Brumadinho:
a banalidade do mal.
Fabio
Schvartsman é o atual presidente da empresa VALE, S.A., desde 2017, e não
morreu em Brumadinho. O município que fica no estado de Minas Gerais,
localizado na Região Metropolitana de Belo Horizonte, com uma população de
aproximadamente 40 000 habitantes, o equivalente à Freguesia de S. António dos
Olivais, em Coimbra, viu morrer 177 dos seus filhos e 133 estão ainda
desaparecidos. A dor imensa é sentida por muitas famílias. Algumas foram engolidas
pelas lamas. A tragédia não tem nome, é tragédia, mas todos sentimos que a
morte nestas circunstâncias exige outras palavras: revolta, raiva e protesto. A
responsabilidade parece morrer solteira, mais uma vez, tal como aconteceu com a
barragem em Mariana.
É criminoso tudo o que sabemos sobre as condições de
segurança da barragem, desde ocultação de informação, falsificação de
relatórios, falsas peritagens e cumplicidade entre técnicos e administração. É
o capitalismo selvagem, a corrupção e o compadrio na sua expressão máxima. O
silêncio foi sempre a regra de ouro da VALE, inclusive, quando foi preciso dar
o alerta do rompimento da barragem. Segundo documento interno da empresa
mineira, o alerta teria salvado 150 pessoas. Mas o presidente, Fabio Schvartsman,
mentiu quando afirmou que as sirenes foram engolidas pelas lamas. Estão, ainda,
intactas, só não foram acionadas, como comprovaram investigações posteriores à
tragédia. Pese embora as recomendações da empresa alemã TÜV-SÜD, que detetou
problemas, os engenheiros da VALE atestaram que a segurança da barragem era
boa.
O
que fica da tragédia de Brumadinho? Ficam os mortos e os desaparecidos. Uma
região sepultada pela lama onde só nasce a revolta; fica uma dor coletiva
incomensurável; fica o desejo de que a Justiça seja cega. Mesmo assim, há
gestos que falam de corações duros e insensíveis. Quando em Brumadinho foi
pedido um minuto de silêncio pelas vítimas, o presidente da VALE, Fabio
Schvartsman, foi a única pessoa que não se levantou. Por outro lado, o poeta
Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), escreveu um poema, em 1984, onde falava
“profeticamente” e abordava a paisagem e as águas do Rio Doce destruído pelas
lamas: I O Rio? É doce. // A Vale? Amarga. // Ai, antes fosse // Mais leve a
carga. II Entre estatais // E multinacionais, // Quantos ais! // III A dívida
interna. // A dívida externa // A dívida eterna. // IV Quantas toneladas
exportamos // De ferro? // Quantas lágrimas disfarçamos // Sem berro?
Sim,
os gritos e o desespero são sufocados por mães, pais, filhos e irmãos. Imagino
um monumento com os nomes do Ricardo, do Henrique, do Veppo, do Lara, da Joana,
do Miguel, da Rosa, da Cláudia, do José, do Artur, do Aprígio, da Graça, do
Hipólito, da Catarina, do Raposo, do Tavares e de tantos outros a que as
famílias não conseguiram dar sepultura. Na imensa vala de lama não crescem
flores, apenas ervas daninhas. Perante uma tragédia desta dimensão, o gesto do
presidente da empresa VALE, Fabio Schvartsman, ao não levantar-se para prestar
homenagem aos mortos numa sessão pública, revela uma inqualificável arrogância
e falta de sensibilidade – é o que Hannah Arendt (1906-1975) chamou de
“banalidade do mal”.
António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
Onde estão as Belas Artes?
Sempre que a Universidade de
Coimbra elege um novo reitor abre-se uma porta de esperança. Infelizmente, nos
últimos anos as portas são estreitas e o guarda-interno encarrega-se de as
blindar. Temos assistido ao definhamento da Universidade de Coimbra, pese
embora a propaganda que os burocratas fazem ao ranquing. Há vários olhares da Universidade de Coimbra: o que os
cientistas amam, o que os professores adoram, o que os alunos sonham e, ainda, o
que os contabilistas pensam. Ouve-se de forma recorrente que a Universidade de
Coimbra vive do seu passado, mas a verdade é que nem todo o passado foi assim
tão bom. Tudo depende da margem que escolhemos para atracar o barco.
