terça-feira, 31 de outubro de 2017

Sublime amor.




Hoje, ouvi o diálogo de um casal que vive na rua e emocionei-me. O fragmento da conversa indiciava que ele faria anos. A mulher, muito suja e desgrenhada, aproximou-se com voz grossa: 
 - Amor, desculpa. O dinheiro só chegou para uns bombons. 
Ele abraçou-a e lá seguiram rua fora. E eu fiquei a pensar que o amor não tem rua, nem condição. Quem assistiu como eu, a esse postal de ternura, não ficou indiferente e, provavelmente, o azul do céu ganhou outro encantamento.



António Vilhena

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

A melhor beleza.


O tempo guarda a paciência, escreve direito onde as linhas se curvam, sabe esperar pelos solstícios. Não se pode fazer sem ele, o que só com ele se faz. A pressa da vida nada tem a ver com a urgência dos dias; a sequência que mistura a luz e a sombra nem sempre são desejos da mesma montanha, o que parece universal é, às vezes, um breve crepitar de uma estrela perdida na linha do horizonte. É preciso acreditar na sua fosforescência, é nela que, provavelmente, se oculta a melhor beleza. A luz, que muitos desejam, é a alegoria de uma nova vida, de um renascimento. Ao darmos nomes ao que sentimos, a inquietação desassossega-nos, abrem-se as veias a um novo pulsar que clama do vulcão um rio de lava. Na corrente desse fogo arde o mistério da esperança, a flor de pétalas azuis como rosáceas góticas resgatadas ao imaginário dos deuses. O tempo escreve com paciência para que o Homem se reencontre na sua pressa de viver.



António Vilhena

O amor é reaccionário.


Quando era adolescente as canções que ilustravam o meu mundo tinham pendor revolucionário, os meus amigos eram todos de esquerda, mas de uma esquerda onde o Partido Comunista era considerado de direita. Idos tempos de utopia e miopia onde era  fácil vender verdades a adolescentes que confundiam o mundo dos sonhos com os sonhos do mundo. Desse tempo, de que guardo boas memórias e grandes aprendizagens, recordo um episódio que foi determinante para romper ideologicamente com esse universo fechado e de clandestinidade, onde se defendia uma certa verdade, única, insofismável e inquestionável.

Certo dia, questionei um camarada sobre a possibilidade de publicar alguns poemas que tinha escrito no viço da adolescência, ele era o chefe local e nada devia ser feito sem que ouvíssemos a sua opinião, era assim o centralismo democrático. Esse camarada para além de ser um profissional da política era, também, presidente de uma Comissão de Trabalhadores de uma das maiores empresas de Portugal. Era alguém que tinha influência local e que se movia com facilidade nos corredores do poder, em Lisboa  Pedi-lhe que lesse esses textos. Passado algum tempo chegou a sua douta opinião. 

O camarada começou por dizer que os meus poemas não eram revolucionários, que falavam de amor e de paisagens, que não devíamos falar de nós, mas do colectivo. Num instante percebi que estava no lado errado da utopia. Sem mais delongas ou discussões tratei de pedir para sair da organização onde militava. O pior veio depois: longas reuniões, lavagens ao cérebro, promessas de revoluções com calendário ajustado às necessidades, enfim, uma via sacra ideológica para me convencerem a ficar. Foram longos meses de reuniões e comunicações internas para me convencerem que eu estava errado e, principalmente, que devia ter em conta o colectivo. Inútil! Eu era um adolescente com asas, não admitia disciplina ignorante e dogmática. 

Finalmente, encontraram a melhor fórmula: expulsão do partido por defender a ideologia burguesa. Nem mais, para mim foi um alívio. Considero este acontecimento determinante na minha vida cívica. A minha percepção da liberdade é de tolerância. O tempo deu-me razão. Esse camarada que vetou os meus poemas de amor transformou-se num empresário, abandonou as convicções  esquerdistas, vendeu Lenine e Marx, e converteu-se ao luxo do capitalismo mais selvagem. Agradeço-lhe, sem o seu veto e a sua ignorância, provavelmente, a minha vida seria outra. Quando recordo este episódio não reencontro na vida pública nenhum desses patetas que vendiam o futuro, mas que não deixavam os jovens viverem o seu presente. Os poemas de amor venceram a ignorância, porque só o amor é revolucionário.



António Vilhena

domingo, 29 de outubro de 2017

À porta do quiosque.




Era para ser uma simples conversa à porta do quiosque dos jornais, mas as palavras tensas trouxeram o ar pesado. Os primeiros instantes revelaram uma inquietude ilegível. As unhas descuidadas da mão direita deixaram-me de sobreaviso. A tarde instalara-se, acenderam as luzes e a nossa conversa continuou. Era preciso dar ouvidos, olhar nos olhos, permanecer sem pressa. Nestas circunstâncias é preciso empatia, é urgente que o outro sinta que nos disponibilizamos incondicionalmente, que sentimos as suas dores, que estamos disponíveis para ficarmos perto. Não marcámos encontro, não sabíamos um do outro há muito tempo, desde que frequentámos a Faculdade. O tempo quase apagou as feições do seu rosto, não fosse ter chamado pelo meu nome. A conversa podia não ter acontecido se não fosse esse acaso, e, provavelmente, passariam mais vinte anos sem nos encontrarmos. A história das amizades é, também, feita destes momentos improváveis, deste jogo de dados: Vou comprar o jornal aqui? Vou ler as “gordas”? Entro, não entro? Foi assim que tudo começou, a mão no ombro e um olá afectivo foram suficientes para rememorarmos tanta ausência. Em trinta segundos fiquei a saber onde vivia, o que fazia, que tinha filhos, que se dedicava a divulgar a palavra de Deus. Quase no fim, disse-me que me esperava na sua Igreja. Prometi-lhe que passaria lá um dia. Despedimo-nos como se fossemos vizinhos, mas senti que seriam necessários mais vinte anos para nos encontrarmos.
                                                                                                                                            

António Vilhena

terça-feira, 24 de outubro de 2017

Regressos


Todos aceitamos dançar com a ilusão, pelo menos uma vez na vida somos levados pela mão invisível e dolente que nos conta a narrativa do lobo bom. É tão fácil acreditarmos nas coisas boas, desde pequenos somos educados para a generosidade e o altruísmo. Por isso, as palavras doces como água em dias quentes, percorrem os lugares sem maldade que permanecem dentro de nós. Fechamos os olhos, como se a nossa mãe nos embalasse e entregamo-nos ao perfume da voz que seduz.
Mais tarde ou mais cedo, a madrugada anuncia, ao som do chocalhar dos rebanhos, o adormecer das estrelas cansadas, vindas do frio celeste, onde os poetas caçam as rimas. Quando os cães acompanham os lobos e os rios vencem o silêncio, regressam as aves onde a vida tem pressa. Cada regresso é uma Tróia incendiada, um lugar de mesura e de esperança.



António Vilhena