tragédia não tem nome, é tragédia, mas todos sentimos que a morte nestas circunstâncias exige outras palavras: revolta, raiva e protesto. A responsabilidade parece morrer solteira, mais uma vez, tal como aconteceu com a barragem em Mariana. 

É criminoso tudo o que sabemos sobre as condições de segurança da barragem, desde ocultação de informação, falsificação de relatórios, falsas peritagens e cumplicidade entre técnicos e administração. É o capitalismo selvagem, a corrupção e o compadrio na sua expressão máxima. O silêncio foi sempre a regra de ouro da VALE, inclusive, quando foi preciso dar o alerta do rompimento da barragem. Segundo documento interno da empresa mineira, o alerta teria salvado 150 pessoas. Mas o presidente, Fabio Schvartsman, mentiu quando afirmou que as sirenes foram engolidas pelas lamas. Estão, ainda, intactas, só não foram acionadas, como comprovaram investigações posteriores à tragédia. Pese embora as recomendações da empresa alemã TÜV-SÜD, que detetou problemas, os engenheiros da VALE atestaram que a segurança da barragem era boa.

O que fica da tragédia de Brumadinho? Ficam os mortos e os desaparecidos. Uma região sepultada pela lama onde só nasce a revolta; fica uma dor coletiva incomensurável; fica o desejo de que a Justiça seja cega. Mesmo assim, há gestos que falam de corações duros e insensíveis. Quando em Brumadinho foi pedido um minuto de silêncio pelas vítimas, o presidente da VALE, Fabio Schvartsman, foi a única pessoa que não se levantou. Por outro lado, o poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), escreveu um poema, em 1984, onde falava “profeticamente” e abordava a paisagem e as águas do Rio Doce destruído pelas lamas: I O Rio? É doce. // A Vale? Amarga. // Ai, antes fosse // Mais leve a carga. II Entre estatais // E multinacionais, // Quantos ais! // III A dívida interna. // A dívida externa // A dívida eterna. // IV Quantas toneladas exportamos // De ferro? // Quantas lágrimas disfarçamos // Sem berro?

Sim, os gritos e o desespero são sufocados por mães, pais, filhos e irmãos. Imagino um monumento com os nomes do Ricardo, do Henrique, do Veppo, do Lara, da Joana, do Miguel, da Rosa, da Cláudia, do José, do Artur, do Aprígio, da Graça, do Hipólito, da Catarina, do Raposo, do Tavares e de tantos outros a que as famílias não conseguiram dar sepultura. Na imensa vala de lama não crescem flores, apenas ervas daninhas. Perante uma tragédia desta dimensão, o gesto do presidente da empresa VALE, Fabio Schvartsman, ao não levantar-se para prestar homenagem aos mortos numa sessão pública, revela uma inqualificável arrogância e falta de sensibilidade – é o que Hannah Arendt (1906-1975) chamou de “banalidade do mal”.

António Vilhena

(Crónica publicada no Diário de Coimbra).



Onde estão as Belas Artes?
Sempre que a Universidade de Coimbra elege um novo reitor abre-se uma porta de esperança. Infelizmente, nos últimos anos as portas são estreitas e o guarda-interno encarrega-se de as blindar. Temos assistido ao definhamento da Universidade de Coimbra, pese embora a propaganda que os burocratas fazem ao ranquing. Há vários olhares da Universidade de Coimbra: o que os cientistas amam, o que os professores adoram, o que os alunos sonham e, ainda, o que os contabilistas pensam. Ouve-se de forma recorrente que a Universidade de Coimbra vive do seu passado, mas a verdade é que nem todo o passado foi assim tão bom. Tudo depende da margem que escolhemos para atracar o barco. 

Quem não sentiu a Academia, quem não a viveu nas suas idiossincrasias sociais e culturais, pode pedir a todos archeiros que abram as portas da Reitoria, mas o único vento que passa é o gripal. Não gosto de citar Antero de Quental sobre a Universidade, mas há uma progressiva lentificação que tolhe a essência do seu primado: ser moderna em cada circunstância, inovadora, universal e humanista. O próprio processo de eleição do reitor mostra a sua clausura e, também, a farsa que configura a possibilidade de haver outros candidatos estrangeiros. A instituição fecha-se sobre si própria, como um caracol, condenando as candidaturas exógenas a uma mera representação fictícia. O que eu digo ficou provado nesta eleição para o novo reitor. O Conselho Geral que elege o reitor não estimula as forças vivas da Universidade e muito menos a Academia. É uma mão cheia de ilustres personalidades que só aparecem quando há eleições. 

O modelo é pouco mobilizador e estimulante, favorece os que têm receio do debate e da exposição – sempre discordei. Sou do tempo da Assembleia da Universidade onde existia mais pluralismo e representatividade. Chegados aqui, importa saber o que podemos esperar da eleição do Doutor Amílcar Falcão. Não sabemos que compromissos prévios assumiu para além do seu programa, principalmente, na segunda volta. O pior argumento para o vencedor é identifica-lo com o mandato anterior. Mas acredito que o novo reitor não deixará fugir a pomba da esperança. Esta é a hora de soltar as amarras, de quebrar as algemas e de içar as velas – estas metáforas têm correspondência com a realidade. É isto que se espera de um novo reitor. Que não apague as cinzas da crítica de Antero, mas que ouse afirmar a universalidade e as humanidades. 

A Universidade e a cidade de Coimbra não podem continuar de costas voltadas, num mutismo ensurdecedor. A autonomia universitária não é equivalente a autodeterminação. A cidade orgulha-se da sua universidade, mas a universidade nem sempre corresponde à empatia. Talvez uma certa distopia histórica ajude a explicar o desencontro. Com a eleição do Doutor Amílcar Falcão, que toma posse dia 1 de Março, não se esperam milagres, mas uma atitude que crie pontes, uma linguagem mais contemporânea e, acima de tudo, um compromisso sério com outras instituições ao serviço da cidade e da região. A mais internacional das universidades não pode ficar refém de nenhuma faculdade, não deve perder a sua visão humanista, mas pode e deve, através da excelência da sua investigação e do seu prestígio, criar condições para o ensino das Belas Artes. Falta coragem? Visão estratégica? Paradoxalmente existe o Colégio das Artes. 

As Belas Artes ainda parecem ser o tema tabu na Universidade de Coimbra. Esta discussão é antiga e não tem merecido a atenção que merece ao longo dos vários reitorados. Não é impunemente que esta questão é recorrente, ela é transversal e e permitiria um arejamento da instituição e, quiçá, mudaria o paradigma. Desde há muito que o ensino das Artes está reservado a Lisboa e ao Porto. Quem tem medo do ensino das Belas Artes na Universidade de Coimbra? O novo reitor tem a grande oportunidade de acrescentar à força e à sabedoria da Universidade de Coimbra, a beleza que tudo transforma.

António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).

Jamaicas.
Portugal descobriu recentemente que existia um bairro pobre chamado Jamaica. E digo descobriu porque, até agora, fingiu que não existia, como acontece a muitos outros bairros que não passam de um amontoado de gente que não tem voz, nem se sente representada. Infelizmente, o bairro Jamaica deu-se a conhecer como a comunicação social bem entendeu e o pintou. Para uns trata-se de gente perigosa e com comportamentos violentos; para outros, ali acontecem coisas estranhas. Depois veio a questão do racismo e Assunção Cristas confrontou António Costa, como se fosse seu filho, a querer puxar-lhe as orelhas em frente aos recortes da imprensa. 

Acrescente-se, ainda, a falta de jeito de Mamadou Ba para defender as causas que diz representar. E uma extrema-direita caceteira à espreita para envernizar o racismo, a xenofobia e outros ismos. Mas gostava que Mamadou Ba soubesse que eu e todos os que defendem uma sociedade justa e solidária, também, queremos que as famílias que vivem no bairro Jamaica tenham condições e que os seus filhos tenham as mesmas oportunidades de outros meninos de qualquer rua de Portugal. Talvez Mamadou Ba pense que escrevo esta crónica com a poeira dos dias, desengane-se. Procurei saber quem vive no bairro, quantos são, de onde vieram e que vida levam. 

Mamadou Ba deve saber que o bairro, é um amontoado de prédios inacabados, propriedade de uma empresa falida e com dívidas fiscais, e que foi ocupado por famílias, na sua maioria, de países lusófonos, com a promessa de realojamento pela autarquia. Deve saber, também, que a CRIAR-T – Associação de Solidariedade tem feito um esforço enorme para acolher as crianças, permitindo que os pais possam ir trabalhar – porque as crianças não podem ficar sozinhas correndo vários perigos no bairro. Também deve saber que muitas vezes a EDP corta a luz porque as famílias não podem pagar a fatura coletiva. Talvez fosse uma boa ideia a EDP aplicar a tarifa social a essas famílias. 

No bairro vivem aproximadamente 800 cidadãos que esperam por promessas, algumas delas como a requalificação do parque infantil, muito degradado, e que não reúne as mínimas condições de segurança para as crianças brincarem. Quem entra no bairro é recebido por Bob Marley e Che Guevara, símbolos de outros tempos que continuam a inspirar a revolta dos que vivem num bairro que não tem condições mínimas de vida. Quem vive ali não tem dinheiro para viver noutro sítio, precisa de emprego e esse, também, não é fácil. A autarquia não desconhece esta realidade e tem responsabilidades acrescidas. Os políticos de Lisboa, os que conhecem bem as passadeiras vermelhas do poder, os corredores e as salas com salvas de prata, descobriram o Jamaica e interessaram-se pelas manchetes. 

A hipocrisia tem limites. Deviam ser proibidos de entrar no Jamaica enquanto não assumissem as suas responsabilidades. Pedro Santana Lopes foi o mais lesto a visitá-lo e até se mostrou chocado com a pobreza. Lembro que foi primeiro-ministro e provedor da Santa Casa. E o que fez por esta gente? A seguir irão outros políticos com um batalhão de jornalistas atrás para mostrarem a sua estupefação e incredulidade. Enquanto o assunto for a espuma do dia será aproveitado como tema para interpelações ao governo na Assembleia da República, mas depois a monotonia regressará e o Jamaica voltará à rotina dos seus dias. 

Todos sabemos que mais tarde ou mais cedo haverá outro Jamaica, outro bairro com gente dentro que se sente abandonada, que sente a vida dos seus filhos não ter futuro, sem dinheiro para a luz, a água e a universidade. Haverá outro Jamaica que encontra na exclusão a semente para gritar que também quer “trabalho, pão, habitação e liberdade a sério”. Quem empurra para os guetos os mais vulneráveis não pode esperar que eles se calem e se resignem. Nem todos podem ser como o banqueiro que nos disse para aguentarmos. Esse ganha milhões e não quer saber se o Jamaica fica em Portugal ou em Angola. Uma sociedade inclusiva promove a igualdade e luta contra todo o tipo de segregação. Infelizmente, há outros bairros como o Jamaica que ainda não gritaram.


António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).

Cristina Tavares não foi “ungida por Deus”

Eu sei que quando está em causa dizer algumas verdades todos empurram a pedra pela encosta. Não me atrevo a dizer que depois, para trazer a pedra de volta, alguns não sejam tão solidários como antes. Todos sabemos que a mediatização, nalguns casos, apenas contempla empurrar a pedra. Quando o caso surgiu de Cristina Tavares, uma trabalhadora de uma corticeira, em que a Autoridade para as Condições do Trabalho denunciou que a trabalhadora estava ser vítima de assédio, a notícia propagou-se, não faltou tempo de antena. Era a notícia do momento. 

Fernando Couto-Cortiças, SA, de Paços de Brandão, Feira, despediu a sua funcionária pela segunda vez, alegando que ela pôs em causa o bom nome da empresa. Claro que a questão ainda corre nos tribunais, apesar de estes já terem levantado autos e uma multa de 31 mil euros - mas a verdade é que Cristina Tavares está de novo despedida. Depois da primeira integração da trabalhadora imposta pelos tribunais, foram-lhe atribuídas funções quase humilhantes e que configuravam uma clara descriminação, sendo privada, inclusive, de usar a casa de banho com privacidade. O bulling empresarial condena sempre os mais fracos, aponta-lhes a porta de saída em nome de uma justa causa: o bom nome. É preciso denunciar estas situações desumanas e com reminiscência de outros tempos. 

Agora interessa-me saber quem está disponível para ajudar esta mulher? Como ela diz: estou em casa, a viver um dia de cada vez. Não vou desistir, porque quero o meu posto de trabalho. Não me meto com ninguém estou lá apenas para trabalhar. Mas terá Cristina condições psicológicas para ganhar o pão na mesma empresa? Para além de um novo emprego esta mulher precisaria, eventualmente, de apoio psicológico. Agora que o caso já saiu do alinhamento noticioso é hora de repicar os sinos pelas questões práticas: ajudar a Cristina. 

Este caso tornou-se conhecido, mas haverá, certamente, outras Cristinas que “aguentam” com medo de perderem o emprego. A precaridade é uma ameaça e espreita em cada oportunidade. É por isso que defendo os sindicatos, porque estes têm um papel fundamental na defesa dos trabalhadores contra a prepotência e as arbitrariedades. O Sindicato dos Operários Corticeiros do Norte promete fazer tudo para defender este caso. Tem agendada para o próximo sábado, 19 de janeiro, a primeira "caminhada solidária". A concretizar-se será um momento histórico. Em primeiro lugar porque a causa é justa; depois, porque representa a essência do sindicalismo e dos seus valores fundacionais.

Este caso exige uma reflexão: ainda temos alguns empresários que consideram os seus trabalhadores como carne para canhão. Claro que a empresa acha que o “caso Cristina” é “um linchamento público da empresa, sem defesa” na praça pública. Parece-me que a empresa não aprendeu nada quando foi obrigada a integrar a trabalhadora depois do primeiro despedimento. Nas sociedades modernas a informação é a grande força da democracia. Os danos causados à imagem pública da empresa são óbvios.

Se os portugueses se unirem, na defesa de Cristina, estão a dizer que é preciso respeitar quem trabalha, defender os seus direitos e a dignidade de cada pessoa. Cristina quer dizer “ungida por Deus”, mas neste caso parece que foi a filha de um deus menor. Defender a igualdade de género é emprestar a escrita a quem não tem voz, a quem não tem o #ME TOO ao seu lado. É nestes momentos que eu acho que alguns políticos, que defendem estas causas, deviam estar presentes – não chega fazerem discursos de circunstância, redondinhos e com prosápia oportunista. É preciso estar lá. Desafio os que enchem a boca com solidariedade, a estarem dia 19 de Janeiro na “caminhada solidária” para defenderem a Cristina. Não basta parecer, é preciso ser solidário.


António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).


Muita roupa na varanda.

Chamaste por mim onde a curva esconde a rua que vira para o rio e o eco da tua voz perpetuou-se depois do encontro. Era como se um balão de som nos envolvesse ao longo da caminhada. Apesar do sol, o frio exigia cachecóis. Nada era tão paradoxal: onde o céu era azul e infinito, soava um vento invisível rente aos olhos; o que não se via era sentido na pele, e o rio levava o olhar. Ao longo da caminhada escutámos um violino, talvez perto, talvez escondido numa viela, numa esquina. Percebemos que seria um virtuoso. Fomos em busca desses dedos voadores que soltavam tão belas melodias. Pelo caminho, sentadas nas escadas das portas, havia mulheres de outra idade vendendo fruta seca. Insistiam para lhes comprarmos alguma coisa. Foi então que ouvimos o choro do violino, um clarão de sons clamando a paz e o amor. Aos poucos aproximamo-nos da nascente dessa música, uma praça onde desaguam todas as ruas estreitas da cidade velha. Encostado a um velho pelourinho, um violinista esticava o arco e a multidão lançava moedas para uma caixa. 

Quando chegámos o sol desaparecia sobre os telhados, a sombra estendia-se e os turistas zarpavam lentamente. Ficavam os que amavam o velho violinista, a poética do lugar, o delta de ruas, a ancestralidade da urbe, o inverno vestido de azul. Nas arcadas estendiam-se esplanadas, serviam chocolate quente e pão com geleia. Era a hora de ligarem os aquecedores. O violinista recolheu a sua jorna, agradeceu com uma vénia e colocou o instrumento na mochila. Talvez voltasse no dia seguinte. Regressámos ao hotel pelas ruas estreitas e já com os candeeiros acesos derramando uma luz quente na pedra gasta dos edifícios, outrora, moradas de mercadores e contrabandistas. Hoje são pensões, lojas comerciais para turistas. Ouve-se o fechar das portas, o descer das grades de segurança, a cidade velha prepara-se para dormir. 

No lado oposto, junto ao rio, os restaurantes estão apinhados de gente para jantar. É a polis gastronómica, uma variedade de países oferecem as suas tradições. A poucas horas da passagem do ano, aproximamo-nos do MED, um restaurante onde a sua especialidade é sopa de cação. MED é a abreviatura de Mediterrânio. É muito procurado por portugueses, espanhóis, italianos, argentinos e cubanos. A sua história cruza-se com os Descobrimentos. O seu proprietário é indiano, diz que é descendente de portugueses. Fala um português arranhado e faz questão de exibir Os Lusíadas e recitar alguns Cantos. É um deslumbramento. A acrescentar a esta luxúria cultural, oferece vinho português como aperitivo. Entre tantas surpresas, o que mais nos surpreendeu foi, no primeiro andar, haver uma varanda cheia de roupa, um estendal ao vento. À medida que a fila crescia para o MED, ouvia-se um violino no seu interior. Por instantes, pensámos nos acordes que ouvimos na praça. Talvez fosse o mesmo virtuoso, crescia-nos a esperança de conhecê-lo. Junto ao rio há imensos lugares de diversão, chamam-lhe o rio sem sono. 

Mas é de madrugada que os pescadores dão outra vida aos cais, as embarcações regressam para vender o peixe, ainda muitos perpetuam a diversão da noite. Ao romper da manhã ouvem-se os sinos das igrejas, quase em uníssono, a chamarem os fiéis para as primeiras missas. Pelas ruelas encaminham-se muitas mulheres idosas, em passo lento, levando um terço na mão. A maioria veste de negro e leva o rosto quase tapado. As muitas vidas da cidade velha cruzam-se na praça e junto ao rio. O bulício no cais não faz esquecer as crianças que se abeiram das mesas dos restaurantes de mão estendida. Os empregados são lestos a expulsá-las. A lei é de encobrimento e de vergonha. O ritual da passagem de ano, por estas bandas, faz-se, também, com champanhe. Mas, aprendemos que muita roupa na varanda significa purificação e novos aromas para receber o novo ano. Nada como mudar as roupas ou içá-las ao vento para receber o que é novo de um tempo velho.

António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).


Última lição da Professora Nair de Nazaré Soares.

A última lição é, assim, uma maneira eclética de dizer que um Professor se jubilou, ou seja, que pela força da lei chegou a hora de passar o testemunho aos mais novos. Na verdade, um Professor nunca diz adeus, os seus discípulos lembrá-lo-ão durante muito tempo, perpetuando os seus ensinamentos com a transmissão do conhecimento. Mas confesso que a última lição da Professora Nair de Nazaré Castro Soares foi muito mais do que isso, foi um mar de saber que encheu o anfiteatro IV da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, o mesmo onde há trinta anos se apresentou publicamente. Como referiu: “Fechei o ciclo aqui”. O que é que esta última lição teve de extraordinário? Senti que a Polis estava ali, que os seus discípulos – e eram muitos - quiseram honrar a sua professora naquele palco onde tantas vezes receberam a luz. Não se tratou apenas de beleza, mas da razão maior das coisas, da essência que nos agiganta.