Quem não
sentiu a Academia, quem não a viveu nas suas idiossincrasias sociais e
culturais, pode pedir a todos archeiros que abram as portas da Reitoria, mas o
único vento que passa é o gripal. Não gosto de citar Antero de Quental sobre a
Universidade, mas há uma progressiva lentificação que tolhe a essência do seu
primado: ser moderna em cada circunstância, inovadora, universal e humanista. O
próprio processo de eleição do reitor mostra a sua clausura e, também, a farsa que
configura a possibilidade de haver outros candidatos estrangeiros. A
instituição fecha-se sobre si própria, como um caracol, condenando as
candidaturas exógenas a uma mera representação fictícia. O que eu digo ficou
provado nesta eleição para o novo reitor. O Conselho Geral que elege o reitor
não estimula as forças vivas da Universidade e muito menos a Academia. É uma
mão cheia de ilustres personalidades que só aparecem quando há eleições.
O
modelo é pouco mobilizador e estimulante, favorece os que têm receio do debate
e da exposição – sempre discordei. Sou do tempo da Assembleia da Universidade
onde existia mais pluralismo e representatividade. Chegados aqui, importa saber
o que podemos esperar da eleição do Doutor Amílcar Falcão. Não sabemos que
compromissos prévios assumiu para além do seu programa, principalmente, na
segunda volta. O pior argumento para o vencedor é identifica-lo com o mandato
anterior. Mas acredito que o novo reitor não deixará fugir a pomba da
esperança. Esta é a hora de soltar as amarras, de quebrar as algemas e de içar
as velas – estas metáforas têm correspondência com a realidade. É isto que se
espera de um novo reitor. Que não apague as cinzas da crítica de Antero, mas
que ouse afirmar a universalidade e as humanidades.
A Universidade e a cidade
de Coimbra não podem continuar de costas voltadas, num mutismo ensurdecedor. A
autonomia universitária não é equivalente a autodeterminação. A cidade
orgulha-se da sua universidade, mas a universidade nem sempre corresponde à
empatia. Talvez uma certa distopia histórica ajude a explicar o desencontro. Com
a eleição do Doutor Amílcar Falcão, que toma posse dia 1 de Março, não se
esperam milagres, mas uma atitude que crie pontes, uma linguagem mais
contemporânea e, acima de tudo, um compromisso sério com outras instituições ao
serviço da cidade e da região. A mais internacional das universidades não pode
ficar refém de nenhuma faculdade, não deve perder a sua visão humanista, mas
pode e deve, através da excelência da sua investigação e do seu prestígio,
criar condições para o ensino das Belas Artes. Falta coragem? Visão
estratégica? Paradoxalmente existe o Colégio das Artes.
As Belas Artes ainda
parecem ser o tema tabu na Universidade de Coimbra. Esta discussão é antiga e
não tem merecido a atenção que merece ao longo dos vários reitorados. Não é
impunemente que esta questão é recorrente, ela é transversal e e permitiria um
arejamento da instituição e, quiçá, mudaria o paradigma. Desde há muito que o
ensino das Artes está reservado a Lisboa e ao Porto. Quem tem medo do ensino
das Belas Artes na Universidade de Coimbra? O novo reitor tem a grande oportunidade
de acrescentar à força e à sabedoria da Universidade de Coimbra, a beleza que
tudo transforma.
António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
Jamaicas.
Portugal descobriu
recentemente que existia um bairro pobre chamado Jamaica. E digo descobriu
porque, até agora, fingiu que não existia, como acontece a muitos outros
bairros que não passam de um amontoado de gente que não tem voz, nem se sente
representada. Infelizmente, o bairro Jamaica deu-se a conhecer como a
comunicação social bem entendeu e o pintou. Para uns trata-se de gente perigosa
e com comportamentos violentos; para outros, ali acontecem coisas estranhas.
Depois veio a questão do racismo e Assunção Cristas confrontou António Costa,
como se fosse seu filho, a querer puxar-lhe as orelhas em frente aos recortes
da imprensa.
Acrescente-se, ainda, a falta de jeito de Mamadou Ba para defender
as causas que diz representar. E uma extrema-direita caceteira à espreita para
envernizar o racismo, a xenofobia e outros ismos. Mas gostava que Mamadou Ba
soubesse que eu e todos os que defendem uma sociedade justa e solidária, também,
queremos que as famílias que vivem no bairro Jamaica tenham condições e que os
seus filhos tenham as mesmas oportunidades de outros meninos de qualquer rua de
Portugal. Talvez Mamadou Ba pense que escrevo esta crónica com a poeira dos
dias, desengane-se. Procurei saber quem vive no bairro, quantos são, de onde
vieram e que vida levam.