Ao longo de uma hora, de pé, atravessou a história da humanidade, cruzou o Mediterrâneo, o mar Vermelho, o Adriático, o Mar Negro, o Índico; levou-nos a Atenas, a Creta, a Ítaca, a Roma e a Jerusalém. Falou-nos daqueles que não nos deixam morrer nas trevas, fez-nos sentir parte de uma humanidade onde o humanismo nos devolve a dignidade de sermos mortais. Durante a sua lição compreendi melhor a importância do Centro de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, onde passaram os Doutores Américo Ramalho, Walter Medeiros, Manuel Pulquério, Maria Helena da Rocha Pereira… 

A última lição foi uma ágora privilegiada, a ela convergiram os seus pares, alunos, amigos, admiradores e debutantes. Foi, acima de tudo, um momento de homenagem, de preito a quem dedicou o melhor da sua vida, neste caso, à Universidade. Foi um momento de emoções fortes, de reencontros e recordações. Agora aproxima-se a hora de arrumar o passado, de mudar as rotinas, de acertar o passo, de fazer o que falta. O desapego é um processo doloroso, por isso, vamos continuar a ver, felizmente, a Professora Nair de Nazaré Soares, com um seu sorriso de bondade, onde sempre a procurámos.

Roland Barthes (1915 – 1980) lembrava na sua lição inaugural da cadeira de Semiologia Literária do Colégio de França, em 1977, que estava a entrar numa vita nuova e que tinha de se “deixar levar pela força de toda a vida viva: o esquecimento”. Por outras palavras, talvez fosse mais fácil recomeçar quando chega a hora de desaprender, “de deixar germinar a mudança imprevisível que o esquecimento impõe à sedimentação dos saberes, das culturas, das crenças que atravessámos”. É nesse lugar, onde o relógio consome a urgência da existência, que fica a “Sapiência: nenhum poder, um pouco de saber, um pouco de sabedoria e o máximo de sabor possível”.

A última lição da Professora Nair trouxe-me à memória o ensaio “A Ordem do Discurso” de Michel Foucault: “Mas o que há afinal de tão perigoso no facto de as pessoas falarem e de os seus discursos proliferarem indefinidamente?” A resposta é complexa e exige mergulhar num caldo de possibilidades, conforme o contexto, onde cada escolha pressupõe outras tantas exclusões. Mas a eloquência da Professora Nair é real, porque no seu scriptorium sobreviveram os ensinamentos dos textos clássicos e porque nunca foi uma professora que “por cegueira estética e ciúme inconsciente” esmagasse os seus alunos.

Um mestre é aquele que estimula e envolve, que nos faz sentir a tomar café com Aristóteles ou Erasmo, que nos faz entrar na poética do homem, a poiêsis, e declamar o verso de Keats: “A verdade é a beleza e a beleza é a verdade”. Apesar da última lição permanecem os verbos do futuro, da esperança, que só a poesia é capaz de oferecer. Esta é uma crónica de elogio à professora e à mulher Nair de Nazaré Castro Soares, à sua resiliência e coragem. Mulher de lágrima fácil e de coração gigante com um pé em Jerusalém e outro em Atenas. A última lição constituiu um canto na sua voz, um abraço de emoção de que todos somos devedores. Neste fragmento de Píndaro: “Aquele que, na sua profundidade do mar sem ondulação, das flautas/Se viu amorosamente comovido pelo canto”, estão todas as emoções que senti na sua última lição.

António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).



Natália Correia, 25 anos depois da sua morte.

Natália é imensa, enche o imaginário de todos os que alimentam a esperança de conhecerem melhor a mulher de “Somos Todos Hispanos” (1988). Apesar de muito se ter escrito e dito sobre a poeta que nasceu em 1923, na Fajã de Baixo, em Ponta Delgada, há uma imperecível curiosidade pela mulher deslumbrada com o futuro, mas que não foi compreendida no seu tempo. E esse tempo foi há 25 anos. Quando passa um quarto de século sobre a sua morte, a Câmara Municipal de Ponta Delgada juntou num colóquio alguns estudiosos (Fernando Dacosta, Fernando Pinto do Amaral, José Manuel Anes, Ângela Almeida, Armando Nascimento Rosa, Leonor Sampaio Silva, António Vilhena, Luís Filipe Sarmento, Vamberto Freitas) que trouxeram mais luz à face visionária de Natália Correia. E se esse colóquio foi importante, ele serviu, também para lançar o 1º Centenário do seu nascimento em 2023. Foi esse o compromisso do presidente da Câmara de Ponta Delgada, José Bolieiro. Ficámos a saber que será constituída uma comissão que dará expressão nacional a essa evocação.

Natália era universalista, no sentido em que Thomas Mann era alemão: “Onde estou, está a cultura alemã” – quando chegou aos EUA em 1938; e na mesma linha de George Steiner quando diz que “Onde estou, está a cultura europeia”. Natália reforça a sua convicção: “Toda a nossa relação cultural com o Mundo é perspetivada no universalismo atlantista”
O Atlântico é, assim, a janela que abriu caminho aos descobrimentos - no seu entender o começo da Idade Moderna dos povos ibéricos -, o horizonte que desnuda a bruma com vocação épica e trágica. O lugar de Portugal não foi ser menos terra, mas antes mais longe, através da maritimidade - expressão sua -, onde foi possível o que se “agiganta n`Os Lusíadas sem, contudo, silenciar as tonificações do Mediterrâneo e da interioridade”(STH, p. 10). Para a escritora “interioridade” é sinónima de lágrimas, de sofrimento de dor, cristalizada na figura do Velho do Restelo. Para si, a voz da maritimidade encontra o seu mais sonoro eco na “Peregrinação” de Fernão Mendes Pinto.

É sempre com olhar crítico que Natália Correia desoculta a lâmina para afirmar o húmus cultural de Portugal. Com Miguel Torga, com profundas afinidades políticas na defesa do iberismo, tece o manifesto da defesa de uma visão que una o Mediterrânico e o Atlântico. Natália não era nacionalista, era patriótica. O nacionalismo apouca a universalidade que há em nós, o patriotismo é o diálogo maritimista, a “inserção do mar português numa visão metafísica e profética” lembrando que a Ode Marítima, do heterónimo Álvaro de Campos, não pode ser lida fora do conjunto da obra do Pessoa, numa claríssima comparação com o que considera alienar “a mística nacionalista dos Descobrimentos”, “atrofiando as proporções da mediterraneidade e da continentalidade, nas quais se afundam as raízes da nossa identidade original” (STH, pag. 12). O seu olhar universalista leva-a a reconhecer que a nossa relação cultural com o Mundo é perspetivada no universalismo atlantista, ou seja, “daqui eu vejo o Mundo que habita dentro de mim”.

Mas a sua visão ibérica, a sua hispanidade, perseguia-lhe os passos rumo a uma comunidade ibero-afro-americana ecuménica, atlantista e pluricontinental. Esta comunidade centrada nas línguas portuguesa e espanhola, de 700 milhões de falantes, serviria para exorcizar os medos de Portugal e Espanha valorizando o muito que nos une para fazermos frente a uma União Europeia onde a solidariedade cultural é frágil. O seu pensamento visionário faz jus à mulher que recusou a anorexia cultural e se revia em Shelley quando este afirmava que “Somos todos gregos”.


António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).



A Biblioteca “Guggenheim”

“Será inaugurada, em Coimbra, a maior biblioteca de Portugal. É uma obra de arquitetura moderna, desenhada pelo arquiteto Siza Vieira para o antigo espaço da Penitenciária, que homenageia a cidade do Conhecimento e recoloca Coimbra no roteiro das maiores e mais belas bibliotecas modernas, a par da Biblioteca Pública de Sttutgard, projetada pelo arquiteto coreano Eun Young Yi, da Biblioteca Pública de Tianjin (Tianjin, China) inaugurada em 2017, o projeto é do holandês MVRDV em parceria com os arquitetos chineses do TUPD – esta biblioteca tem no centro um olho gigante, uma bela metáfora, da Biblioteca Real Dinamarquesa no canal Christianshavn, junto ao porto de Copenhague, da Biblioteca Nacional da Coreia do Sul, na cidade de Sejong, em 2013, uma obra do Gabinete Samoo Architects & Engineers ou, ainda, a nova Biblioteca de Alexandria que homenageia Rá, o deus do Sol, foi erguida para recuperar o “espírito de abertura e erudição”. Coimbra junta-se às cidades das bibliotecas fantásticas”. 

Esta é a notícia do futuro, a notícia que qualquer jornalista gostará de escrever quando Coimbra celebrar o passado através da Biblioteca Joanina e for ousada para celebrar a modernidade. Quando em 1938, Orson Welles transmitiu 'A Guerra dos Mundos', de H.G. Wells, muitos acreditaram, mas esse era outro tempo. Gostaria que acreditassem na notícia da biblioteca do futuro, porque “Deus quer, o homem sonha e a obra nasce”. As bibliotecas foram sempre o espelho do melhor do seu tempo, preservando a memória que se abre ao delta da modernidade, atravessando o tempo que há-de vir. Em Coimbra é fácil evocar o passado, é uma cidade cheia de história: o Colégio de Santo Agostinho ou da Sapiência, o Colégio de Nossa Senhora da Graça, o Museu de História Natural da Universidade, a Capela de São Miguel da Universidade, o Colégio de São Jerónimo, o Mosteiro de Santo António dos Olivais, o Colégio do Carmo, a Igreja de São Bartolomeu, a Igreja de São Tiago, o Mosteiro de Santa Maria de Celas, a Capela de Nossa Senhora da Esperança, o Colégio de São Pedro dos Terceiros, a Sé Nova ou Igreja do Colégio da Companhia de Jesus, a Sé Velha… 

Não nos falta passado para celebrarmos o melhor da nossa história. Mas há uma ladainha, que às vezes parece um pregão, onde se anuncia a desgraça e o fim do mundo. Os otimistas da crítica fácil são os consulentes da imaginação perdulária, enfeitam-se no carnaval com adereços de natal. Trocam o nome das ruas, esquecem-se que a rua que sobe é a mesma que desce. “Ninguém se constrói a partir da negação”- escreveu o psicólogo francês Gérard Poussin. O mesmo acontece com as cidades. Elas são o que soubermos sonhar para perpetuarmos o passado na mais insignificante pedra. A nova biblioteca de Alexandria tem cerca de 6.400 painéis de granito com todos os alfabetos conhecidos do planeta, é um ícone do século XXI. 

Independentemente de outros investimentos, advogo a construção de uma biblioteca, que fosse o nosso “Guggenheim”, que conjugasse o mundo digital e preservasse o cheiro do papel dos livros. As cidades sempre se afirmaram pelo saber e pela Arte: Atenas e Alexandria são os exemplos clássicos. Neste tempo em que assistimos ao pior dos obscurantismos, a fogueira de livros, urge afirmar a Arte e o Humanismo sob o céu de uma biblioteca. Classificada pela UNESCO como Património Mundial, Coimbra precisa de esculpir um compromisso com a inovação. Agora que se inicia a caminhada para que em 2027, daqui a nove anos, Coimbra seja Capital Europeia da Cultura, talvez a proposta de uma nova biblioteca possa desviar as águas do Nilo ou do Danúbio e perpetuar o que não morre para além de um efémero reconhecimento. 

O que fica depois da festa? Depois da Expo`98 ficou uma cidade nova, depois de 2027 pode ficar uma biblioteca e muito mais. Nos tempos ditos modernos importa lembrar, sempre, a frase de Almada Negreiros: ser moderno é o que de mais antigo permanece dentro de nós. E os livros são a luz que Heródoto viu em Fidípides, esse soldado ateniense que em 490 a.C. foi a Esparta pedir ajuda contra os Persas na batalha de Maratona. É preciso correr como Fidípides, desviar as pedras do caminho como Carlos Drummond de Andrade, vencer em Maratona e Salamina para mantermos a nossa cultura, a nossa identidade e a liberdade de pensamento. Não se trata apenas de mais uma biblioteca, ela simbolizará o passado e o futuro, homenageará as Culturas, a Arte, a História e as civilizações. Gostava que os futuros turistas visitassem a cidade pela Biblioteca Joanina mas, também, pela nova Biblioteca. Hoje conhecemos a cidade de Tianjin, na China, porque construiu a sua Biblioteca Pública, transformou-a num ícone mundial de cultura. A notícia que qualquer jornalista gostaria de escrever não é uma utopia, basta que ousemos.

António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).

Amoro-te

Podemos recriar a língua, mas sabemos que isso é uma ousadia que tem custos. Logo a seguir vêm os guardiões do templo chamar a atenção para o crime que é inventar palavras. Os especialistas argumentarão que existem todas as palavras de que precisamos para nos expressarmos, basta que saibamos e tenhamos arte e engenho. Mas há palavras que não fazem parte do cânone, são uma rebeldia, uma tempestade emocional e, por isso, vivem à margem dos congressos, dos corredores dos filólogos, das sebentas bafientas; preferem os jardins, o mar, as avenidas, o escurinho das salas de cinema…É aí, nesses lugares, que a melopeia se oferece à linguística como uma sedução irrecusável. É nos escombros da paixão que os sons se combinam para trazer o relâmpago aos lábios onde se murmura um “futuro que houve dantes”. 

Tudo o que sabemos é que a linguagem do amor é rebelde e não cabe onde a liberdade não existe, ela é a “chuva de prata” e o luar espelhado, a paisagem que sobe a encosta e abre os olhos sobre o horizonte na garupa do vento. Onde se desenharem pássaros e viagens abrem-se as galáxias e o pensamento, o deslumbramento das coisas intemporais que habitam as verdades dos pequenos mundos, esses lugares onde o amor se basta a si próprio. Quando escrevo sobre o amor reencontro-me sempre com a história de Sá Carneiro e de Snu Abecassis, a princesa da Dinamarca, que a escritora Natália Correia patrocinou; ou, ainda, a paixão torrencial do embaixador Luís Pinto Coelho pela americana Kit, que dizem ter renunciado à Pátria, a Salazar e, também, à família. 

Esta última história está retratada no livro “O meu avô Luís”, da neta, a jornalista Sofia Pinto Coelho, publicado em 2017. E se resgato esta história é porque não concordo que ele tenha renunciado à família. Como ele escreveu em carta de 15 de Março de 1965 à sua mulher: “Minha querida Piinha, As nossas situações ou posições sua e minha – são muito diferentes, como diferentes são os nossos feitios e as nossas sensibilidades (pg.105)”. Apesar da ruptura, ele continua a tratá-la pelo diminutivo, Piinha, antecedido de “querida”, numa clara manifestação de ternura. Da leitura da correspondência não se pode inferir que Pinto Coelho tenha trocado a família por Kit. Havia sim uma resistência absoluta a Kit que não lhe deixava alternativa: ou Kit ou Piinha. Isso é muito diferente de ter renunciado à família. De um lado estarão aqueles que acham que se deixou levar por uma modelo com “dois metros” de pernas; para outros será sempre um traidor aos valores morais, religiosos, sociais e políticos do antigo regime. Regresso às suas palavras: “Na verdade, o problema é de sentir”. No divórcio com Piinha havia uma cláusula que o impedia de viver em Portugal com a Kit e, por isso, foi viver para o Rio de Janeiro. 

O que esta história tem de surpreendente não é o óbvio; de um lado esteve a família que sofreu imenso, a todos os níveis, de uma maneira irreparável, e, do outro, os falsos moralistas, os hipócritas, os conformados e os oportunistas. O que é notável nesta paixão foi “o sentir” de Pinto Coelho e de Kit. Quando o fascismo caiu em 1974, Pinto Coelho não podia regressar a Portugal, já tinha 63 anos, e estava sem trabalho. Era velho para quase tudo, menos para o amor. Em 1975, a Kit tinha ido passar o Natal a Madrid, e, com 63 anos, Pinto Coelho continuava a misturar a linguagem do amor com a do velho diplomata: “Para ti, little baby, um monte de beijos com a maior ternura”. A cumplicidade de ambos é proporcional à esperança com que enfrentam a vida e o futuro. Kit perante a situação preocupante de se verem sem casa e sem trabalho no Rio de Janeiro, diz: “Até é divertido meter estacas e começar tudo de novo (pg.205). Só o amor dispensa as mordomias e basta-se a si próprio e, também, reinventa a linguagem: AMORO-TE.

António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).


Princesa, minha querida.

Li recentemente num jornal de referência a opinião de Gabriela Moita, onde afirmava que a “noção de princesa contém nela o poder de ser vítima de abuso sem consentimento”. Aparentemente o seu constructo teórico é mais um exercício que parece inabalável, robustecido pelo curriculum académico. Não é isso que me tira o sono. Se pensarmos que ainda recentemente um ilustríssimo professor veio dizer que beijar os avós pode potenciar coisas estranhas porque “estamos a educar para a violência no corpo do outro”, sou obrigado a pensar que nada disto surge por acaso. A primeira constatação é que há uma agenda que privilegia os que aproveitam o estatuto académico para capitalizarem o proselitismo dos que radicalizam as diferenças, elevando à condição de ideal tudo o que se diz em defesa das minorias. 

E não está em causa defender os mais frágeis, os que não têm voz, os mais desprotegidos – sempre fiz isso ao longo da vida com riscos pessoais que não preciso de exibir. Dispenso, por isso, lições daqueles que descobriram recentemente o #METOO para surfarem algumas causas. Eu bem sei que há gente bem-intencionada em todos os movimentos, mas há, também, gente mascarada que se esconde atrás do roupeiro para ocultar a pedra que traz nos sapatos e que nunca teve coragem de parar e retirá-la, habituou-se à pedra e à dor transformando-a numa situação normal. Depois, alguns veem no radicalismo uma oportunidade para se emproarem rasgando a biblioteca de emoções - qual auto de fé! - para esquecerem as suas histórias de vida. É fácil distorcer a realidade, atribuindo-lhe uma conotação capciosa sem cuidar de separar as águas. E se digo “as águas” é, exactamente, porque parece existir uma escalada de interesses que se ocultam sob as águas que, inexoravelmente, hão-de chegar ao mar.

Se há uma luta pela igualdade, a que alguns, hoje, chamam de género, esta é apenas a continuação de outras lutas que atravessaram a História: o fim da escravatura, o direito à greve, os cinco dias de trabalho semanais, o direito a férias, o direito à saúde, à justiça ou ao ensino. Esquartejar a língua para esconjurar os fantasmas parece a nova cruzada dos puristas. Amputar palavras segregando-lhes os conceitos, arredondando a pedra para esconder o sol na mais fina presunção parece ser o vapor da colheita que se respira nos iluminados da vaga conceptual. Assim, vai a redoma: as princesas adormecidas devem continuar o seu sono profundo, a não ser que peçam para acordar e o príncipe esteja por perto e lhes conceda, sem segundas intenções, um beijo tipo despertador. E os avós devem ter mais cuidado quando forem levar os netos à escola, não devem beijar os netinhos em plena rua, porque isso, talvez, seja interpretado como uma “violência sobre o corpo” ou, ainda, como uma ostensiva invasão da liberdade do vento. 

Enfim, aos mais ressabiados, que ganham a vida a perorar sobre estas lucubrações pós-modernas, aguarda-os uma princesa ou um príncipe, consoante o gosto, quando a vida vos gastar a demagogia e o populismo. Eu que nasci no Alentejo, eu bem sei que alguns vão dizer que é uma terra atrasada, mas lá as vizinhas cuidavam dos filhos de todos, dos seus e das vizinhas, éramos abraçados, beijados, sentavam-nos no colo, contavam-nos histórias de princesas e isso nunca me inibiu de nada. Sejamos honestos, há modas mal paridas, não sei se esta de encontrar todos os males na nossa cultura, sim, a nossa cultura, terá futuro. Mas sei que não tem passado e o presente é um arroto de cozido sem temperos. Gabriela Moita, a metáfora da princesa é isso mesmo, alguém que espera, não sei se é o seu caso, por um príncipe que, com muito jeitinho e delicadeza, recita o poema de Daniel Filipe, “A invenção do amor” de que lhe deixo aqui uma passagem: “Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração e/fome de ternura/e souberam entender-se sem palavras inúteis/Apenas o silêncio A descoberta A estranheza/de um sorriso natural e inesperado”.

António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).



Os bolsonaros do Brasil pequeno.

A maioria dos brasileiros em Portugal votou em Bolsonaro. Confesso que não me surpreende. Afinal de contas os que votaram no fascista com tiques de caudilho talvez não tenham lido "Casa Grande e Senzala" de Gilberto Freire. E digo, talvez, porque quem conhece a história do Brasil não pode ser masoquista. E a maioria dos irmãos brasileiros, que vivem em Portugal, têm a obrigação de conhecer as diferenças entre o que defende o fascista populista e o regime que se vive em Portugal. É quase inaceitável que a suposta elite brasileira, que estuda e trabalha em Portugal, tenha votado num homem do século XIX. 

A História pode não ensinar a fazer contas, a construir pontes, mas ensina, seguramente, a evitar os erros do passado, a compreender as razões que atropelaram os direitos sociais e, principalmente, a conhecermos a nossa própria identidade. A ignorância é a pior das ousadias quando não vamos sozinhos, quando arrastamos um povo para o precipício. O que se passa no Brasil deve-nos preocupar, é um ensaio sobre a ignorância que usa as fragilidades e o medo dos que estão desiludidos mas têm esperança. Desiludidos com as políticas e os políticos, e o medo das sombras onde os fantasmas diabolizam um futuro de incertezas. 

A insegurança, o aumento do crime, o desinvestimento na educação e na cultura parecem ser espelhos de uma realidade que se insinua sem solução num país que tem tudo para ser uma potência. Mas a corrupção tomou conta das instituições e a Igreja Evangélica infiltrou-se, em nome da fé, em todos os lugares para lançar os seus tentáculos. Mas o Brasil é uma grande nação, tem gente maravilhosa que todos os dias luta, tal como nós, pela justiça social, pela educação dos seus filhos, por melhores condições de vida. O Brasil tem gente que trabalha de sol a sol para sobreviver, que alimenta o sonho e acredita que o futuro passa por não abandonar o seu país. 

O que o Brasil precisa é de uma classe política credível, de uma justiça cega que não esteja ao serviço de interesses e que respeite a memória dos que com José Bonifácio ergueram o facho da liberdade e da igualdade. Estas eleições brasileiras são um bom exemplo que nos deve alertar: quando um povo está desiludido com a política e os políticos podem surgir populistas que vendem sonhos e promessas. São estes que capitalizam os ódios, os medos, as fragilidades e as crenças. O caldo que serve para um caudilho arrastar as massas tem todos estes condimentos, com que se faz um ditador: insinua com mais violência, mais polícia, mais descriminação, mais segregação, mais exclusão e mais pobreza. Os que trocam a liberdade pela segurança acabam por deixar aos outros o que só a liberdade de pensamento lhe confere: a dignidade. 

Bolsonaro é a síntese do que de mais inóspito habita a condição humana, é um mapa de perversidades ideológicas cheias de preconceitos e de racismo, representa um passado que parecia enterrado. O simples facto de ele existir como candidato é um retrocesso civilizacional, representa um Brasil dos coronéis, autocratas, prepotentes, senhores das terras e das pessoas. Bolsonaro é o perfil do homem vazio de ideias, analfabeto, um candidato anti PT primário, que bipolarizou o Brasil entre o amarelo e o vermelho. Os que estiveram com o PT no passado quase desapareceram do mapa político, são, ainda, a caixa-de-ressonância que se faz ouvir de um lulismo sem Lula ou de uma ortodoxia revisionista que provou o caviar do Planalto. Mas o Brasil tem uma longa história de ditadura (1964 -1985) que os brasileiros deviam estudar e conhecer. Quem desconhece o passado está condenado a revivê-lo. Ainda há esperança.

António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).


Rui Alarcão, um homem iluminado.

A morte é uma estranha criatura que chega, quase sempre, inesperadamente e não conhece ninguém. Tem esse secretismo que faz dela uma fada má e impiedosa. A Justiça devia ser como a morte, cega. Infelizmente, todos sabemos que a morte é mais democrática, trata todos por igual. Mas quando nos leva os amigos, os que foram companheiros de muitas “viagens”, ficamos a destilar fel e impropérios. Somos educados para a vida, não para a morte, por isso, nunca estamos preparados para receber a notícia da viagem perpétua. A morte do Professor Rui Alarcão representa mais do que a ausência física de um homem que admirava. Ele representava o que de melhor a Universidade de Coimbra conseguiu desde a sua fundação. É um exagero, dirão alguns. Basta pensar as razões porque se fala da Universidade de Coimbra hoje para encontrarmos as diferenças. 

Se afirmo que o Magnífico Reitor Rui Alarcão foi o homem certo na Universidade de Coimbra e na urbe, é porque ele trouxe o diálogo, sentou na mesma mesa estudantes e funcionários, criou as bases da expansão do Polo 2, modernizou os Serviços Sociais, foi um embaixador de Coimbra no mundo. É pouco? Antes dele nada se assemelhou. E depois dele a luz morreu nas velhas ruas da Alta. Foi um homem solidário, estava sempre disponível para os amigos e para as causas, interpretou a função de reitor com elevação, foi um gestor de sensibilidades e um humanista de referência. Fez muito amigos, era de trato fácil, afável e, por isso, envolvente. Teria sido um excelente Presidente da República. Partilhei com ele, enquanto estudante, grandes momentos na academia. Apresentei no Senado da Universidade a proposta para retirar os carros do Pátio. 

O que parecia uma proposta subversiva, ao arrepio da tradição, mas em linha com a defesa do património, o Professor Rui Alarcão subscreveu a ideia. Lembro que o principal opositor à proposta foi o Professor Orlando de Carvalho, director da Faculdade de Direito. A minha ousadia dividiu o Senado, mas o Professor Rui Alarcão ficou ao lado dos estudantes e dos poucos professores que defenderam a minha proposta. Nessa altura era Pró-Reitor o Professor Pinho Brojo que defendia uma transição moderada, ou seja, retirar os carros apenas do lajedo. A proposta foi aprovada no Senado e, hoje, o Pátio da Universidade está livre de automóveis. Este exemplo serve para lembrar que o Professor Rui Alarcão não temia as mudanças quando se afiguravam justas. Quando em 1987, ano do centenário da ACC, organizámos as conferências sobre Timor-Leste, ele foi um homem notável, abraçou a ideia e empenhou-se na sua concretização. 

Ajudou a falar com todos os ex-ministros que tiveram essa pasta e as conferências realizaram-se juntando à mesa os dirigentes da FRETILIN, UDT e APODETE. Posso dizer que essas conferências ajudaram imenso na aproximação e diálogo entre as partes até ao dia da independência de Timor. Com o Professor Rui Alarcão sabíamos que quase tudo era possível. A sua inteligência e homem de consensos cultivaram a praxis da parceria positiva. Durante o seu reitorado a Universidade de Coimbra não se limitou a olhar para o umbigo, ligou-se às mais antigas universidades do mundo através do que se denominaria Grupo de Coimbra, hoje completamente morto.

Precisamos de tempo para fazermos a história, mas a história do tempo do Reitor Rui Alarcão confunde-se com a história de Portugal, enquanto exerceu funções na Universidade de Coimbra. Cada homem faz a sua história, o Professor Rui Alarcão soube interpretar o chamamento do dever, foi cosmopolita, conciliador, democrata e teve ambição. É justo lembrar o Professor Fernando Rebelo que lhe sucedeu, homem bom e leal, que o acompanhou em muitos momentos do seu reitorado. A morte é sempre um pano negro que escurece o sorriso dos que admiramos, mas importa lembrar que o Professor Rui Alarcão foi um nome incontornável na Universidade de Coimbra e no país. Quando morre um amigo, ficamos mais pobres. O Professor Rui Alarcão foi um homem iluminado que inspirou muitos astrónomos.

António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).

As palavras de domingo.

Há-de chegar domingo, e nesse dia as palavras perdidas no parque renascerão nos troncos das árvores, haverá uma brisa suave que junta as folhas e as memórias, haverá, ainda, quem se lembre de escrever o nome de quem estava ao seu lado há muitos anos. Quando me sento num banco do jardim, vejo, quase sempre, muitos nomes gravados na madeira. Cada nome conta uma história, um encontro, são simples palavras que parecem querer sair do silêncio. Leio algumas. Há uma que parece estrangeira, não tem tradução para português, aparece esculpida com um ursinho. É apenas um nome entre tantos, mas aquele ursinho fez-me esquecer todos os outros. Talvez fosse o nome de uma criança. Muitos pais sentam-se naquele lugar depois do passeio pelo parque. Entre dezenas de inscrições aquele deixou-me uma nódoa no coração.

Estava esculpida com delicadeza. Ao domingo o parque enche-se de forasteiros, muitos começaram a visitá-lo ainda bebés com as famílias, cresceram e ensaiaram os primeiros namoros entre as árvores. Há uma sucessão de encontros e de lugares que nunca envelhecem. A memória chega com a mudança da luz, principalmente, ao final da tarde quando as sombras se juntam numa espécie de coro para ensaiarem o apaziguamento. É como se o universo exigisse o silêncio num só instante. Há mais poesia nesse lugar do que em muitos tratados. A luz de domingo é diferente, não é só a que o sol empresta ou as árvores filtram entre a folhagem, é a que a memória recorda quando as palavras de domingo traziam a comunhão dos encontros. Cada passeio era uma peregrinação de acasos, uma promessa que vivia até ao próximo domingo.

A esperança é isso mesmo, a ausência que se promete reencontrar, um desejo que se desafia a si próprio, a viagem que convida o aventureiro a conhecer novos destinos. O passado que resiste dentro de nós é o futuro que se recusa a morrer. “Como uma flor incerta entre o dedos/Há harmonia de um bailar sem fim/E tens o silêncio indizível dum jardim/Invadido de luar e de segredos”. Ah! Como Sophia de Mello Breyner Andersen diz tão bem o que outros não conseguem traduzir. Como as suas palavras juntam o indizível e o eterno! Quando se procura a perfeição, são as emoções que traçam os caminhos da descoberta, que sinalizam as cores e os sons, que juntam as pedras em cada regresso para que os aromas sejam o jardim da saudade. Há tanto perfume em certas palavras, são as corolas apaixonadas pela vida que se abeiram do horizonte e insinuam as asas da liberdade; são as aves incansáveis que traduzem os dias e as noites nos seus cantos.

As suas melodias combinam Schubert e Chopin, são a nostalgia do encontro, a sonoridade da floresta. Os fios de luz esmaecidos ao final da tarde são tranças na paisagem, misturam o que vem da terra, há um compromisso de humildade que atravessa sem pressa os sentidos. Naquele banco de madeira, com o nome estrangeiro intraduzível, há um palco de sonhos. Daquele lugar vê-se um bosque encantado, talvez o poeta Gueorgui Gospodinov gostasse de reencontrar ali “O coelho do amor”, no bosque não há portas, por isso, escreveu: “Volto já, disse/e deixou a porta aberta” - como uma metáfora do tempo. No próximo domingo voltarei a sentar-me onde as palavras guardam os segredos, talvez grave na madeira o nome crepuscular das manhãs ou o cintilar da iris. 

António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).



A minha vizinha Maria Irene.

Na minha rua há uma senhora que me comove. Todas as tardes, senta-se na soleira da porta, depois do sol se esconder atrás das casas. Há muito que nos cumprimentamos sem sabermos nada um do outro. Tem idade de ser avó, mas a sua ternura é intemporal. Parece viver sozinha, vejo-a conversar com as vizinhas de avental, como se a rua fosse a extensão da sua cozinha. Quando mudei para a sua rua, foi a primeira pessoa que me cumprimentou, talvez hábitos antigos de boa vizinhança. O ritual manteve-se até hoje. Acena-me sempre como se fosse a última vez, sinto que é genuína e isso fez-me lembrar a minha velha rua de infância onde cresci. Durante quase um ano limitámo-nos a acenar, até que ousei falar-lhe. Sei agora que se chama Maria Irene.

Não é mais uma senhora simpática, é minha vizinha Maria Irene. A minha rua confunde-se com bondade da senhora que me traz cativo desde que a “conheci”. Em frente à sua casa houve dantes um colégio privado, agora em ruinas, onde existiu um elemento escultórico evocativo do nosso maior poeta, Luís de Camões, que viria dar nome à antiga Rua dos Olivais. O elemento escultórico foi recuperado e colocado, a 350 metros mais abaixo, ao fundo da rua, onde permanece com uma inscrição dos Lusíadas: “Como? Da gente ilustre Portuguesa/ Há-de haver quem refuse o pátrio Marte”, numa clara alusão aos irmãos de Dom Nuno Álvares - que sempre lutou pela independência de Portugal -, e que se colocaram ao lado do inimigo. Marte é o deus da guerra e aparece como elogio ao espírito guerreiro dos portugueses.

A palmeira que secou no antigo espaço do Colégio Camões parece ter a mesma idade da sua construção, mais de cem anos. Às vezes, detenho-me a olhar o velho edifício e fico a pensar nas recordações da minha vizinha Maria Irene. O mesmo imóvel acolheu, em Outubro de 1965, o Instituto Industrial e outras instituições públicas através dos tempos, mas hoje é um devoluto edifício de ampla volumetria. Dantes a minha rua teve uma vida difícil de imaginar, era um plinto de juventude onde cabiam os sonhos e o bulício da vida académica numa colina da cidade que se deixava espreitar pelo horizonte. Agora é apenas uma pacatez inspiradora, um fio de terra que ostenta o nome de Luís de Camões, a poucos metros onde viveu o poeta Miguel Torga.

As ruas vizinhas têm nomes de escritores, é um emaranhado de Literatura e de História que justifica, em parte, os nomes ilustres que, ao longo dos tempos, escolheram estas bandas. Sempre vivi em ruas com nomes de poetas ou de escritores, tive sempre muita sorte. Por instantes, recordo todos os seus nomes, há uma espécie de destino em cada morada, uma mão quase divina que me acolheu. Mas o que mais relevo, nesta última, é o exemplo de humildade da vizinha Maria Irene. Em cada itinerância trago comigo nomes e histórias que enchem uma biblioteca de saudade. Poderia enumerar a Graça, o José, o Bruno, a Madalena, o Fernando, a Maria do Céu, o Afonso e tantos outros. Viver numa rua é carregar a memória das árvores, dos animais domésticos, das crianças, dos episódios improváveis, dos laços que crescem e se quebram. Chegar a uma nova rua é uma aventura fantástica, é quase tudo novo, mesmo numa rua centenária.

Há um fascínio equivalente ao caloiro que chega à universidade, uma aprendizagem lenta e, muitas vezes, impercetível que acrescenta inquietação e, também, alegria. A minha vizinha Maria Irene há-de saber outras estórias ocultas que atravessaram a meninice de outras meninas da rua, que outrora teve outro nome, antes dos Lusíadas lhe servirem de morada. Quando esta crónica for publicada, prometo levar-lhe um exemplar do jornal e partilhar uma boa conversa ao fim da tarde, na soleira onde diariamente a encontro. A urgência das coisas ditas importantes está a matar a essência das cidades, transformando-as em dormitórios anónimos e desumanizados. A minha vizinha Maria Irene é um exemplo de resistência a uma certa modernidade, onde o melhor de nós não custa dinheiro: a simpatia.


António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).




O dedo afiado de Ricardo Robles

O milagre acontece quando perdemos a esperança e o Verão eleva o caso Robles à dimensão da virgem que jura que, depois da gravidez, a virgindade ainda dorme com ela. Os humoristas têm muita água para lavarem a má-língua e outras partes do corpo antes de Cristo descer à terra. Ficámos a saber que o imaculado Robles afinal é mais um “yupi” que não sabe surfar na crista da onda mediática. Não critico Robles por ser rico ou querer ser rico, não critico Robles por querer ganhar dinheiro como se trabalhasse para uma imobiliária, não o critico por acreditar no milagre das rosas, não o critico por pensar que somos todos pacóvios, sardões da poeira ou invejosos sem “pedigree”. Estamos habituados a que os meninos de Lisboa, "alfacinhas para sempre, cuidando que todas as praças deste mundo são como a do Terreiro do Paço" (Almeida Garrett), façam da estátua de D. José o seu “bouquet” de lantejoulas. A pior das misérias é a petulância investida de saber fátuo. Os “ismos” requentados com fervor nobiliárquico catequizando os incautos de passeios domingueiros. Os excessos são todos maus e já provaram que arrastam fragilidades inconfessáveis.

Nunca convivi bem com os que se arvoravam em donos da verdade e rotulavam os outros de “revisionistas” ou de fazerem o jogo da reação; nunca convivi bem com os que achavam que escrever poesia era desnecessário e depois “vendiam” os interesses dos trabalhadores da PT às administrações, dobrando a coluna para ascenderem na vida, embora pertencendo às cúpulas da extrema-esquerda; nunca acreditei que a Albânia fosse o melhor dos mundos, nem que a China fosse o dragão que alimentava a chama vermelha do socialismo, mesmo quando era adolescente. Conheço o areópago dos puros que perseguiam quem divergia dos papas ideológicos. Lembro-me muito bem o que disseram de Acácio Barreiros, o que fizeram a outros ex-deputados, antes da transfusão de sangue que deu origem ao Bloco. Antes havia a Lisnave, a Setenave, a Marinha Grande, as grandes fábricas onde a extrema-esquerda recrutava os seus quadros. Era nessa tarimba que os dirigentes aferiam o escopo da intervenção política e ganhavam terreno ao PCP e ao PS. O estreito caminho da utopia de uma revolução operária-camponesa cedeu terreno a novas causas e, também, à emergência de uma “nouvelle vague” de bonitinhos, charmosos e “modernos” com tiques simbólicos de má memória.

O dedo em riste de Ricardo Robles, espumando ódio à especulação imobiliária, numa sessão da Câmara de Lisboa, denuncia a montanha com pés de barro. Não basta ser mulher de César, é preciso parecer. E em política a coerência é o néctar que exala a confiança e a esperança. Rei morto, rei posto. O que fica do caso Robles é a filigrana da hipocrisia, a morte dessa espécie de puros que chegou à praia onde a nudez era ocultada pelo nevoeiro. Não está em causa o projeto político que o defendeu até ao ridículo, com a miopia corporativa de quem se esconde atrás das calças do pai quando chamam por ele. A ausência de humildade política, não o mesmo que arrogância, é a incapacidade para reconhecer os erros perante as evidências. Os estragos que este caso pode causar são imprevisíveis, principalmente, depois da família política ter dado um voto de confiança para que Robles se mantivesse como vereador.