Mamadou Ba deve saber que o bairro, é um amontoado de
prédios inacabados, propriedade de uma empresa falida e com dívidas fiscais, e
que foi ocupado por famílias, na sua maioria, de países lusófonos, com a
promessa de realojamento pela autarquia. Deve saber, também, que a CRIAR-T –
Associação de Solidariedade tem feito um esforço enorme para acolher as
crianças, permitindo que os pais possam ir trabalhar – porque as crianças não
podem ficar sozinhas correndo vários perigos no bairro. Também deve saber que
muitas vezes a EDP corta a luz porque as famílias não podem pagar a fatura coletiva.
Talvez fosse uma boa ideia a EDP aplicar a tarifa social a essas famílias.
No
bairro vivem aproximadamente 800 cidadãos que esperam por promessas, algumas
delas como a requalificação do parque infantil, muito degradado, e que não
reúne as mínimas condições de segurança para as crianças brincarem. Quem entra
no bairro é recebido por Bob Marley e Che Guevara, símbolos de outros tempos
que continuam a inspirar a revolta dos que vivem num bairro que não tem
condições mínimas de vida. Quem vive ali não tem dinheiro para viver noutro
sítio, precisa de emprego e esse, também, não é fácil. A autarquia não
desconhece esta realidade e tem responsabilidades acrescidas. Os políticos de
Lisboa, os que conhecem bem as passadeiras vermelhas do poder, os corredores e
as salas com salvas de prata, descobriram o Jamaica e interessaram-se pelas
manchetes.
A hipocrisia tem limites. Deviam ser proibidos de entrar no Jamaica
enquanto não assumissem as suas responsabilidades. Pedro Santana Lopes foi o
mais lesto a visitá-lo e até se mostrou chocado com a pobreza. Lembro que foi
primeiro-ministro e provedor da Santa Casa. E o que fez por esta gente? A
seguir irão outros políticos com um batalhão de jornalistas atrás para
mostrarem a sua estupefação e incredulidade. Enquanto o assunto for a espuma do
dia será aproveitado como tema para interpelações ao governo na Assembleia da
República, mas depois a monotonia regressará e o Jamaica voltará à rotina dos
seus dias.
Todos sabemos que mais tarde ou mais cedo haverá outro Jamaica,
outro bairro com gente dentro que se sente abandonada, que sente a vida dos
seus filhos não ter futuro, sem dinheiro para a luz, a água e a universidade.
Haverá outro Jamaica que encontra na exclusão a semente para gritar que também
quer “trabalho, pão, habitação e liberdade a sério”. Quem empurra para os
guetos os mais vulneráveis não pode esperar que eles se calem e se resignem.
Nem todos podem ser como o banqueiro que nos disse para aguentarmos. Esse ganha
milhões e não quer saber se o Jamaica fica em Portugal ou em Angola. Uma
sociedade inclusiva promove a igualdade e luta contra todo o tipo de
segregação. Infelizmente, há outros bairros como o Jamaica que ainda não
gritaram.
António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
Cristina
Tavares não foi “ungida por Deus”
Eu sei que quando está em
causa dizer algumas verdades todos empurram a pedra pela encosta. Não me atrevo
a dizer que depois, para trazer a pedra de volta, alguns não sejam tão
solidários como antes. Todos sabemos que a mediatização, nalguns casos, apenas
contempla empurrar a pedra. Quando o caso surgiu de Cristina Tavares, uma
trabalhadora de uma corticeira, em que a Autoridade para as Condições do
Trabalho denunciou que a trabalhadora estava ser vítima de assédio, a notícia
propagou-se, não faltou tempo de antena. Era a notícia do momento.
Fernando
Couto-Cortiças, SA, de Paços de Brandão, Feira, despediu a sua funcionária pela
segunda vez, alegando que ela pôs em causa o bom nome da empresa. Claro que a
questão ainda corre nos tribunais, apesar de estes já terem levantado autos e
uma multa de 31 mil euros - mas a verdade é que Cristina Tavares está de novo
despedida. Depois da primeira integração da trabalhadora imposta pelos
tribunais, foram-lhe atribuídas funções quase humilhantes e que configuravam uma
clara descriminação, sendo privada, inclusive, de usar a casa de banho com
privacidade. O bulling empresarial
condena sempre os mais fracos, aponta-lhes a porta de saída em nome de uma
justa causa: o bom nome. É preciso denunciar estas situações desumanas e com
reminiscência de outros tempos.