Há para certa esquerda uma ética que às vezes é republicana, mas nem sempre. Podemos relevar o dedo afiado de Ricardo Robles, porque no melhor pano cai a nódoa e, felizmente, há detergentes aromáticos. A ironia não serve apenas para arbitrar os jogos de bolas de naftalina quando o prolongamento ultrapassa em muito o tempo de jogo; serve, também, para fazer bloco quando nos querem vender o melhor de dois mundos. Em Setembro a política regressará com matizes de Orçamento de Estado para 2019, as folhas começarão a cair e o equinócio anunciará outra peleja. As lições são muitas e nada ficará igual, principalmente, se a casa veio abaixo e trovões ao “roble”.
António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).




Diário de Notícias

Nunca imaginei escrever esta crónica. O normal seria não escrever sobre o Diário de Notícias. Mas há mortes anunciadas que doem, que vão gastando a esperança como se uma goteira pingasse sobre os ossos. A morte do Diário de Notícias pode ser a lápide anunciada de um certo jornalismo onde jaz o Diário de Lisboa, o Diário Popular ou A Capital. Há jornais que fazem parte das nossas vidas, pertencem à família, vão connosco para todo o lado: ao café, à praia, ao cinema, ao restaurante, às castanhas ou, simplesmente, ao jardim. Costumamos encontra-los nos aviões, nos comboios, nos quiosques, nas bibliotecas ou nas livrarias. Levamos uma vida inteira a tê-los por companhia.

Sabemos onde encontrar o que nos interessa, nas páginas destinadas a certos assuntos. Conhecemos quase tudo sobre os seus rituais, até se pode dizer que vestem o fato domingueiro. Há uma liturgia para o jornal que atravessou a nossa vida e que se transmite de geração em geração. Por isso, quando vou a um quiosque de jornais há um vazio de difícil tradução. Apenas me ocorre um nome: assassinato. Assassinaram o meu jornal, não está onde devia estar, o seu lugar foi tomado por outros companheiros de viagem que, também, devem estranhar a sua ausência. Desde sempre vou a um quiosque ver as “gordas” e comprar o jornal. Quando digo desde sempre, quero dizer desde que me lembro de ter começado a escrever no DN-Jovem, quando o jornalista Manuel Dias era responsável por esse suplemento. Foi aí que escrevi os primeiros textos e estabeleci uma relação de afeto com o jornal. 

Em Coimbra, conheci jornalistas de mão cheia: Fernando Madail e Soares Rebelo. A foto do meu primeiro livro foi da autoria do fotojornalista Luís Carregã, que, em 1987, trabalhava na delegação de Coimbra do Diário de Notícia. Quando ia a Lisboa visitava os meus amigos que trabalhavam na sede na Avenida da Liberdade. Subia o elevador até à redação onde se “faziam” as páginas mágicas de um jornal que nasceu em 1864. Havia nessas visitas um misto de sensações. Era um privilégio estar na redação onde havia tantas caras conhecidas, gente que ajudava a fazer o imaginário coletivo. A história dos jornais é a história do país contada nas páginas dos que tiveram o privilégio de a escrever no seu tempo. Cada visita à redação, ao templo, constituía uma memória inefável que guardo na melhor galeria das recordações. 

Durante alguns anos escrevi para o DN-Jovem, aquele suplemento que abria janelas aos jovens escritores. Quando cheguei a Coimbra o meu primeiro trabalho para o DN-Jovem foi uma entrevista a Túlia Saldanha, diretora do Círculo de Artes Plásticas. Seguiram-se outros trabalhos que culminaram com uma gala do DN-Jovem no Teatro Académico de Gil Vicente, em parceria com o, ainda, jornalista Vitalino Santos. A morte anunciada do Diário de Notícias é um luto difícil de fazer. Quando pela manhã vou a quiosque de jornais, não encontro o DN, é como se à mesa faltasse alguém da família, uma pessoa que tivesse morrido. A sua ausência traz sentimentos contraditórios: tristeza e raiva. A edição on-line é uma espécie de namoro virtual, não se cheira, não se toca, não se sente. 

Eu prefiro o papel, aquele que deixa tinta nos dedos, que serve para embrulhar castanhas, que protege o chão quando pintamos a casa. Em Portugal os grupos económicos compraram os jornais para fazerem política e controlarem a informação, outros criaram os seus próprios jornais com os mesmos objetivos. A maior parte dos acionistas dos velhos jornais são quase analfabetos, mas rodearam-se de lebres obedientes que nomearam obedientes porteiros. Estes despediram as grandes referências do jornalismo, fecharam delegações, contrataram inexperientes e baratos mancebos da palavra e o resultado é um óbito anunciado. É difícil de acreditar, mas a verdade é que o Diário de Notícias já não existe.
António Vilhena

(Crónica publicada no Diário de Coimbra).


Maternidade nova? Expliquem lá!


Esta crónica não pretende ser simpática, nem eu me devo calar por defender certas posições políticas. Coimbra foi a cidade que adotei para viver. Esta é uma cidade que eu amo e que me ajudou a ser como sou, com virtudes e defeitos aos olhos dos que me conhecem. Nunca deixei que me pegassem na mão para escrever qualquer encomenda. A independência é uma bandeira sem cor, um grito de liberdade que não se deixa sufocar. Claro que tudo isto tem um preço que eu conheço-o muito bem. Mas prefiro o compromisso com o livre arbítrio e não aceito chantagens e pressões pouco éticas.

Vem isto a propósito do debate que se gerou em Coimbra sobre a localização da nova maternidade. Há muito que se fala da necessidade de uma nova maternidade que reúna as existentes: Bissaya Barreto e Daniel de Matos. O debate é antigo e consensual, mas parece inquinado quanto à sua localização. Este país está cheio de sábios, que ninguém conhece, até integrarem uma comissão qualquer. O pior das comissões, que emitem pareceres, é que são nomeadas por quem vai decidir. Escolhem antecipadamente o perfil da decisão e escrevem os relatórios como marionetes. Assim, tudo parece lógico, quem dá parecer é escolhido por quem vai decidir. Entenderam? Claro que todos entendemos. Já ouviram falar de resultados manipulados no futebol? Eu se fosse hipócrita diria que não, mas todos saberiam que eu estava a mentir. 

Quem não sabe fica a saber que uma comissão nomeada por quem vai decidir a localização da nova maternidade disse que o melhor local é onde estão os Hospitais da Universidade de Coimbra (HUC – para todos perceberem). Nem dá para acreditar! Não é verdade? Mas foi isso que aconteceu. Essa comissão inspirada por São Jerónimo escolheu o local menos provável para semear flores. Escolheu o local, com toda a certeza, que tem mais carros por metro quadrado e mais multas de estacionamento. Às vezes é aconselhável não saber os nomes dos que constituem certas comissões de sábios para nos pouparem à vergonha. O futuro não lhes reserva nenhum Doutoramento Honoris Causa por essa folha curricular.

Vamos ao que interessa. Sabem quantos partos foram feitos em Coimbra, nas maternidades Bissaya Barreto e Daniel de Matos? A verdade dos números segundo a PORDATA atualizados a 20 de Dezembro de 2017: em 2001: 6681; 2009: 5962; 2010: 6128; 2012: 5202; 2013: 4823; 2014: 4725; 2015: 4949 e 2016: 4885. Se olharmos para os números constatamos que as mesmas maternidades que fizeram em 2016: 4885 partos, foram as mesmas que fizeram em 2001: 6681 partos. Em 2001 não havia hospitais privados em Coimbra, mas havia espaço, muito espaço disponível no perímetro dos HUC para a construção da nova maternidade. Mas esta questão nem se coloca neste momento. 

A decisão de asfixiar a nova maternidade nos HUC é política, não é técnica. Os que se escondem atrás do biombo, aligando questões técnicas, sabem que a decisão é política e que a semântica utilizada é uma montanha com pés de barro. A desativação do Hospital dos Covões foi um erro histórico e que deve entrar no debate sobre a localização da nova maternidade. É urgente recuperar a memória e desocultar esse processo de desmembramento de um hospital de referência. Há, com toda a certeza, linhas de contacto entre aqueles que defendem agora a localização da nova maternidade nos HUC.

Então, expliquem lá porque eu também quero perceber. Por que razão querem instalar a nova maternidade num espaço, que já esgotou a sua capacidade física, que não tem estacionamento, que é uma fábrica desumanizada numa zona que carece urgentemente de respiração? Por que não aproveitam as instalações do Hospital dos Covões ou do antigo Hospital Pediátrico? Não venham com argumentos demagógicos dizer que as grávidas precisam de outros serviços. Então alguém acredita nisso? Então as maternidades Bissaya Barreto e Daniel de Matos não têm respondido com competência técnica ao longo da sua existência? Os meus filhos nasceram numa dessas maternidades e milhares de outras crianças. Este é um caso em que não vale tudo. A ditadura das comissões, que são nomeadas por quem decide, são embustes vestidos com roupa emprestada. Haja decoro e bom senso..




António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).


AS ASAS FERIDAS DOS VELHOS PÁSSAROS.

Adormecem nos ramos. Os seus voos nunca se afastaram do horizonte onde esboçaram as primeiras acrobacias. Quem conhece os seus cantos sabe que a musicalidade varia consoante o ano. É na Primavera que a polifonia assume o esplendor dos dias luminosos. Sob a copa frondosa das árvores do terreiro, as sombras cobrem os bancos de madeira e chamam, todas as tardes, os amigos que cresceram naquele lugar. Hoje são velhos, dizem. Chegam depois do almoço quando a brisa anuncia a descida do sol. Não precisam de combinar nada, há uma agenda secreta que clama o reencontro como se esse fosse o único compromisso da vida que resta. 

No largo da vila ainda resistem as árvores da infância, o chafariz público inaugurado no ano da República, os candeeiros pregados às paredes, a mercearia da Tia Joaquina, e argolas na parede onde, outrora, havia um ferrador. No último sábado de cada mês a feira era o acontecimento mais importante, todos os caminhos desaguavam no terreiro de terra batida. Havia de tudo: galinhas vivas, porcos, burros, barraquinhas de tiro, pinhoada de alicante, carrosséis e vendedores de mantas onde se pagava uma e levava-se cinco. O mundo inteiro estava ali, onde o barulho das conversas trazia um delta de sons, uma revoada de gente que, desde sempre, conheceu a feira no Largo dos Pássaros. 

O Manuel recorda-se de ir com a avó comprar farturas, consegue indicar exatamente o local onde isso acontecia. O Adérito gostava de tirar o retrato sentado no cavalinho de pau. O Serafim preferia ver os burros que os ciganos levavam para vender. “Eram os melhores animais do mundo”. São estas as recordações que os amigos das sombras e dos pássaros falam quando estão juntos. Há muito que estão reformados, agora o tempo corre ao sabor do dia da reforma. Os netos estão longe, vivem nas cidades. Quando regressam de férias é ali que brincam. Há um reencontro de gerações que anima os olhos daqueles homens. Apesar de algumas dores, continuam a sorrir sem pressa. Em tempo de férias os emigrantes dão outra vida ao comércio e o largo fica cheio. O momento alto é quando a Nossa Senhora da Conceição sai da igreja para a procissão. 

Nesse dia a vila parece que cresceu, lembra os velhos tempos da feira. O largo enche-se de gente que aguarda para ver a Nossa Senhora, é um ritual que se repete em Agosto. Em passo lento, os que podem, caminham atrás do andor, vão em comunhão rezando sob um sol inclemente. O Serafim já não pode levar o andor como noutros tempos em que tinha força, agora são outros “moços” que o fazem. O padre Gregório entrega o andor, com mais de trezentos quilos, aos jovens bombeiros que o levam até à Cruz do Horizonte, onde decorre uma missa campal. Dizem que aquele lugar foi onde a Nossa Senhora da Conceição se protegeu do sol, tendo aí nascido uma árvore de grandes sombras onde a passarada pernoita. Mas há velhos pássaros que parecem ter as asas feridas, já não abandonam os ramos. 

O Manuel, o Adérito e o Serafim são amigos desde os tempos da caça às perdizes, conhecem os córregos e os vales como as suas mãos. Depois das caçadas ficavam na taberna a petiscar e a cantar. Nesse tempo a vida era dura e o canto ajudava a esquecer. Depois veio a guerra e a ida para África. De repente tudo mudou. Tudo menos o Largo dos Pássaros. Quando regressaram da guerra voltaram a encontrar-se no mesmo sítio de sempre. Ainda recordam esses tempos, mas não gostam de falar muito dessa experiência. Preferem falar de futebol. A guerra traz sempre uma memória dolorosa, talvez, por isso, o Adérito diga que ainda há “asas feridas de velhos pássaros”. Talvez a metáfora seja, também, uma sombra simbólica da memória inquieta.


António Vilhena

(Crónica publicada no Diário de Coimbra).


António Arnaut,
o aristocrata da ética.

A notícia interrompeu outra crónica quase escrita. Deixei tudo, desci as escadas e procurei o sol. Foi ali, junto a uma parede branca que procurei o alento e a respiração. A perda de um amigo é uma experiência dolorosa. Num ápice o seu nome estava em todo o lado: nos jornais, nas rádios, nas televisões e nas redes sociais. Apercebi-me que se manifestavam com enormes textos, acompanhados de fotografias com o homem bom. Alguns eram manifestamente excessivos. De repente, o seu nome estava na rua, em todas as vozes como um pregão: António Arnaut. Nos próximos dias todos falarão do ministro, do advogado, do maçon, do político ou do poeta. Todos sabemos quanto os portugueses são generosos e gostam de partilhar a dor por aqueles que, em vida, foram justos e leais aos princípios. Escrever a quente tem riscos, mas, também, fotografa a emoção como uma sombra. 

O Serviço Nacional de Saúde, “uma teimosia”, mudou e ajudou a vida de muitos. Mas o que mudou a minha vida foi um discurso que, ainda adolescente, ouvi a António Arnaut, nos anos oitenta, aquando das comemorações do 25 de Abril, às portas da prisão do Forte de Caxias, quando Otelo Saraiva de Carvalho estava detido. As suas palavras indicaram-me o caminho da Justiça, da Liberdade e da Fraternidade. O seu discurso evocava a Geração de 70, nomeadamente, Antero de Quental. Esse caldo de referências foi a gota suficiente para provocar um terramoto de curiosidade num adolescente inquieto e comprometido com a utopia de mudar o mundo. Quando cheguei a Coimbra não me cruzei logo com António Arnaut, mas via-o passear com Miguel Torga. O primeiro contacto surgiu na Galeria Primeiro de Janeiro, na rua Ferreira Borges. Pedi-lhe um autógrafo para o seu primeiro livro de poesia que eu tinha comprado em Beja. 

O seu espanto foi enorme, uma vez que esse livro não tinha sido distribuído e havia poucos exemplares. Foi assim que nos conhecemos. Depois a vida encarregou-se, noutros lugares fraternos, de nos ajudar a construir uma bela amizade. A literatura foi a mão que nos aproximou; a política foi o rio inevitável que desaguava na tolerância. Com António Arnaut conheci imensas personalidades. Quando olho para trás, já não vejo Emídio Guerreiro, Fernando Vale e Edmundo Pedro. Que privilégio que eu tive! Mas essas memórias não cabem nesta crónica. As referências morais de Portugal estão morrendo, aqueles que lutaram por valores, sacrificando a própria vida, são cada vez menos. E o que fica? E quem fica? Uma inquietante caldeirada de gente que toma os lugares, sem história, sem princípios, formada nas bermas do oportunismo e do espertismo. Dirão que estou a generalizar, mas eu não confundo a árvore com a floresta, eu olho o dedo e a lua. Infelizmente, a realidade é mais cruel do que a ficção. 

António Arnaut deixou um legado ético, aquilo que são os ideais que orientam a conduta humana, que exclui o primado das paixões e os actos irrefletidos do Homem; aquilo que cada um deve valorizar individualmente e que não põe em causa os princípios sociais; ou seja, a ética republicana. Quando um homem se agiganta para além das suas convicções, com coerência e frontalidade, içando a justiça e a tolerância, o povo sai à rua. Foi isso que se viu na Igreja do Convento de S. Francisco, em Coimbra. Uma ampla manifestação de reconhecimento e dor pelo homem bom: António Arnaut.

António Vilhena

(Crónica publicada no Diário de Coimbra).



Alice Vieira.

“Olha-me como Quem Chove” é o último livro de Alice Vieira. Há uma Alice Vieira antes e depois desta obra-prima. Estamos na presença de uma dádiva dos deuses, de uma libação que obrigou a Esfinge a falar. Este livro só acontece depois de uma vida cheia. É a súmula da terra e da esperança enquanto o silêncio ganha força para renascer, enquanto o passado reencontra o silêncio de outros passados que a memória perpetuou. Um livro tem o prodígio de trazer as lágrimas como vírgulas, de nos resgatar ao mundo das sombras como se quiséssemos por instantes ser Perséfone. 

É um catálogo de memórias, um caleidoscópio de emoções, um passo que não tem pressa. Às vezes é preciso parar a meio da leitura de um poema, como se precisássemos de olhar o horizonte, como se sentíssemos dores nos joelhos, como se o verso seguinte exigisse uns óculos emprestados de alguém da nossa idade. Vergílio Ferreira escreveu “Em Nome da Terra”, um romance perene; e Alice Vieira escreveu “Olha-me como Quem Chove”, uma pétala suculenta que não envelhece. É um livro de amor quando fala da morte, das memórias, dos lugares ou dos medos.

Vergílio Ferreira escreveu uma frase intemporal no “Em Nome da Terra”: “O amor é aquele que a gente encontra no outro, mais aquele que a gente lá põe para depois irmos gastando com o tempo”. Esta escultura olímpica de Vergílio bem poderia servir de pórtico a este “Olha-me como Quem Chove”. Às vezes, esperamos por alguém que sabemos existir, esperamos por esse amor omnipresente que ocupa todos os lugares do nosso corpo entre o silêncio e o esquecimento, entre a primeira luz da manhã e a insónia, entre o imaginário de todos os “quereres” e a invisível cumplicidade das “árvores que um dia aprenderam os nomes” que “ dando sombra ao que/possivelmente/só elas soubessem que/andaria à deriva pelas nossas vidas” (pg. 18). Mas há lugares que não mudam com o desenvolvimento das cidades: praças, ruas, estátuas e lugares de namoro. Lugares de encontro, de piscar de olhos, atrás de uma mesa de café como se Édipo soletrasse nos olhos o perfume da paixão. 

Da vida, como das viagens, apenas sabemos que começam, depois os deuses jogam aos dados. “Nunca soube exactamente o que/seria um caminho certo” (pg.19) mas é nessa incerteza que se constroem sonhos e a força da vida traz “o rumor das breves noites de fevereiro em que/prometíamos nunca mais amar ninguém/depois de nós” (pg. 20). A força do amor percorre inexplicáveis labirintos para não nos perdermos. Ceder “a vida por desleixo” (pg.21) pode ser uma negligência, mas é “à beira do tempo que foi nosso/e onde tudo se perdeu menos/a memória…” (pg.22) que cresce a alfazema. O que fica depois de gastarmos o amor na pele de cada um, a morada de querer tudo mas onde só cabe o que sentimos, é um espaço de palavras, um poema vendado às incertezas de tanta ausência. Sim, “só mais tarde percebi que/o nosso amor era apenas um/inquilino temporário da nossa pele” (pg.22). 

Mesmo que o amor seja eterno, ele é “apenas um/inquilino temporário”- estamos sempre de passagem. A alfazema é uma planta selvagem, cresce espontaneamente em qualquer lugar, resiste e multiplica-se, é rebelde. O seu cheiro é capaz de ocupar os silêncios dos amantes quando “as conversas sem sentido” (pg.24) são “cada vez mais” (pg.24), devolvendo o que vai faltando ao diálogo dos que ousaram pensar: “nunca mais amar ninguém” (pg.20) depois desse amor que parecia ser só dos dois no “caminho de Damasco” (pg.23). Esse caminho leva-se evocar as palavras de Paulo aos Coríntios: “Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o címbalo que retine. E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria.E ainda que distribuísse todos os meus bens para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse amor, nada disso me aproveitaria.”

Viver é seguramente o maior dos milagres da natureza, mas a voz poética solta o murmúrio: “nunca pensei/ que morrer custasse tanto” (pg.28). Miguel Torga quando estava internado no IPO de Coimbra e lutava pela vida, no seu último Diário, o XVI, 1993, no poema “Arritmia” escreveu: “A vida é lenta quando a morte tem pressa”. Depois chega esse dia em que os objectos são os últimos referentes da cumplicidade, como o porta-chaves, as pastilhas e os retratos. Mas o pior é quando as aves nocturnas iniciam o voo de sobrevivência, quando as sombras se fragmentam e as persianas das janelas não distinguem as estrelas. Este livro doeu-me, deixou-me uma nódoa no coração. Vou seguramente voltar a lê-lo, é uma carta de amor, mesmo quando o medo toma os músculos das palavras, quando a “fogueira de tudo o que está certo” (pg.67) é a constelação de um peregrino em viagem. Chegar é a certeza da confissão, do “grito da terra sempre pouca/para a noite em que ficarmos sós” (pg.67).

António Vilhena


(Crónica publicada no Diário de Coimbra).


À mesa com Miguel Torga.

Miguel Torga é sinónimo de falar de alguns livros que atravessaram as nossas vidas. É o caso de “A Criação do Mundo”, “Fogo Preso”, “Contos da Montanha”, “O Senhor Ventura”, “Bichos” e “Diário”. Coimbra é uma cidade privilegiada, porque foi nela que o poeta estudou, trabalhou e viveu. A memória de Miguel Torga confunde-se com alguns lugares, principalmente, o seu antigo consultório no Largo da Portagem. Durante o desfile dos Quartanistas da Queima das Fitas, era comum ver o poeta, de bata branca, à janela com a sua companheira, Andrée Crabbé, acenando aos estudantes. A festa chega sempre em Maio e é com saudade que me lembro de ver, na moldura da janela, do seu consultório, Torga e Crabbé. O fotojornalista Luís Carregã registou, ao longo dos tempos, alguns desses momentos.

Miguel Torga era um homem de muitos requintes. A prová-lo saiu, recentemente, o livro “Sabores da Mesa na obra de Miguel Torga”, da autoria de Dina Fernanda Ferreira de Sousa, e a chancela da Colares Editora. Com prefácio de Eloísa Álvarez, a obra, permite-nos uma viagem pelos ambientes e gostos do poeta, convidando-nos à descoberta das iguarias intemporais: as sopas, as migas, a caça, o fumeiro, as compotas, os bolos e os doces. Trata-se de um livro necessário, escrito com rigor científico, mas numa linguagem clara e envolvente. Este estudo, que resgata os sabores que Torga cultivava em diferentes rituais, em família ou com os amigos, está amplamente documentado e ilumina um outro lado do poeta menos conhecido. 

A autora viaja pela obra torguiana e, com delicadeza, diz-nos que o vinho fino era o “sol engarrafado” com que autor de os “Bichos” recebia os amigos. Ao longo da viagem de cento e cinquenta páginas, Dina de Sousa leva-nos pela mão aos lugares de afectos, às paisagens, aos nomes dos amigos, como António Arnaut, Cristóvão de Aguiar ou, ainda, Maria da Conceição Morais Sarmento. Através deste livro ficamos a saber que torga gostava de pão caseiro, vinho à lavrador, arroz de carqueja, vitela na púcara e de perdiz à prior. Se é verdade que a memória dos sabores nos persegue, como disse António Arnaut, esta obra deixa-nos as impressões do poeta com o escritor Jorge Amada: “Almoço com Jorge Amado. Perdiz brava de Montesinho, posta mirandesa e tinto maduro do Douro(…) três horas íntimas, simples, fraternas, sem literatura, só gustativas, de preito e comunhão”(pg. 29). 

Também, nas festividades, as frugalidades são as rabanadas do Natal, o folar da Páscoa, licores, vinho e aguardente. É preciso lembrar que Torga era caçador, actividade que cultivou, durante muito tempo, ao lado do seu amigo Padre Valentim. “De espingarda em punho, a sentir o chão nos pés, o vento na cara, a luz nos olhos, e a ler no rabo do cão, radar incansável e certeiro, o movimento invisível da perdiz ou da galinhola” (pg.42).

A festa da matança do porco constituía uma memória que Miguel Torga gostava de evocar: “Para matar, chamuscar, limpar, abrir, desmanchar, guardar o sangue, fazer enchidos, cortar os pedaços de carne ou de toucinho, separar espáduas e corozis, formiga toda uma multidão atarefada, mas viva e alegre”(pg.35). Esse animal “o porco criado e cevado com desvelos de que gozam poucos humanos, lá está a sangrar no banco do sacrifício (…) impressionou-me sempre na vida aldeã este cerimonial doméstico, que acaba por deixar morto, de pernas para o ar, pendurado na trave da casa”(pg.35).

“Sabores da Mesa na obra de Miguel Torga” dedica mais de cem páginas a receitas de iguarias que o poeta apreciava. Desde o caldo verde, caldo de castanhas, migas de cavalo cansado, sopa de torresmos ou sopa de carolos. Destaco, ainda, o bacalhau assado com pão de centeio, sardinhas borrachonas, codornizes estufadas, galinha tostada com arroz de forno ou lebre de vinho tinto. E para terminar o menu: a tigelada, a regueifa doce ou o doce de abóbora. Para Miguel Torga, “comer é um acto de cultura. O civilizado alimenta-se; o selvagem enfarta-se”. Este é um livro imprescindível para reconhecer e reencontrar o poeta nos “sabores da mesa”.

António Vilhena

(Crónica publicada no Diário de Coimbra).



O CISNE SEM PESCOÇO.

Devia ser proibido aos loucos tomarem o poder. Mas a verdade é que a História está repleta de maus e trágicos exemplos. Há quem diga que a pior das loucuras é o próprio poder, um afrodisíaco compulsivo que gera fome insaciável e corrompe os sentidos. Muitas vezes usa-se a Lei para cercear os mais elementares direitos, usa-se a demagogia para manipular a opinião pública e usa-se o esgoto para regar o jardim. As flores que nascem não recusam a água suja, mas o jardineiro, que sabe a origem da rega, não ignora que o viço das flores esconde a mais putrefacta fonte. É o que acontece quando se usa a Lei mas não se faz justiça. Rega-se, mas o que floresce resulta da retórica urdida onde as “evidências” condenam, dispensando as provas, e o arguido é condenado por “indução." 

Qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência. Os loucos dissimulam os seus ímpetos até conquistarem o poder e os caudilhos acham que o mundo só existe por causa deles: são míopes de umbigo dilatado e surdos de corpo inteiro. Um cisne deve ter pescoço alto para que a sua beleza possa inspirar os que sonham vencer as ambições mundanas, estimular as utopias, mobilizar as mais nobres causas e unir os que, sendo diferentes, são irmãos neste planeta onde as diferenças adicionam o que há de mais fascinante entre nós. Um cisne deve ter pescoço alto para inspirar os que acreditam na beleza das Artes e, assim, receberem da mão gigante dos deuses, que tudo podem e nada esquecem, a luz da sabedoria. Um cisne representa o voo e a beleza das fragilidades e, por isso, devia servir de inspiração aos que usam a sobranceria e a altivez. 

Estou a pensar no presidente do meu Sporting Clube de Portugal, que parece sempre zangado com tudo e com todos. É inaceitável o seu comportamento truculento e deselegante, como se o Clube fosse seu, como se o Sporting não tivesse história, como se precisássemos de ter um “bombista” para implodir a memória dos que fizeram daquela grande instituição um clube eclético. Ser presidente é ter obrigações e deveres: unir o clube e criar condições para que os protagonistas possam ser cisnes. Mas quando se confunde um cisne com um narciso, qualquer brisa é considerada uma ameaça. A idade, só por si, significa pouco quando o bom senso impera. Bruno de Carvalho pode ter uma gestão positiva, mas atingiu um nível de conflitualidade que é insustentável, sendo parte do problema e não da solução. 

Ao longo da sua gestão foram manifestos os tiques fascizantes, que nunca escondeu, nomeadamente na última assembleia de sócios, onde exigiu que os sportinguistas escolhessem entre ele ou o caos. Às vezes é preciso o caos, é necessário renascer e retirar do caminho os abcessos que teimam em deformar as organizações. Os seus defensores podem vir com uma folha de Excel falar das virtudes do seu mandato, mas o seu comportamento destrói tudo o que de bom tenha feito. É insustentável, por mais tempo, dar guarida a um incendiário que não respeita a memória e se assume como o paladino da verdade. O mundo está repleto de salvadores que não sabem cuidar de si próprios e prometem o paraíso a quem os seguir. Quero ver Bruno de Carvalho sair pela porta, sem ódios nem vinganças. A instituição Sporting continuará a ser grande e a servir Portugal.

António Vilhena

(Crónica publicada no Diário de Coimbra).



O ÚLTIMO PRÍNCIPE DA BAIXA.

A história das cidades não está apenas nos museus, mas nas ruas, nas casas, nas estórias, nas tertúlias. Não digo que tenho saudades, apenas me lembro como o tempo mudou o que era inevitável. Mas entre tantas mudanças há registos da fita do tempo que resistem à memória. Quando cheguei a Coimbra, em 1984, caloiro e inocente, encontrei uma Coimbra romântica e fervilhante de academismo, de gente com livros debaixo do braço, de cafés onde se podia estudar a troco de quase nada. Entre eles destaco os cafés desaparecidos: Internacional, Arcádia, Brasileira e Central – a nova Brasileira apenas herdou o nome. Depois havia espaços de culto como as livrarias Bertrand e Almedina na rua Ferreira Borges. 

A Bertrand tinha um livreiro Felisberto Lemos que era uma lenda, cultíssimo e quem Manuel dedicou o poema “Livreiro da esperança” no livro “Praça da Canção”; na Almedina perorava o inesquecível Joaquim Machado, homem de visão e amigo dos livros e dos autores. Dessa cumplicidade sobra a “Loja das Meias”, a reminiscência que resiste na Rua Ferreira Borges como um ícone do tempo. A Galeria do Primeiro de Janeiro, onde conheci o pintor Mário Silva, estava ainda em atividade. Na livraria Bertrand havia uma estante só com livros de Miguel Torga. Uma vez perguntei ao Felisberto a razão daquela estante ter só livros de Miguel Torga. Quase em segredo foi dizendo que eram livros que o poeta trazia para a troca, quando ia comprar outros livros. Comecei a dar mais atenção a essa estante, pois era possível encontrar títulos raros do autor de “Bichos”. 

Essa estante só desapareceu depois da morte do poeta. Havia uma relação muito forte entre os livreiros de Coimbra e os escritores. O termo “livreiro” remonta ao século XVI e servia para designar “os promotores das cópias destinadas à venda". Aqui fica o registo de algumas livrarias conhecidas, em Coimbra, no século vinte: Livraria Moura Marques, Livraria Moderna e Livraria Cunha, Livraria Neves, Livraria Académica, Coimbra Editora, Casa do Castelo Editora, Livraria Gráfica Conimbricense, Livraria e Tipografia Editora Atlântica, Livraria Gonçalves, Académica Editora, Livraria Santa Cruz, Livraria Portugália, Livraria Luso-Espanhola e Livraria Arcádia. Desse passado resiste a Livraria Bertrand e a Loja das Meias. E se insisto nesta última é porque o seu proprietário é o clarão vivo desse passado. O senhor Cândido Carvalho, homem educado e de trato irrepreensível, é, ainda, o sopro de uma geração de comerciantes que conheceram o esplendor da Baixa da cidade. Excelente conversador e protagonista de muitas histórias, o senhor Carvalho, como é conhecido, é o último príncipe de uma geração de ouro. Certo dia entra na sua “Loja das Meias” o escritor Baptista Bastos interessado em ver laços. 

O senhor Carvalho reconheceu-o de imediato. Quando o escritor ia pagar o laço, o senhor Carvalho disse-lhe que estava pago. Baptista Bastos perguntou-lhe: quem pagou? A resposta não se fez esperar: “foi um tal de Carvalho”. O Baptista Bastos fez silêncio e reagiu: É sempre o mesmo, o meu amigo Montezuma de Carvalho. Enquanto o escritor se despedia, o senhor Carvalho ria. Esta é uma história fabulosa entre tantas outras que mereciam, também, ser contadas. A livraria de Miguel Carvalho encerrou recentemente, um livreiro que é, também um poeta, um editor, um homem de cultura. A sua livraria irá juntar-se às imensas livrarias que cito nesta crónica e que não resistiram às leis do mercado. Não basta defendermos causas justas para sermos felizes, é preciso que, também, sejamos felizes quando perdemos certas causas.


António Vilhena

(Crónica publicada no Diário de Coimbra).


Clotilde Fava e Trópico de Câncer.

Coimbra é a cidade de encontros, de probabilidades e de grandes paixões. A sua história dispensa qualquer introdução que não seja amá-la. Habituou-nos à surpresa, ao agigantamento, pese embora, a crítica fácil e destrutiva. Mas a sua grandeza inclui a tolerância e releva as línguas viperinas que persistem numa miopia de tendência única. Infelizmente, sabemos que fazer bem é um exercício que exige diálogo e disponibilidade. Acontece que, muitas vezes, nenhuma destas variáveis estão presentes quando se trata de agigantar a cidade da Rainha Santa Isabel. Coimbra está, inequivocamente, nas rotas da modernidade, foi exemplo a Geração de 70, quando as novidades chegavam de Paris no comboio da Beira Alta. 

A secular Universidade de Coimbra projetou o nome da cidade, mas a contemporaneidade exige o “regresso” da sua diáspora cultural. As influências do seu universalismo ligam-nos diretamente à independência do Brasil e aos países irmãos de África. No Museu do Chiado, em Coimbra, está patente uma exposição da artista Clotilde Fava que exige uma visita. Se digo exige, é porque a considero um acontecimento cultural relevante. Corro o risco de me repetir, mas as obras expostas são uma viagem pelas reminiscências culturais que o universalismo português soube cultivar ao longo dos séculos. As cores fortes de África, emprestam às mulheres, que carregam um quotidiano difícil, a expressão de resistência que as ajuda a vencerem as trevas e as dificuldades. 

O tempo e o espaço são partilhados com animais domésticos e de criação, pertencem ao círculo íntimo da família, estabelecem diálogos afetivos, cultivam relações de vizinhança e de proximidade, devolvem um conceito de liberdade onde a existência é a possibilidade de uma Arca de Noé sem exclusões. O perfume da terra escura mistura-se com as tintas, dá aroma psicológico à pigmentação, metamorfoseia-se no erotismo, alimenta uma narrativa que adquire vida na expressão feminina, não feminista, nos corpos retratadas. Clotilde Faca frequentou a Escola Superior de Belas Artes de Lisboa - Curso de Escultura – 1962, é membro das Associações: Sociedade de Belas Artes de Lisboa, Cooperativa Árvore, Porto, Círculo de Bellas Artes de Madrid. “Para Além do Trópico de Câncer” traz-nos a vivência de Angola, o apego à cultura do sul: Cabo Verde e o Alentejo. 

As figuras retratadas habitam o nosso imaginário colectivo, misturam-se com os mitos, a água e o fogo, elementos de outras cosmogonias, antes dos deuses se apropriarem do amor. A paleta de emoções que a exposição de Clotilde Fava proporciona é uma espécie de casa em mudança: queremos ver tudo em simultâneo com receio de não ter tempo, ou, ainda, um parece que já vimos tudo em cada tela, porque o seu traço é identificado em todas as suas obras. Temos pressa de ver e depois demoramo-nos a saborear os olhos grandes, os seios, os lábios grossos, os braços volumosos, os cabelos amanhados, as cores vivas, o antropomorfismo dos galos, dos peixes, a sexualidade. As obras expostas são as joias da artista, o caleidoscópio do seu templo íntimo. A prova do que afirmo está no exemplo de uma tela exposta, que a artista voltou a comprar a um particular, para a devolver ao seu templo. É uma oportunidade ver as obras de Clotilde Fava, em Coimbra, uma artista que já expôs em Itália, Argentina, Alemanha, China, França, Macau, Inglaterra e em quase todas as cidades de Portugal.


António Vilhena

(Crónica publicada no Diário de Coimbra).



João Varela Gomes.

A morte de João Varela Gomes (1924 -2018) traz-me à memória um episódio significativo: o assalto ao quartel de Beja, na madrugada de 1 de Janeiro de 1962. Um dia o meu pai, já eu era adolescente, contou-me uma história fantástica: “Eu trabalhava no Hospital da Santa Casa da Misericórdia, em Beja, quando se deu o assalto ao quartel. Nessa noite entraram muito feridos, mas houve um deles que vinha mesmo mal. Ele entrou pela porta da carvoaria para não ser registado. Estava a sangrar muito e com dores. Ele pensava que ia morrer, pediu-me ajuda. Eu fiquei junto dele, sem saber o que fazer. Fui buscar compressas e lavei-lhe as feridas – isto tudo na carvoaria. Fiquei ali algum tempo e ele perguntou-me se era casado, se tinha filhos. Disse que tinha um filho com um ano. - Então, amanhã, se puderes traz-me o teu filho para o ver. No dia seguinte, assim fiz. Ele começou a chorar quando te viu ao meu colo. No final disse-me: Já posso morrer. Nunca mais me esqueço disso. Ele pensava que ia morrer. Esse homem chamava-se Varela Gomes”.

Muitos anos mais tarde, em Beja, reconheci-o num café com amigos, de que destaco o antifascista João Honrado. Aproximei-me e disse que tinha uma história para lhe contar. Reproduzi o que o meu pai me contou anos antes. No final, ele não resistiu, sucumbiu num mar de lágrimas inacreditável, abraçou-me e mandou-me sentar. Fiquei ali, no café Luís da Rocha, entre homens de barba rija, que sabiam o que era a luta contra a ditadura e que tinham sofrido na pele todas as torturas. Por exemplo, o João Honrado, era um homem gigante e de voz grossa, passou mais de vinte anos nas prisões sujeito à tortura do sono e outras indizíveis. De vez em quando, o Coronel Varela Gomes dava-me uma palmadinha nas costas, a sua maneira de me lembrar que havia uma cumplicidade que nos ligava à vida. Foi para mim um dos momentos mais extraordinários, uma lição de história, de heroísmo e de solidariedade.

O Coronel Varela Gomes foi um homem de carácter, determinado e solidário. A força das suas convicções não lhe trouxe mordomias depois do 25 de Abril de 1974. Pelo contrário, em 1975 viu-se obrigado ao exílio. Durante o fascismo foi condenado a seis anos de prisão, tendo cumprido a pena na Penitenciária, Aljube e Peniche. Apoiante desde a primeira hora da candidatura de Humberto Delgado, em 1958, atravessou a resistência ao antigo regime ao lado da sua mulher, Maria Eugénia, ela também prisioneira política, já com quatro filhos menores. Foi ele que em 1974 mudou o nome de “Ponte Salazar “ para “Ponte 25 de Abril”. 