Agora interessa-me saber quem está disponível
para ajudar esta mulher? Como ela diz: estou em casa, a viver um dia de cada
vez. Não vou desistir, porque quero o meu posto de trabalho. Não me meto com
ninguém estou lá apenas para trabalhar. Mas terá Cristina condições
psicológicas para ganhar o pão na mesma empresa? Para além de um novo emprego
esta mulher precisaria, eventualmente, de apoio psicológico. Agora que o caso
já saiu do alinhamento noticioso é hora de repicar os sinos pelas questões
práticas: ajudar a Cristina.
Este caso tornou-se conhecido, mas haverá,
certamente, outras Cristinas que “aguentam” com medo de perderem o emprego. A
precaridade é uma ameaça e espreita em cada oportunidade. É por isso que
defendo os sindicatos, porque estes têm um papel fundamental na defesa dos
trabalhadores contra a prepotência e as arbitrariedades. O Sindicato dos
Operários Corticeiros do Norte promete fazer tudo para defender este caso. Tem
agendada para o próximo sábado, 19 de janeiro, a primeira "caminhada
solidária". A concretizar-se será um momento histórico. Em primeiro lugar
porque a causa é justa; depois, porque representa a essência do sindicalismo e
dos seus valores fundacionais.
Este caso exige uma
reflexão: ainda temos alguns empresários que consideram os seus trabalhadores
como carne para canhão. Claro que a empresa acha que o “caso Cristina” é “um
linchamento público da empresa, sem defesa” na praça pública. Parece-me que a
empresa não aprendeu nada quando foi obrigada a integrar a trabalhadora depois
do primeiro despedimento. Nas sociedades modernas a informação é a grande força
da democracia. Os danos causados à imagem pública da empresa são óbvios.
Se os portugueses se unirem,
na defesa de Cristina, estão a dizer que é preciso respeitar quem trabalha,
defender os seus direitos e a dignidade de cada pessoa. Cristina quer dizer
“ungida por Deus”, mas neste caso parece que foi a filha de um deus menor.
Defender a igualdade de género é emprestar a escrita a quem não tem voz, a quem
não tem o #ME TOO ao seu lado. É nestes momentos que eu acho que alguns
políticos, que defendem estas causas, deviam estar presentes – não chega
fazerem discursos de circunstância, redondinhos e com prosápia oportunista. É
preciso estar lá. Desafio os que enchem a boca com solidariedade, a estarem dia
19 de Janeiro na “caminhada solidária” para defenderem a Cristina. Não basta
parecer, é preciso ser solidário.
António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
Muita roupa na varanda.
Chamaste por mim onde a
curva esconde a rua que vira para o rio e o eco da tua voz perpetuou-se depois
do encontro. Era como se um balão de som nos envolvesse ao longo da caminhada.
Apesar do sol, o frio exigia cachecóis. Nada era tão paradoxal: onde o céu era
azul e infinito, soava um vento invisível rente aos olhos; o que não se via era
sentido na pele, e o rio levava o olhar. Ao longo da caminhada escutámos um
violino, talvez perto, talvez escondido numa viela, numa esquina. Percebemos
que seria um virtuoso. Fomos em busca desses dedos voadores que soltavam tão
belas melodias. Pelo caminho, sentadas nas escadas das portas, havia mulheres
de outra idade vendendo fruta seca. Insistiam para lhes comprarmos alguma
coisa. Foi então que ouvimos o choro do violino, um clarão de sons clamando a
paz e o amor. Aos poucos aproximamo-nos da nascente dessa música, uma praça
onde desaguam todas as ruas estreitas da cidade velha. Encostado a um velho
pelourinho, um violinista esticava o arco e a multidão lançava moedas para uma
caixa.