O filho mais velho – já falecido -, o escritor Paulo Varela Gomes escrevia no “Público”, em 2012: "Lembro-me: a minha mãe, a quem não deixaram abraçar os filhos pequenos, encharcando com lágrimas os punhos cerrados de fúria com que agarrava as grades do parlatório de Caxias. O nosso terror. O meu pai, numa cela da Penitenciária de Lisboa, entubado, magríssimo, a voz quase apagada, um fantasma desvanecido contra a luz da janela". Não pedimos para nascer em lugar nenhum, mas Beja, minha pátria de berço, deu-me, também, o privilégio de ter esta história fantástica que o tempo perpetuará para que os meus filhos a possam contar aos meus netos.

António Vilhena

(Crónica publicada no Diário de Coimbra).



“Hora pequena”

Há expressões que resumem séculos de sabedoria popular, são a condensação de muitas gerações que sintetizaram as aprendizagens. Ao longo da vida, ouvimos provérbios que parecem feitos para ilustrarem quase tudo, são a síntese da voz colectiva. Isso acontece em quase todas as áreas. Por exemplo, na agricultura: “tudo vem no seu tempo e o nabal pelo advento”, “caindo o Natal à segunda-feira, pode o lavrador alugar a eira”, “sete nevadas e um nevão dão muito pão” ou, ainda, “quem vareja antes do Natal deixa o azeite no olival”. Mas a mais estranha das expressões é a “hora pequena” que é desejada quando uma mulher está grávida. Ou seja, deseja-se que o bebé saia de patins ou de esquis, de preferência sem tocar à campainha. Quem viu a série dos Monty Phyton deve lembrar-se daquele sketch da dama irlandesa que, enquanto passava a ferro, o filho decide cair. Não vejo nada mais ilustrador da hora pequena, a não ser na política. 

O que ontem era, logo já não é; ou, ainda, “fui convidada e desconvidada”. Em política os provérbios mais adequados serão: “quem com ferros mata, com ferros morre” ou “quem semeia ventos, colhe tempestades”. Todos conhecemos situações que ilustram estas curtas frases. Infelizmente temos uma galeria cheia de maus exemplos que fazemos questão de esquecer. Não há melhor resposta do que a indiferença e o esquecimento. Na verdade, é muito comum a deslealdade. Em política a incoerência e a falta de solidariedade podem ter juros elevados. Não se pode estar bem com Deus e com o Diabo, eles são incompatíveis e, principalmente, não jogam aos dados. A coerência é, em política, o “ethos” que deve servir de referência. 

A “hora pequena” bem podia ser a “porta pequena”. Respigando um provérbio agrícola para a política, diria que “talo sem espiga não pode dar farinha”. Nestes tempos de grandes e pequenos desvios, a ironia e o humor parecem afigurar-se como a receita mais adequada para interpretarmos os fundamentalismos - são todos maus, porque ocupam territórios de exclusão em nome de reivindicações aparentemente justas. Há neste momento uma autocensura em relação a determinados temas, porque os “puros”, diga-se os hipócritas, funcionam como corporações ofendidas, legitimadas pelo “sangue-azul da linhagem”. São justiceiros sem acusação, denunciadores com selo de vingança e oportunistas sem escrúpulos. Pelo meio há, com toda a certeza, aquele(a)s que têm razões e que devem ser protegido(a)s. 

Não há pachorra para tantos “ismos” e bonecas loiras. A poeira há-de assentar e a indústria da hipocrisia terá tempo para reescrever a sua história, não ocultando as estórias que não chegam à ribalta. A “hora pequena” pode servir de exemplo semântico aos que têm pressa em mudar de vida. Às vezes, é preciso começar de novo, avaliar e mudar de margem. Pior do que ver as águas, aparentemente as mesmas, é habituarmo-nos à lama que nos impede de ver os peixes no fundo do rio. “A isca é que engana e não o pescador que tem a cana" - lá diz o provérbio. Nesta quadra de Carnaval Trapalhão não faltaram referências satíricas a quem a molhou o pé na água-benta e é mais papista do que o Papa. Que os deuses sejam argutos e saibam fazer justiça, porque no nosso mundo há quem precise de ler a “Oresteia” de Ésquilo.

António Vilhena

(Crónica publicada no Diário de Coimbra).



“ACORDARAM AS BORBOLETAS”


Havia um jardim com bancos de madeira espalhados entre os canteiros. As crianças corriam e escondiam-se atrás das árvores, exorcizavam os medos, mas sempre com os pais à distância de um olhar. Ao final da tarde, as crianças divertiam-se no parque, havia um lago ao fundo com cisnes emproados e “gaivotas” de todas as cores. O verde da mata trazia a paz e o canto dos pássaros, era uma paleta de cores e sons, talvez o paraíso começasse ali, talvez o mundo tivesse começado assim. Naquele lugar ninguém falava alto, a natureza modelava as vozes, a paisagem impunha a soturnidade poética e, na folhagem mais frondosa, os namorados ensaiavam o amor. 

Aquele lugar sem pressa era a memória de muitas gerações, o manto a céu aberto, o limbo do encontro. As sombras atraiam as famílias, o parque era amplo e, em cada recanto, os murmúrios dos antepassados faziam esquina. Quando se é criança não se tem a dimensão da escala, tudo parece gigante, principalmente, se o espaço dá a ideia que nos podemos perder. Quanto maior é esta perceção, mais cresce o receio de um bosque sem fim, maior é a insegurança. Mas se regressamos mais tarde a esse universo, as dimensões aproximam as estrelas das copas das árvores e o sombreado traz a nostalgia. O que era grande passa a ser normal, e o que era pequeno torna-se insignificante. 

Há parques que permanecem eternamente nos álbuns de fotografias, com os bancos onde nos sentávamos, o homem que vendia gelados, a mulher dos balões, o cavalo para a fotografia ou, ainda, o bazar dos brinquedos de madeira. Este passado resiste indelevelmente, tem o seu lugar como as cartas de Fernando Pessoa a Ofélia. Crescemos a imaginar outras memórias, a sonhar as “saudades do futuro”, a viver no desassossego criativo que clama a paz em movimento. Há em cada um de nós um parque de emoções onde a infância nunca envelheceu, por isso, regressamos sempre ao convívio das borboletas, a esse friozinho na barriga que suspende a respiração e aumenta a ansiedade. 

O cais das borboletas é assim um convite à viagem, ao reencontro das paisagens, à sedução, à cumplicidade que não pode esperar. Se se olha o horizonte e as palavras libertam as letras, é lá que o voo permite todos os abraços com que se embala a noite. Depois chegam as vozes murmuradas, as sinfonias íntimas nota a nota, num desfiladeiro de esperança sequioso das mãos, rasgando os caminhos rebeldes como as acácias vindouras. Neste trapézio de equilíbrios difíceis, somos tanta coisa, deixamos de ser e renascemos onde o vento abre as janelas. Nessa corrente de ar soltam-se os lobos, amam-se os demónios, conquistam-se as plumas, incendeiam-se os anjos. A terra queimada transforma-se num bordado de vontades, cresce o que tem de florir no tempo certo. É preciso acordar as borboletas, ouvir o chamamento das suas asas, sermos a metáfora e a metamorfose, a filigrana da construção. 

Esse painel simbólico e ritualista exige a interpretação da vida, o que é inadiável e intransmissível. Se não o fizermos, adensamos a angústia, projetamos as sombras e o sol não será mais do que uma estrela em viagem. No parque, as borboletas cirandam de pétala em pétala, ensaiam a combinação do perfume, conjugam os verbos da água e da sede, da beleza e do amor. A urgência das coisas raras dorme nos sentidos como a volúpia na música, tateia a terra e o livre arbítrio, devolve espaço ao corpo e liberdade ao desejo. Entre a folhagem, reencontramos as Artes, em cadeia de união, ávidas do passo, como no primeiro beijo. Nos troncos estão, esculpidas a canivete, palavras universais, talvez escritas sob cúmplices olhares e, também, as mãos gigantes de Zeus, testemunhadas por nascentes e raízes. Agora, essas palavras vivem como ramos da esperança, são como as canções que falam de amor, resistem ao tempo e despertam emoções sempre que a Primavera traz os aromas do encantamento. Um dia vamos descobrir as borboletas no parque de todas as Artes.

António Vilhena

(Crónica publicada no Diário de Coimbra).


"Hedonismo"


Há gente que não é crente, mas acredita em tudo; há gente que vai à missa todas as semanas, mas não pratica o bem; há gente que faz juramentos, mas esquece o que leu; há gente que vai à bruxa, faz reiki, ginásio e tanta coisa, mas o que precisa mesmo é de se sentir confortável sob a sua pele. Há gente que gasta o seu tempo como se o mundo fosse acabar no instante seguinte, infernizam a vida dos outros, andam sobre brasas, e, pior do que tudo, dormem mal. Em cada época há um conjunto de palavras que parece soltar-se do baú, elas pretendem satisfazer as necessidades, as modas e as patologias, são uma espécie de licor semântico, vêm com manual de instruções, onde não falta a recomendação obrigatória de sorrir, jantaradas e a recomendável dança do momento. Depois basta ir às redes sociais, está lá tudo. É fácil encontrarmos o que nem as Páginas Amarelas ofereciam. 

As redes sociais são o maior catálogo de patologias, de excessos e de enganos. A palavra que está na moda é “resiliência”. É uma espécie de praga, é usada para todos os gostos e para as mais inusitadas circunstâncias. Ela surge quase sempre como se estivesse à espreita no céu-da-boca para cair na primeira oportunidade, intromete-se na conversa, parece uma vizinha do piso de cima a chamar os gatos. A verdade é que a palavra “resiliência” é interclassista e de banda larga, é usada por todos e serve para as mais disparatadas explicações. 

Às vezes dá muito jeito ter à mão um conjunto de palavras da moda, basta abrir o fole e soprar, o ambiente fica enxameado dessa inócua verdade coletiva em que todos se reveem, é uma espécie de solidariedade de boas intenções, daquelas confissões em que a água benta não adianta nem atrasa. Contudo, quem usa esse catálogo faz um figurão, assemelha-se a um baile de debutantes onde a mais bonita nem sempre é a mais exuberante e, por isso, não é a escolhida. É o mundo do faz-de-conta, do parece, da realidade escondida com a sombra à vista ou, ainda, do mistério valioso que promete fazer o milagre de autoajuda. 

Num mundo em que as pessoas estão cansadas, sem tempo para si próprias e com níveis de stress elevados, há palavras que são hóstias, não fazem mal nem bem. É comum ouvir um político dizer que Portugal precisa de mais “resiliência” para enfrentar os problemas, mas, a verdade e que são os portugueses que precisam de menos resiliência para ouvir alguns políticos; é habitual ouvir alguns comentadores opinarem sobre a necessária “resiliência” da economia para enfrentarmos os desafios externos, mas o que nós precisamos é de ter menos resiliência com certos comentadores que nunca semearam uma batata e pensam, quiçá, que os ovos nascem nos supermercados; há certos gestores que pedem mais “resiliência” aos portugueses, que ganham o ordenado mínimo, quando eles gastam isso num só jantar com os seus amigos. 

Há palavras que não se deviam prostituir, deviam ficar quietinhas no seu berço semântico e não alimentar a luxúria hedonista do liberalismo. A promiscuidade “literária” usa luvas de boxe em vez de luvas brancas, e deixa que certas palavras sejam cozinhadas em sopa de letras. É o que acontece quando se está sentado à espera que a cana mexa ou a terra trema para anunciar uma catástrofe ética. Vivemos num labirinto civilizacional, onde certas palavras são usadas para dizerem aos pobres e aos fracos que têm de ser resilientes com o capitalismo, com os predadores, com o fundamentalismo de género – a nova moda -, ou, ainda, com os vendilhões dos evangelhos. Sejamos sérios: há muito lixo à venda, muita coisa desnecessária que só ocupa espaço e gasta tempo útil. Se a palavra “resiliência” está na moda é porque a sua bondade foi usada pelos mercantilistas e oportunistas de fragilidades sem escrúpulos.

António Vilhena

(Crónica publicada no Diário de Coimbra).



“Feios, porcos e maus”

Já pensámos no fim do mundo, nos dias que pareciam não ter fim, na chuva que anunciava o dilúvio e na noite que parecia eterna; já limpámos a testa com as mãos e amaldiçoámos os deuses maus com palavras interditas; já falámos sozinhos nas ruas perante os olhares incrédulos dos que nos ouviam; já chamámos os amigos que não estavam e por estranhos que pareciam amigos de sempre; já gritámos no silêncio e rendemo-nos à candura das coisas simples. Fizemos o caminho das palavras que se libertam dos sentidos e, em revoada, sobrevoam o mundo das pequenas coisas, das pequenas misérias, das miopias erráticas, dos mitómanos heróis, dos demagogos com egos inchados e frustrações gordurosas. 

Os “feios, porcos e maus” sempre existiram, mas agora vivem com a bomba atómica dos tempos modernos à distância de um clic, são as toupeiras de vidas privadas que mudam de perfil como se mudassem de pele, assediam os mais frágeis, manipulam, têm vidas duplas, fazem negócios e apresentam grandes currículos para impressionarem: são os agiotas azedos, muitos deles com patologia. As redes sociais são o maior mostruário de gente desequilibrada. O boato de outros tempos, como arma política, é um bebé comparado com os monstros que se escondem nas redes socias. Há verdadeiros psicopatas dissimulados a jogarem com a vida dos outros. Normalmente essa gente acaba mal, é só uma questão de tempo. 

Agora que começa um novo ano, é hora de separar as águas, de decantar o supérfluo e entrar nas vias da sabedoria e da beleza. Todos conhecemos gente medíocre que se sente importante face à sua sombra, e gente que tem importância e cuja humildade a torna gigante pela bondade. Felizmente o rei acaba nu, e os leitos dos rios galgam as margens levando no seu arresto o trono vazio. O terrorismo psicológico é hoje uma arma de terra queimada, não tem rosto e, principalmente, muda de nome de acordo com a vítima. Começam por ser prestáveis, aduladores, simpáticos, “íntimos”, disponíveis…Mas tudo isto é uma máscara que serve os objectivos mais grotescos do predador. Atrás da moita os coelhos deixam os seus vestígios e, mais tarde ou mais cedo, o luar denuncia a sua sombra.

As palavras que se libertam da semântica renascem na infância, nas perguntas indefesas onde as verdades exigem muito mais dúvidas do que certezas. Esse bálsamo inspirador da procura do significado, sem algemas, é um estímulo a quem se perdeu no labirinto. Começar de novo, passo a passo, tateando as paredes e descobrindo nas texturas os relevos que não magoam a pele, significa muitas vezes olhar o Minotauro, enfrentá-lo, exorcizar os fantasmas que se colaram às paredes através do tempo. Com ou sem venda nos olhos, a pior cegueira é a que o orgulho não deixa ver e a razão envelheceu para a novidade. Gastar as mãos tentado decifrar o cume das montanhas, parece uma tarefa inglória, seria mais fácil ter asas. Mas essa impossibilidade escapa às terapias tradicionais, o jogo da representação é à custa da dramatização, em que o actor não se assume como imagem no espelho. 

O mundo da dissimulação é, hoje, uma pandemia social, vive-se no limite do “quase”, onde “quase “ tudo existe e não existe, onde “quase” se vive e se morre, onde “quase” é proibido estar triste, onde o sorriso é um meio de combater a solidão e inventar a “quase” felicidade. Entre tanta coisa “quase” real vivem os escovilhões de sarjeta, os que mudam da noite para o dia, os que se refugiam em pseudónimos pidescos e usam a “linguagem do terrorismo urbano” para invadirem a intimidade da decência. Na clausura dos que têm várias vidas “quase” reais nas redes socias e na vida real, deve ser fascinante ter vários perfis: serem homens à noite com as esposas e os filhos, amantes durante as horas de trabalho e, fora de horas, serem mulheres. É este “admirável mundo novo” que Aldous Huxley não previu. Há pouco tempo confessava-me um amigo especialista em tecnologias que seria fácil desencadear uma nova guerra se se revelassem as conversas privadas – fáceis de conhecer. “O silêncio de quem as conhece revela um grande sentido de responsabilidade”. Os sociopatas são egocêntricos, manipuladores e gostam de mostrar poder para impressionarem, são os escovilhões da sua própria sarjeta. Mas a verdade é como o azeite, sobrevive à mentira.

António Vilhena

(Crónica publicada no Diário de Coimbra).


“Não digas nada…”

A vara do tempo dobra e a sua sombra fica obesa. Os peixes que nadam no fundo lago estranham a curva, o seu rosto parece-se com as imagens de um espelho convexo, sobra corpo onde falta a explicação para entender as coisas simples da vida. Quando não se tem a vista completa do horizonte, podemos saltar, mas as pernas são curtas. O mais fácil é redescobrir o sentido de orientação que nos dê asas. Voar é a mais fascinante utopia para vencer a saudade. E nesta quadra natalícia há palavras que se impõem, são como as laranjas num areal, estranhas e desajustadas, são feitas de fragilidades semânticas, cheiram a hipocrisia e duram uma noite. O que é efémero é o “teatro”, a representação da conveniência, quando a realidade se impõe pela falta de exemplo. 

Quando chega o Natal as cidades ficam mais bonitas, ou seja, as iluminações ajudam e fazem esquecer que tudo continua na mesma; a música toma conta das ruas, a azáfama e o passo apressado não combinam com os que esperam um olhar benemérito. Todos sabemos como é, talvez, por isso, há quem deseje que o Natal passe depressa, que a noite de consoada se transforme na manhã do dia seguinte, que o brilho fácil das coisas dê lugar a um racionalismo menos piegas. Ah, mas as crianças! Essas almas coloridas que acreditam no Pai Natal – como eu -, e que cansam o olhar de tanto olharem a estrela flamejante na noite fria de todas as esperanças. 

As crianças ensinam-nos que há um mundo efémero que devia ser eterno; um mundo de fantasia que não precisa de explicações, basta sentir, o que importa é acreditar de olhos abertos. Elas não conhecem a fome dos pássaros, imaginam-se no seu voo como os heróis que adormecem depois de se lhes contar a história da noite. Talvez o seu sono possa resgatar as memórias e as vozes que embalam os seus medos e trazer-lhes de volta a ternura do último beijo, antes da sua respiração afundar na noite. É tão belo viver estas emoções como criança. Quem atravessa esta experiência sabe que nada é tão grandioso como o cheiro da pele de um bebé, como sentir a sua mão no nosso rosto e o seu sorriso de flor aberta. As crianças emprestam-nos a vida em estado puro, sem maldade nem traições, sem mentiras e jogos de azar.

Quando chega o Natal é para elas que se dirige o nosso pensamento, que nos lembramos de nós através delas e fazemos a maldade de as imitar ocultando a verdadeira razão da mimese. Todos temos recordações da rua ou do jardim onde brincámos, dos amiguinhos e, também, da voz que nos chamava para regressarmos a casa. O Natal é uma longa galeria de imagens, um desfiladeiro de emoções onde as mãos escorregam na vara do tempo, que se recusa a ser um bordão de saudosismos. Revisitar os lugares onde tudo era grande, quando eramos pequenos, é redescobrir o mundo onde este parecia feito por gigantes. Crescemos para descobrirmos esses lugares e recriarmos as noites de Natal.

Os tempos mudaram os cheiros, as prendas, os “pinheiros”, as lareiras, as famílias, os dias seguintes. Importa o que não importa, permanece o que não tem pressa de existir, resiste o que vem do passado e nasce a cada instante dentro de nós. É esta cumplicidade incondicional, de quem vive perto de quem ama, de quem se recusa a ser clonado, de quem diz não à espuma dos dias, que pode partilhar o espírito de natal. Sabemos que há zonas no mundo onde o dia de Natal não será diferente dos outros dias do ano. Os desalojados das guerras constituem hoje um drama civilizacional. Urge, em nome da dignidade humana, proteger estas pessoas que foram obrigadas a fugir dos seus países e que perderam tudo. Há uma responsabilidade colectiva, que é a da solidariedade humana. Pensar que não nos pertence o sofrimento dos outros é o contrário da essência da mensagem da Natividade. Se cada um cumprir o seu dever, cumpre-se, também, o melhor de nós. Há momentos em que só devemos ouvir a mulher que amamos – falo por mim – ou os poetas. O ideal são os dois. Respigo um poema de Adélia Prado: “A borboleta pousada/ou é Deus/ou é nada”. Não digas nada de que te possas arrepender no futuro, verdade não tem voz grossa, não se esconde, não se dissimula; a verdade é como a borboleta do poema de Adélia Prado: ou é Deus ou é nada.

António Vilhena

(Crónica publicada no Diário de Coimbra).



“Diálogo improvável”

Quando a linguagem é feita de cores que trazem o melhor da natureza ao convívio dos sentidos, não se pode falar de um “Diálogo improvável”. Talvez se queira alertar os mais incautos ou distraídos para a liberdade semântica da Arte que vive para além de ideólogos e moralistas. A visita acompanhada traz-me à memória períodos da história que não são os melhores. Uma obra de arte é a incompletude por excelência, é uma “tarefa aberta” que nunca se esgota, mas interpela-nos. Esse diálogo entre dois pintores - Victor Costa e Roxanne Bueso -, resultou na exposição que pode ser visitada na Galeria do Arnado, em Coimbra, até 17 de Dezembro. As grandes dimensões das obras expostas devolvem-nos uma atmosfera de luz e cor levando-nos a lugares que são referências simbólicas dos artistas. Roxanne Bueso nasceu em Porto Rico e, possivelmente, as suas telas são uma paleta de cores onde a mulher, através do seu vestuário, surge como uma policromia poética. Victor Costa, natural de Coimbra, convida-nos a entrar no seu universo abstrato de cidades difusas onde vivemos. “Diálogo improvável” é um reencontro de culturas e de sensibilidades, um cais de viagem onde devemos ancorar. Neste período natalício, que convida à introspecção e à tolerância, a Arte tem uma função apelativa e indutora, ela aproxima e concilia, questiona e fractura, resiste e conspira.

Qual a função da Arte na vida dos homens? As respostas são muitas e diferentes, mas interessa-me a certeza de que não podíamos viver sem ela, a nossa vida seria outra coisa, não sabemos o quê, mas, talvez, o nosso imaginário fosse mais cinzento. Quando uma criança desenha uma flor, não imaginamos os girassóis de Vincent van Gogh, mas reconhecemos que há um manto de sensibilidade que nos toca como as telas do pintor holandês. Não saber explicar a Arte, sentir a Arte, é esse o seu prodígio. Cada um nós leva consigo a parte que dá mais sentido à sua vida, ainda que a circunstância permita apenas um simples olhar.

O acaso ou o “Diálogo improvável”, aquilo que acontece quando não esperamos e somos surpreendidos pela combinação das diferenças, é, quiçá, uma janela de oportunidade onde cada encontro alimenta a esperança com a sua novidade. Precisamos de estimular a nossas vidas com as linguagens do encontro/desencontro, elas trazem a hermenêutica que ajuda a explicar o que a lógica não permite. O mundo sorumbático dos pessimistas não se abre ao improviso, neste jogo, em que os deuses são chamados, no Oráculo de Delfos, Apolo convida a Beleza, a Perfeição e a Harmonia. Este legado vive, ainda que secretamente, em cada um de nós, quando escrevemos, pintamos, esculpimos ou, ainda, quando admiramos a flor desenhada por uma criança. Somos muito do que conseguimos imaginar, mesmo que não tenhamos consciência dessa construção enquanto meninos. Regressar a essa biblioteca de fantasias é recriar os caminhos iniciáticos das viagens de infância. Estão lá, como números nas portas, os riscos, as linhas, as cores, as paisagens e as pessoas que esculpiram a invisível identidade do que somos. Às vezes não sabemos dar nomes ao que nos acontece, mas não esquecemos, para mais tarde nos reencontrarmos com esse passado, que há-de fazer sentido em qualquer circunstância. Ninguém mata o passado, ele sobrevive independentemente da vontade, em silêncio, no recato como um palimpsesto.

A pintura de Victor Costa e Roxanne Bueso perpetua-se na memória de cada um, é um exercício de paisagens psicológicas resgatadas à infância. As cores vivas de Porto Rico desafiam a melancolia de Portugal. Como escreveu Frida Kahlo, “cada tic tac é um segundo da vida que passa, foge e não se repete. E há nele tanta intensidade, tanto interesse, que o problema é só sabê-lo viver. Que cada um o resolva como puder”.

António Vilhena

(Crónica publicada no Diário de Coimbra).


Epopeia da esperança.

Quantas vezes olhaste as flores que nascem nas superfícies das poças de águas? Quantas vezes pensaste que o belo não precisa de histórias profundas? A beleza que cresce com escassas raízes é mais espontânea e surpreendente, deixa seduzir-se pela luz, emerge quase sempre inclinada para oriente, onde supostamente mora a sabedoria, e desafia a incredibilidade. No último jantar, as flores da mesa deixaram cair algumas pétalas nos pratos, pareciam ter nascido no branco e ali se perpetuariam se não fosse a desmesura de um empregado cumpridor. A delicadeza do empregado apressou-se a pedir desculpa, por tão grande profanação das pétalas intrusas e indesejadas. Aos poucos serviu a comida, com requinte francês e sotaque de um país de leste. O avental até aos joelhos fazia-o atarracado. Eu gosto de empregados altos, com unhas limpas, esquálidos e dentes brilhantes. Imagino-os enviados por Dioniso para servirem os homens e as suas bacantes. Durante algum tempo os pratos ainda cheiravam a rosas, perpetuavam o perfume dos deuses num recanto de esconjurados. Naquela noite os fios de luz e os botões dos casacos cerziam a ostensiva intentona dos conspiradores. Tudo foi acautelado: o guarda-roupa tinha de ser como as pétalas que caíram no prato: leve, simbólico e sedutor. Era domingo à tarde, o céu tinha esmaecido entre nuvens de longos vestidos que os artistas do Olimpo gostam de tecer para gáudio dos pintores. Ao fundo, quase no fim do horizonte, uma longa linha de espinhas de peixe celebravam os últimos raios de sol, o que era belo não tinha equivalente nos dicionários dos homens. A natureza ensina-nos o inefável e a humildade. Foi quase na finitude da luz, quando surgiram as primeiras estrelas, que se ouviram as suas palavras:
- Vou viajar para renascer.
Miguel Bernardo guardou os silêncios enquanto rodava o copo de vinho entre os dedos, depois, foi soltando sons e palavras, aparentemente, sem nexo. Os convivas cruzavam as conversas, quando há muito para dizer, ou a solidão está ávida de companhia, atropela-se a sintaxe. Ana insistia que ia viajar, estava na idade de mudar de vida, de paisagens e de sonhos. Foi neste ponto que Pedro Oliveira acordou para a conversa. “Vais a/para onde?” Aos poucos todos pareciam interessados em falar das suas viagens, mas foi Rosa Raimundo que ousou erguer a taça de vinho para celebrar, há vinte cinco anos, o seu primeiro beijo no escurinho do cinema.
            - Até aí, eu pensava que os lábios dos rapazes eram de pele de cobra – o que desencadeou uma rizada. Escusado será dizer que o tema da conversa mudou. Aquele domingo era para celebrar a viagem de Ana, para beber uns copos e puxar pelos sentimentos. Mas todos foram lestos em encontrar relação entre o beijo de Rosa e a viagem de Ana.
            - Porque não vais de Lua-de-mel?
Para que isso acontecesse era preciso que Ana deixasse a sua solidão abrir-lhe as janelas do quarto e que os raios da manhã brincassem com os vestígios intimistas da noite. Quando se quer ajudar alguém a vencer as suas dificuldades não é bom começar por lhe falar dos temas desconfortáveis. Dito dessa forma, as palavras são pistolas preparadas a disparar a qualquer momento, e o melhor é fugir à questão enquanto é tempo. Normalmente, essas pessoas saem, delicadamente, para irem à cozinha, à casa de banho…Depois regressam na esperança de que o tema da conversa seja outro, dão uma gargalhada, dizem uma piada e disponibilizam-se para fazerem alguma tarefa: mudar os copos, os pratos, as comidas etc.
            - Mas vais viajar, Ana?
Foi então que Ana se sentou novamente, pegou num copo, para ganhar tempo, e começou lentamente a falar do seu sonho:
No regresso às aulas, quando eu andava na escola, todos os meus amigos traziam muitas novidades de férias, falavam sempre das viagens que faziam com os seus pais. Eu ficava ali, quietinha, a ouvir e sem nada para contar. Conhecia como ninguém os lugares da minha terra, talvez ninguém os conhecesse melhor do que eu, mas isso não tinha a importância das viagens dos meus colegas. Eles iam sempre para outras cidade e outros países. Agora já não sou mais menina, mas lembro-me de alguns lugares que os meus colegas contavam. Preciso de renascer para as viagens, talvez, para misturar esses lugares numa paleta de cores e desenhar em cada sítio da minha terra a geografia dos afectos imaginários onde ainda seja possível trazer comigo o jardineiro das minhas flores. Quando se visita um jardim, possivelmente, a probabilidade de encontrar o jardineiro é maior.

Todos ficaram admirados com o sonho de Ana, mas um domingo à tarde, quase noite, convida à epopeia da memória e da esperança.

António Vilhena

(Crónica publicada no Diário de Coimbra).



O falso brilho do desejo.

A luz que se vê nem sempre aquece os corpos. A luminosidade é uma espécie de brilho que não chega para sabermos se o ouro é falso. O que brilha é a superfície daquilo que se nos oferece na primeira linha do horizonte. Ficamos fascinados, deixamos os sentidos envoltos na dança ébria da estética rodopiarem sobre um eixo imaginário, fechamos os olhos e todas as verdades são feitas dos fragmentos que trazem os nomes e os anos. Aos poucos juntamos as partes, encaixamos os bocados, e construímos uma balsa onde caibam os despojos para fazermos o resto da viagem. É nos momentos em que o supérfluo nos ameaça que a lucidez faz a seleção, que se junta o que disperso dá sentido ao momento e, principalmente, se este compromete o futuro. 

Precisamos sempre de sentir as mãos dos outros, o contacto devolve-nos a nossa existência, fica-se mais perto das vidas ao ficarmos menos longe de nós; fica-se mais vulnerável quando parecemos fortes, e quando se mistura o Solstício e o Equinócio coexistem a Primavera e o Outono, as flores e as folhas secas, os aromas e o frio, o inevitável segredo da natureza ensina a ancestralidade com que se renova e renasce. Precisamos de aprender com a natureza o que ela nos dá ao longo das estações. No mais profundo silêncio esculpe-se a rosa que há-de exibir as suas pétalas, uma escultura de sobreposições cuja mimese transcende o labor minucioso da roseira. “Por dentro das coisas é que as coisas são”, e o que faz sentido é querermos pertencer a esse labirinto invisível das verdades.

Há uns anos dois amigos procuraram casa na zona centro. A Jane vivia na Holanda, o José tinha-se apaixonado pelos olhos verdes da sua musa. Combinaram vir para Portugal, encontraram uma casa em ruinas, José era pintor e Jane socióloga. Durante muitos anos escreveram cartas, têm, por isso, uma biblioteca de folhas soltas – como José afirmava com alguma ironia. A obra era exigente, havia que erguer as paredes, pôr os telhados, as janelas, as portas e tudo o que fosse necessário para que a “biblioteca de folhas soltas” encontrasse o ambiente das palavras sonharam ao longo de muitos anos. Jane e José demoraram quase um ano a fazer das ruínas um “canto” confortável com vista para a serra. 

Esse trabalho a dois uniu-os, ficaram, cúmplices e mais divertidos. Investiram o seu tempo em mudar o que era necessário, viam o nascer e o pôr-do-sol e as suas mãos misturavam-se com a terra, a água, a madeira e o pão. Demoraram a erguer a casa, essa galeria, biblioteca, gruta de Minotauro, metáfora de imaginação e de vontade. Quando se juntam os poetas, os que fazem, e a vontade dos deuses que inspiram, as ruínas devolvem o esplendor que os nossos olhos procuram, o brilho celeste que agiganta a escala do olhar perante a pequenez das dificuldades. “Falta cumprir-se Portugal”! 

A obra inacabada é a que cada um de nós tem de fazer em seu silêncio, procurar o livre arbítrio que concede a razão e a emoção, que dá sentido às coisas pequenas que se tornam grandes quando as perdemos. Jane voltou à Holanda cinco anos depois, fez uma festa de amigos e celebrou a ousadia poética de José, sem a crença e a visão otimista do seu namorado de sempre, a casa teria continuado em ruínas e ela teria ficado na Holanda a escrever cartas. Agora a Serra da Lousã é um manto de céu e montanha, o tempo fica preso às aldrabas, entra quando quer, quase sempre com a permissão do gato Jacob que se assume como guarda interno. 

Quando visitei a casa do casal reparei que havia uma frase em cerâmica à entrada da porta: Nesta casa o Sol és tu. Fiquei a pensar nesta frase enquanto a Jane servia o chá e o José explicava cada uma das suas obras de pintura espalhadas nas paredes. Não tenho a certeza se era Março ou Abril, mas a tarde convidava a usar um casaco, os pássaros regressavam em bando para os abrigos da noite, ao fundo outras chaminés libertavam o fumo das lareiras. O silêncio era inspirador e o melhor do lugar foi a descoberta que fiz: Jane e José anunciaram que sempre se procuraram, mas foi ali, na Lousã, que verdadeiramente se encontraram reconstruindo a casa que era a metáfora das suas vidas. A ruína das ruínas deu lugar a um capitólio de esperança.

António Vilhena

(Crónica publicada no Diário de Coimbra).



Escreve nos meus olhos.

Era tempo de olhar, de ver o que antes era de todos, mas não nos pertencia; era tempo de ir na garupa do vento soletrar os instantes que não valorizámos e violentamente arrancar flores. Passeámos a horas tardias para ver o que antes era apenas paisagem, e descobrimos as melodias que tecem vozes ocultas onde os inomináveis aromas se escodem. Abrimos as bocas e deixámos que as palavras voassem como garatujas infantis no solilóquio sem remissão. Fomos o mar numa gota de água, aprendemos a navegar na voragem da tempestade, perdemos o horizonte, deixámos que o tempo fosse lesto e perdulário. A fragilidade das coisas gastas pelas mãos insinua os caminhos e as viagens, as dores nos pés, a memória das pedras, a sede e a esperança. Depois de chegar é que a viagem começa, a evocação do simbólico, o diálogo com a ausência, o que não se disse depois de “gastar as palavras”. Nesse rio de margens largas crescem, ainda, as árvores da infância, como se fossem eternas, como se tivessem vindo da origem do mundo, como se tivessem vida perene. Contudo, o rio permanece incólume no seu leito de preguiça e indiferença, alimenta o olhar quando as perguntas são más companhias.

Um rio é um sopro de sons antiquíssimos, um espelho de mil caras ancorado nas margens desafiando o que se sonha e há-de acontecer. É preciso navegar sem vento, ir na proa da vontade rasgando os itinerários e as marés, dialogando com os cardumes e os corais. Na beleza da água transparente cresce o desenho do rosto que se reflete e desfaz. Ao longe, o azul é todo o universo, uma paleta arrancada ao braço do pintor num gesto compulsivo de recriação. Precisamos de acreditar para além do horizonte, onde, possivelmente, vive um Adamastor bom. Quando o caminho é não ter caminho, todos os lugares são catedrais de um culto sem dogma. O deslumbramento da paisagem traz o compromisso que não se escreve, mas que se sente. É a impossibilidade que aproxima, é o querer que sugere a possibilidade. Sobra tanto silêncio entre o Homem e a paisagem!

Escolher é a arte dos enganos, precisamos de jogar aos dados com a razão, como se abríssemos a garganta da terra e soltássemos as inconfidências. O jogo dos silêncios é uma espécie de resiliência, uma tolerância consentida onde cada uma das partes finge não ver o que a natureza desnuda. Há tanto pudor na palavra, por isso, o silêncio sustenta o fio da semântica no labirinto dos confrontos. Escrever nos olhos é ler de pálpebras fechadas, intuir quando nos falta a luz, soletrar as memórias que resistem na cartografia emocional. Escrever nos olhos é ver o que a mão esconde, a filigrana que o tempo revela. Todos precisamos desse compromisso, onde ver o que não se diz é um exercício de ingenuidade e de grandeza. 

Álvaro Alves de Faria, poeta luso-brasileiro, diz-nos: “Não é da música esse som que corta o teto do quarto,/mas da aranha que caminha lenta em seu desespero,/dos insectos que correm nas frestas das janelas/onde me deixo estar e me espero.” (in 23 Elegias da Mão Esquerda, Palimage, 2017). As metáforas transformam as coisas banais num fluxo de desejos e vontades, são elas próprias a essência do vazio que se preenche no mundo banal das coisas que nos fazem falta. Abrir caminho na floresta dessas incompreensões, aproxima-nos das “frestas das janelas” e permite-nos ver o que escrevemos nos próprios olhos. Resistir à nudez da compreensão, erguendo biombos entre os sentidos, é a escolha mais fácil, é a cegueira que autocensura, a morbidez que antecipa a morte, a inveja que conspira, a insegurança que desespera, são os relógios parados quando a esperança tem pressa.

António Vilhena

(Crónica publicada no Diário de Coimbra).



Fuga ao tacho no Exploratório.


No dia 29 de Setembro, no Exploratório – Ciência Viva Coimbra, comemorou-se a Noite Europeia de Investigadores. O programa foi diversificado e rechiado de degustações pouco habituais entre nós: gafanhotos, grilos e larvas. Sim, leu bem: gafanhotos, grilos e larvas. Para tão significativa efeméride não faltaram cientistas e curiosos. Os “protagonistas” dos pratos não quiseram ser carne para canhão. Quem não se lembra do episódio da “Praga dos Gafanhotos”, do livro do Êxodo, em que o Senhor disse a Moisés: “ Estende a tua mão sobre o Egipto para que venham contra eles os gafanhotos e acabem com todas as plantas do país, com tudo o que escapou ao granizo.” Moisés assim fez e o Faraó percebeu que tinha cometido um grave erro. O Senhor mudou os ventos e todos os gafanhotos mergulharam no Mar Vermelho. Esta passagem bíblica diz-nos que os gafanhotos estão associados à paz e à guerra entre os povos. Também, a canção “A Fuga dos Grilos” (1970) do quarteto 1111 (José Cid, Tozé Brito, Mike Sergeant e Michel Silveira) lembra quão “longos foram os caminhos percorridos…” mas necessários. Para além das fábulas estes invertebrados surgem como salvadores, capazes de vencerem a fome num futuro não muito longínquo. 