Quando chegámos o sol desaparecia sobre os telhados, a sombra
estendia-se e os turistas zarpavam lentamente. Ficavam os que amavam o velho
violinista, a poética do lugar, o delta de ruas, a ancestralidade da urbe, o
inverno vestido de azul. Nas arcadas estendiam-se esplanadas, serviam chocolate
quente e pão com geleia. Era a hora de ligarem os aquecedores. O violinista
recolheu a sua jorna, agradeceu com uma vénia e colocou o instrumento na
mochila. Talvez voltasse no dia seguinte. Regressámos ao hotel pelas
ruas estreitas e já com os candeeiros acesos derramando uma luz quente na pedra
gasta dos edifícios, outrora, moradas de mercadores e contrabandistas. Hoje são
pensões, lojas comerciais para turistas. Ouve-se o fechar das portas, o descer
das grades de segurança, a cidade velha prepara-se para dormir.
No lado oposto,
junto ao rio, os restaurantes estão apinhados de gente para jantar. É a polis
gastronómica, uma variedade de países oferecem as suas tradições. A poucas
horas da passagem do ano, aproximamo-nos do MED, um restaurante onde a sua
especialidade é sopa de cação. MED é a abreviatura de Mediterrânio. É muito
procurado por portugueses, espanhóis, italianos, argentinos e cubanos. A sua
história cruza-se com os Descobrimentos. O seu proprietário é indiano, diz que
é descendente de portugueses. Fala um português arranhado e faz questão de
exibir Os Lusíadas e recitar alguns Cantos. É um deslumbramento. A
acrescentar a esta luxúria cultural, oferece vinho português como aperitivo. Entre
tantas surpresas, o que mais nos surpreendeu foi, no primeiro andar, haver uma
varanda cheia de roupa, um estendal ao vento. À medida que a fila crescia para
o MED, ouvia-se um violino no seu interior. Por instantes, pensámos nos acordes
que ouvimos na praça. Talvez fosse o mesmo virtuoso, crescia-nos a esperança de
conhecê-lo. Junto ao rio há imensos lugares de diversão, chamam-lhe o rio sem
sono.
Mas é de madrugada que os pescadores dão outra vida aos cais, as embarcações
regressam para vender o peixe, ainda muitos perpetuam a diversão da noite. Ao
romper da manhã ouvem-se os sinos das igrejas, quase em uníssono, a chamarem os
fiéis para as primeiras missas. Pelas ruelas encaminham-se muitas mulheres
idosas, em passo lento, levando um terço na mão. A maioria veste de negro e
leva o rosto quase tapado. As muitas vidas da cidade velha cruzam-se na praça e
junto ao rio. O bulício no cais não faz esquecer as crianças que se abeiram das
mesas dos restaurantes de mão estendida. Os empregados são lestos a
expulsá-las. A lei é de encobrimento e de vergonha. O ritual da passagem de
ano, por estas bandas, faz-se, também, com champanhe. Mas, aprendemos que muita
roupa na varanda significa purificação e novos aromas para receber o novo ano. Nada
como mudar as roupas ou içá-las ao vento para receber o que é novo de um tempo
velho.
António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
Última
lição da Professora Nair de Nazaré Soares.
A última lição é, assim, uma
maneira eclética de dizer que um Professor se jubilou, ou seja, que pela força
da lei chegou a hora de passar o testemunho aos mais novos. Na verdade, um
Professor nunca diz adeus, os seus discípulos lembrá-lo-ão durante muito tempo,
perpetuando os seus ensinamentos com a transmissão do conhecimento. Mas
confesso que a última lição da Professora Nair de Nazaré Castro Soares foi
muito mais do que isso, foi um mar de saber que encheu o anfiteatro IV da
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, o mesmo onde há trinta anos se
apresentou publicamente. Como referiu: “Fechei o ciclo aqui”. O que é que esta
última lição teve de extraordinário? Senti que a Polis estava ali, que os seus
discípulos – e eram muitos - quiseram honrar a sua professora naquele palco
onde tantas vezes receberam a luz. Não se tratou apenas de beleza, mas da razão
maior das coisas, da essência que nos agiganta.
Ao longo de uma hora, de pé,
atravessou a história da humanidade, cruzou o Mediterrâneo, o mar Vermelho, o
Adriático, o Mar Negro, o Índico; levou-nos a Atenas, a Creta, a Ítaca, a Roma
e a Jerusalém. Falou-nos daqueles que não nos deixam morrer nas trevas, fez-nos
sentir parte de uma humanidade onde o humanismo nos devolve a dignidade de
sermos mortais. Durante a sua lição compreendi melhor a importância do Centro
de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, onde
passaram os Doutores Américo Ramalho, Walter Medeiros, Manuel Pulquério, Maria
Helena da Rocha Pereira…
A última lição foi uma ágora privilegiada, a ela convergiram
os seus pares, alunos, amigos, admiradores e debutantes. Foi, acima de tudo, um
momento de homenagem, de preito a quem dedicou o melhor da sua vida, neste
caso, à Universidade. Foi um momento de emoções fortes, de reencontros e recordações.