Quem o diz é a ONU que prevê, em 2050, que seremos mais de 9 biliões de pessoas. Assim, citando um relatório (2013), a “Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) defende a criação em larga escala desses e outros invertebrados, para garantir a segurança alimentar da humanidade.” A verdade é que o gafanhoto é referido na Bíblia como alimento de João Baptista no deserto. Na Antiguidade Clássica muitos foram os que se ocuparam desses insetos de asas rectas. A classicista Ália R. Rodrigues refere, no seu estudo ÂNITE de TÉGEA, (Boletim de Estudos Clássicos — 45), que “Ânite tratou a morte de animais como o golfinho, a cadela, o cavalo, mas também de insetos, como a cigarra e o grilo.” Num desses epigramas, Ânite deixa transparecer a sua compaixão para com os insetos: “A um gafanhoto, rouxinol do campo, a uma cigarra,/ habitante do carvalho, Miro preparou um túmulo comum,/ derramando a jovem uma lágrima pura, pois foram dois/ os deleites que o implacável Hades levou consigo.” A importância dos gafanhotos, grilos e outros insetos sempre inspirou poetas e escritores ao longo dos tempos.

Quem não se lembra do filme “A Fuga das Galinhas”(2000)? Ginger era a galinha que sonhava ser livre e fugir do galinheiro com as suas companheiras. O mesmo aconteceu com os gafanhotos e os grilos que aguardavam a sua vez para irem parar ao churrasco na Noite Europeia de Investigadores que teve lugar no Exploratório – Ciência Viva Coimbra. Os bichanos, guardados em caixas adequadas, ensaiaram uma fuga noturna – qual fuga de Alcatraz! – na vã esperança de conseguirem chegar às margens do rio Mondego. O espanto foi total quando os “cientistas” se viram privados de tão delicioso repasto. A ordem foi solene: “Devem render-se sem resistência”. Muitos desobedeceram, escondendo-se em lugares inacessíveis aos olhares lestos dos caçadores. Imagine-se o que seria a Noite Europeia de Investigadores sem estes invertebrados no churrasco? Não seria a mesma coisa. Todos os colaboradores procuraram nos cantos possíveis e inimagináveis os insurretos. 

O seu castigo seria o churrasco científico. Não consta que tenha havido perdão de penas, nem benesses para os delatores – Roma não paga a traidores. Para que conste e a memória futura não olvide, os gafanhotos, os grilos e outros companheiros de fuga acabaram no prato como uma mordomia gastronómica. Mas fica o registo da sua insubordinação e o exemplo de que vale sempre a pena lutar pela liberdade. A fuga ao tacho pode ser uma boa metáfora. Acabar no churrasco pode não ser um fatalismo, mas é, com toda a certeza, uma guloseima científica. A Noite Europeia de Investigadores ficaria incompleta se não vos contasse a fuga ao tacho da bicharada, uma belíssima iniciativa do Exploratório.


António Vilhena

(Crónica publicada no Diário de Coimbra).


Sim, José. 


Habituei-me a vê-lo com uma máquina fotográfica a calcorrear as ruas que ligam a Baixa à Alta da cidade de Coimbra; a ouvi-lo cantar fado nas longas noites da Diligência Bar, nomeadamente, o tema Pomba Branca, do madeirense Max. Olhos no chão, passos cadenciados, seguia lesto e imperturbável, excepto se alguém o interpelava. Aí o seu sorriso soltava-se como uma pomba branca, a bater asas, em busca da liberdade. Soturno e calmo, como uma tarde de Outono, atravessava a Sé Velha rumo à Universidade, percorria as Faculdades, uma a uma, deixava as fotografias da rapaziada que celebravam a Festa das Latas ou a Queima das Fitas. Misturava-se com a “estudantada”, contava histórias de outros tempos, aconselhava os mais novos. A sua simpatia ganhava rapidamente uma mão cheia de amigos. O Zé foi sempre assim, generoso, um homem fraterno e amigo, sem maldade e disponível. Quando cheguei a Coimbra, nos anos oitenta, era um cravo de sedução, andava sempre de gravata e fato escuro, embora já tivesse nevado no seu cabelo. Consta que, nesse tempo, ainda tinha uma casa comercial junto à Sé Velha, mas eu já não conheci esse espaço. A sua presença nos jantares de curso tornou-se familiar, pois foi aí que o Zé começou a fazer parte das minhas amizades. Cruzávamos as mesmas ruas, os mesmos cafés, as mesmas tertúlias, os mesmos becos e esplanadas. 

O Zé era uma sombra na vida dos estudantes, não havia quem não o conhecesse e todos tinham o seu cartão profissional, pois mais tarde ou mais cedo, o Zé seria chamado a fazer “clic” num convívio. Mas os tempos mudaram com a chegada da fotografia digital. E o Zé lamentava-se que o seu negócio tinha chegado ao fim. A verdade é que soube actualizar-se e encontrou ânimo para continuar a sua actividade. Os seus itinerários mudaram um pouco quando a Universidade cresceu para os pólos II e III e, por isso, a frequência com que nos cruzávamos diminuiu. Mesmo ao longe, o Zé erguia o polegar da mão direita, como se gritasse do fim da rua, para saber se eu estava bem, era a mímica da curiosidade e da amizade. 

O tempo encarregou-se de tornar os nossos encontros menos frequentes, mas a memória é, também, uma biblioteca de afectos que sabe sempre preservar o que é eterno e inesquecível. Recordo uma viagem (18 de Abril de 1989) que fiz com a escritora Natália Correia e Fernando Dacosta numa barca serrana à Lapa. Para essa viagem convidei o Zé. Ao seu jeito, sentou-se num canto, e à medida que a barca se afastava da margem, o Zé ensaiava a melhor posição para não perder o melhor ângulo  da poetisa. Natália Correia tentava ignorar a presença do fotógrafo, mas Fernando Dacosta lembrava-lhe que devia sorrir. O Zé compenetrado no seu ofício sabia que aquela era uma viagem diferente. Quando chegámos à Lapa, onde estava a Guarda Fiscal, fomos recebido pelo comandante que tinha à nossa espera uma mesa farta com bons vinhos. O Zé teve pouco tempo para os petiscos.

A exigência dos dias faz-nos arrumar as prioridades onde as coisas acontecem quase sempre com muita pressa. Foi num desses dias, em que o Verão desocultava a luz, que oiço chamar pelo meu nome, enquanto lia os títulos dos jornais num quiosque. Olho e percebo que é o Zé. Mas rapidamente os meus olhos quiseram fechar-se. Olhámo-nos, mas desta vez o Zé, o meu fotógrafo de tantas circunstâncias e cantor de fado, estava numa cadeira de rodas. Em parte estava explicada a sua ausência, mas o Zé quis explicar-me tudo. Tinham-lhe amputado uma perna. Agora já não seria possível vê-lo a percorrer as ruas da Baixa de Coimbra como no passado, a misturar-se com as capas negras com a sua máquina a tiracolo ou a distribuir cartões profissionais. O Zé explicou-me tudo o que lhe aconteceu. O meu interesse pelos jornais acabou nesse momento, trouxe a imagem de um homem bom, sem uma perna, sentado numa cadeira de rodas, nostálgico e humilde a desculpar-se com a sorte: “É a vida…”. O Zé Baptista merece um abraço fraterno e muito mais.


António Vilhena

(Crónica publicada no Diário de Coimbra).


Os bajuladores.


Daqui a cem anos não haverá a mais pequena memória deles, ninguém saberá desenhar os seus rostos, nem dizer se tinham cabelo preto ou loiro, se eram altos ou baixos, se tinha cão ou gato. Daqui a cem anos, ou menos, não restará a mais pequena lembrança da cor dos seus olhos, da sua roupa, das verrugas ou dos seus tiques sociais. O tempo apagará os que forem cúmplices por omissão, os que não tiverem coluna, os que se prestarem a vergar a cabeça, os que cuidarem apenas da sua vidinha pondo pedras no caminho dos outros. Daqui a cem anos, ou menos, a lápide estará ilegível com os seus nomes. Há gente que se presta a todo o tipo de serviços, que se vende por um sorriso de circunstância, por um favor para filha, para o primo, para a sobrinha, para a amiga, para a amante, para mulher, para o animal de estimação. Há gente que se dedica à intriga para cair na graça da(o) chefe a troco de uma boa conversa à hora da bica.

Todos conhecemos a Maria, o José, a Fernanda e o Miguel que são zelosos cuidadores das vidas dos outros – cuidam do que existe e da sua imaginação prolixa -, fazem guiões e desenham figurinos. Quem se dedica a cultivar a amizade das estrelas não tem tempo para a pequena vaidade, nem para o espaço da representação. Há um mundo de pequenas urgências que não pode esperar, gente que carece de cuidados, que merece respeito e admiração. É muito fácil destruir a vida do Orlando, da Clara, do Rodrigo ou da Inês. Basta ouvir a Maria, o José, a Fernanda ou o Miguel falarem da “moral dos bons costumes” – hipocrisia, claro. Quando eles falam dos outros conseguimos ver os seus armários.

Os bajuladores não têm fronteiras, estão em todo o lado, adaptam-se facilmente, vestem a pele de camaleão, ficam dóceis, simpáticos, sorridentes, encostam-se às paredes, estão sempre quase a sair, ainda mal entraram, e lá vão destilando o veneno e o charme. Ficam em pé, quase nunca se sentam, antecipam a chegada do bajulado(a) e apressam-se a cumprimentar, distribuem salamaleques, enfim, são seres perigosos porque vêem nos outros uma ameaça irreal. Os bajuladores não têm escrúpulos, só conhecem a delação como instrumento de subserviência. São muito úteis como “pides”, estão de serviço em todo o lado: nos corredores, nos elevadores, nas casas-de-banho, onde eles sentirem o mundo de sombras que lhes alimenta a paranóia. 

Os bajuladores nunca são leais, mas tentam transmitir essa ideia, pelo muito que parecem fazer, pela excessiva presença, pela ausência de crítica, pela obscena concordância. Quando o poder muda, são os primeiros a enviarem mensagens de felicitações, a disponibilizarem-se, a oferecerem-se. Sabem de cor o dia de aniversário dos chefes e dos seus filhos, tentam agradar a qualquer preço, estão sempre presentes, “confundem” o dever com a obrigação. Esquecem-se, facilmente, a quem serviram, o que interessa ao bajulador é o presente e o futuro. O presente para perpetuarem a sedução das “Mil e Uma Noites”; e o futuro para arredarem da sua proximidade aqueles que não fazem parte da roda da hipocrisia. Barack Obama tinha consciência dessa perversão: “livre-se dos bajuladores. Mantenha perto as pessoas que o avisem quando errar”. O bajulador sabe que todos queremos ser felizes e, por isso, tenta, a coberto da sua “bondade”, ajudar. Apenas a sua felicidade lhe interessa, mesmo que para isso tenha que implodir as vidas dos outros. Daqui a cem anos, ou menos, ninguém falará desta gentinha.



António Vilhena

(Crónica publicada no Diário de Coimbra).



Vais explicar-me papá?



Tudo parecia correr bem, na véspera tinha ido ao mercado, à cabeleireira, ao sapateiro, tinha feito as coisas banais, as rotinas eram rotinas, os dias eram os dias e as noites eram as escarpas onde ficava o silêncio e o cansaço. Tudo parecia correr bem, ou melhor, tudo parecia ser o que era porque os seus olhos eram os olhos de sempre, sem brilho e sem chama, os seus lábios eram a púrpura esquecida pela urgência do tempo, as suas mãos operárias ostentavam a sede de terras outrora férteis. Tudo parecia correr bem, não gritava, a sua voz era um Zodíaco programado, existia para alimentar a esperança. Andava sobre os pés mal tratados, não tinha amigos, nem próximos, limitava-se a existir na solidão que construiu, parecia não precisar dos outros, o seu mundo era-lhe bastante e sobrava o suficiente para a perturbar. 

Raramente levantava os olhos do chão, parecia que o horizonte era feito de sol em chamas, que não havia azul nem rosa, que não havia além nem distância. Tudo parecia correr bem, aos fins-de-semana ia à missa, procurava o seu Deus e o seu conforto para alimentar o vazio. Era disciplinada mas insegura, escutava mas não se impressionava, funcionava como uma mágoa cristalizada, uma mão entorpecida, um corpo quase frio. Os peixes perderam as cores e as flores eram nenúfares que flutuavam na invisível melancolia da sua existência. Quem a conhecia não estranhava o mutismo, sempre fora de poucas conversas, não alimentava fofoquices ao fim da rua, não trocava cebolas por hortelã com os vizinhos, não falava dos filhos com outras mães. A discrição confundia-se com um certo exílio, uma ostentação de ausência. 

Quando tinha que aparecer, escolhia os cantos ou o fundo das salas, onde ninguém a pudesse ver. A sua autoestima tinha dias, na sua maioria eram cinzentos. Pelos seus olhos o mundo era um lugar estranho e ameaçador, assim chegava o Inverno quando era tempo da Primavera; as manhãs eram madrugadas irrespiráveis que perturbavam a noite, a poesia era uma espécie de inutilidade, uma “extravagância de gente inútil”. O que importava era a técnica, o suspiro útil que a natureza reconhece capaz de fazer crescer as cenouras e as batatas. Apesar do elogio à terra, a sombra agreste dos tempos não é condescendente com o perfume das Artes. O viço da vida exige disponibilidade e contemplação, afectos e sonhos. Pela estrada dos anos, talvez, tenham ficado alguns lampejos de beleza, mas não os suficientes para fazerem doutrina. A beleza que perdura é a que alimentamos dentro de nós, quando a reconhecemos na metafísica dos sentidos e nos entregamos ao melhor da existência. Uma vida com pressa raramente concilia a força das águas com as margens do rio. Os pescadores, que desesperam por um peixe, são a metáfora inútil para quem o tempo é, apenas, para olhar as correntes das águas. Sob a força invisível das correntes desenham-se outros encontros que misturam as margens e os caudais velozes, o presente e o futuro, o desejado e o vivido.

Tudo parecia correr bem, não havia trânsito, cheirava a café, o cheiro a torradas inundava o bulício da tarde, as glicínias libertavam-se da clausura, havia o que sempre houve, um lugar no mundo onde as pequenas coisas eram apenas as memórias que resistiam à espessura das mãos. Depois vinham as legendas, as datas, o uso, o local, os dedos de bebé, as caixas de música, os objectos com que se cresce, os desenhos onde estão todos “os riscos com se faz uma flor”, o nome rodeado de corações, as recordações do Dia do Pai pintadas por ti, as fotografias que me ensinam quanto “crescer é a maior aventura do Homem”. Nessa tarde, ajeitaste-te no meu colo, agarraste o meu pescoço, ficámos silenciosos a mexer nos papéis, a revolver as fotos que tirámos juntos, principalmente, as que procuravas interpretar o mundo sem palavras. Passámos a tarde mais bela do mundo, os teus cabelos loiros ficavam presos aos meus lábios, punhas os meus óculos e deixavas-te adormecer. “O tempo é um grande escultor” e nas dobras, onde se esconde o inexplicável, é preciso dar tempo para que o escultor defina os contornos que hão-de alimentar a tua curiosidade. “Vais explicar-me papá?”



António Vilhena

(Crónica publicada no Diário de Coimbra).


O Amor e a Liberdade.


A morte de Mário Soares fez-me resgatar um texto que escrevi quando Maria Barroso faleceu em 2015.  Ela foi um bastião de amor e de dedicação; foi, antes tudo, uma mulher de cultura, uma indefectível amiga dos poetas e dos actores, uma voz incómoda mas respeitada. Todos lhe reconhecemos um caminho próprio ao lado de Mário Soares. Tinha uma luz e um carisma que não careciam de bengalas. Foi sempre protagonista da discrição, matriarca da família e âncora dos afectos. O que mais me impressiona na sua longa vida, foi o seu exemplo de paixão a um homem. Dedicou-lhe uma vida como se pode ler nas cartas que lhe escreveu. Hoje, neste espaço, curvo-me perante o seu exemplo de paixão. Deixo-vos uma carta de amor de Maria Barroso a Mário Soares. É uma escolha pessoal, subjectiva, mas onde é possível ler o outro lado, o menos visível, de uma mulher apaixonada e, assim, compreender melhor por que quis casar-se com Mário Soares, a 22 de Fevereiro de 1949, quando este estava preso. O amor vence quase tudo.

“Meu Querido Amor Senti tanto a tua falta hoje – em quase 20 anos de casados é a primeira vez que passamos separados esta noite. Separados materialmente, claro, porque nunca, nunca deixaste o meu pensamento, meu Querido. Tivemos a D. Eugénia e o marido [Joaquim Jacobetty Rosa] para jantar connosco. Comemos uma canjinha e um pouco de peru, daquele de que eu cortei as fatias do peito para te levar e que eu própria preparei. Portámo-nos todos à altura, embora sem festas nem saúdes. Tu estavas bem presente no pensamento de todos nós – para quê fazer saúdes? Foi um jantar simples, como qualquer outro. Teria sido, como tem sido sempre, um jantar de festa se tu estivesses. O Pai esteve bem, distraiu-se a conversar e por volta das 11 horas foi-se deitar. Ainda apareceram os nossos afilhados para nos darem um abraço e trazerem um presente à Isabel. Mas eu, meu querido, eu que não quero que ninguém me veja senão de olhos enxutos e cheia de coragem, afastei-me um pouco por volta das 10 e 1/4, 10,30 e pensei em ti com uma intensidade tal que tinha a impressão de que o meu coração pulsava em todo o meu corpo – era um bater tão forte que a minha cabeça parecia uma caixa-de-ressonância. Pensei em ti com toda a força – passei as minhas mãos ternamente pelos teus cabelos e fechei-te os olhos com um beijo tão cheio do meu Amor – que tu deves ter sentido a minha presença junto de ti. Disseste-me que às 10,30 adormecias e eu quis estar só nesse momento em que pensei que te deitavas e adormecias. Para te acompanhar, para pensar que não estavas tão só nesta noite que foi para nós sempre uma noite de família em que nunca nos separámos. Foi tanta a intensidade com que pensei em ti, sozinha, que quase se tornou palpável a tua presença junto de mim – as pancadas do meu coração eram tão fortes que eu tinha a impressão de que sentia o teu próprio coração bater com o meu. Acredita, meu Amor. Podem separar-nos, arrancar-te fisicamente de junto de nós como o estão fazendo agora. Mas há uma coisa de que eu estou segura e de que tu podes ter a certeza – eu estarei sempre contigo, meu Querido! Sinto-me de tal modo identificada contigo, todos estes anos em que caminhamos juntos estão tão repassados de Amor, de ternura, de compreensão, que é impossível separarem-me de ti – eu estarei sempre onde tu estiveres. «Não há machado que corte a raiz ao pensamento» diz um poema [de Carlos de Oliveira] e é verdade! O pensamento atravessa as grades mais fortes, não conhece paredes nem montanhas e vai para onde nós quisermos... Por isso podem as grades ser fortes, as paredes espessas, as distâncias enormes que eu estarei presente onde estiveres, sobretudo se te sentir só, como agora, injusta e incrivelmente só. Não sei se conheces uns versos lindos de uma poetisa nossa amiga [Sophia de Mello Breyner Andresen], que diz:
«Para atravessar contigo o deserto do mundo Para enfrentarmos juntos o temor da morte Para ver a verdade, para perder o medo Ao lado dos teus passos caminhei!». Esses maravilhosos versos dizem bem o que eu te poderei dizer de uma maneira mais desajeitada. Os beijos mais amigos dos teus Filhos, Pai e Tio Nobre. Abraços, muitos abraços de toda a família e amigos. Para ti sempre toda a minha ternura mais profunda e os beijos mais carinhosos. Sempre tua Maria de Jesus"

Sem este lado firme e apaixonado de Maria Barroso, talvez, Mário Soares tivesse sido diferente, ainda que um combatente indomável pela liberdade. O amor não faz milagres, mas ajuda quando tudo parece perdido.


António Vilhena

(Crónica publicada no Diário de Coimbra).

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