Agora aproxima-se a hora de arrumar o passado, de mudar as rotinas, de acertar
o passo, de fazer o que falta. O desapego é um processo doloroso, por isso,
vamos continuar a ver, felizmente, a Professora Nair de Nazaré Soares, com um
seu sorriso de bondade, onde sempre a procurámos.
Roland Barthes (1915 – 1980)
lembrava na sua lição inaugural da cadeira de Semiologia Literária do Colégio
de França, em 1977, que estava a entrar numa vita nuova e que tinha de
se “deixar levar pela força de toda a vida viva: o esquecimento”. Por outras
palavras, talvez fosse mais fácil recomeçar quando chega a hora de desaprender,
“de deixar germinar a mudança imprevisível que o esquecimento impõe à
sedimentação dos saberes, das culturas, das crenças que atravessámos”. É nesse
lugar, onde o relógio consome a urgência da existência, que fica a “Sapiência:
nenhum poder, um pouco de saber, um pouco de sabedoria e o máximo de sabor
possível”.
A última lição da Professora
Nair trouxe-me à memória o ensaio “A
Ordem do Discurso” de Michel Foucault: “Mas o que há afinal de tão perigoso
no facto de as pessoas falarem e de os seus discursos proliferarem
indefinidamente?” A resposta é complexa e exige mergulhar num caldo de
possibilidades, conforme o contexto, onde cada escolha pressupõe outras tantas
exclusões. Mas a eloquência da Professora Nair é real, porque no seu scriptorium sobreviveram os ensinamentos
dos textos clássicos e porque nunca foi uma professora que “por cegueira
estética e ciúme inconsciente” esmagasse os seus alunos.
Um mestre é aquele que
estimula e envolve, que nos faz sentir a tomar café com Aristóteles ou Erasmo,
que nos faz entrar na poética do homem, a poiêsis,
e declamar o verso de Keats: “A verdade é a beleza e a beleza é a verdade”.
Apesar da última lição permanecem os verbos do futuro, da esperança, que só a
poesia é capaz de oferecer. Esta é uma crónica de elogio à professora e à mulher
Nair de Nazaré Castro Soares, à sua resiliência e coragem. Mulher de lágrima
fácil e de coração gigante com um pé em Jerusalém e outro em Atenas. A última
lição constituiu um canto na sua voz, um abraço de emoção de que todos somos
devedores. Neste fragmento de Píndaro: “Aquele que, na sua profundidade do mar
sem ondulação, das flautas/Se viu amorosamente comovido pelo canto”, estão
todas as emoções que senti na sua última lição.
Brumadinho:
a banalidade do mal.
Fabio
Schvartsman é o atual presidente da empresa VALE, S.A., desde 2017, e não
morreu em Brumadinho. O município que fica no estado de Minas Gerais,
localizado na Região Metropolitana de Belo Horizonte, com uma população de
aproximadamente 40 000 habitantes, o equivalente à Freguesia de S. António dos
Olivais, em Coimbra, viu morrer 177 dos seus filhos e 133 estão ainda
desaparecidos. A dor imensa é sentida por muitas famílias. Algumas foram engolidas
pelas lamas. A tragédia não tem nome, é tragédia, mas todos sentimos que a
morte nestas circunstâncias exige outras palavras: revolta, raiva e protesto. A
responsabilidade parece morrer solteira, mais uma vez, tal como aconteceu com a
barragem em Mariana.
É criminoso tudo o que sabemos sobre as condições de
segurança da barragem, desde ocultação de informação, falsificação de
relatórios, falsas peritagens e cumplicidade entre técnicos e administração. É
o capitalismo selvagem, a corrupção e o compadrio na sua expressão máxima. O
silêncio foi sempre a regra de ouro da VALE, inclusive, quando foi preciso dar
o alerta do rompimento da barragem. Segundo documento interno da empresa
mineira, o alerta teria salvado 150 pessoas. Mas o presidente, Fabio Schvartsman,
mentiu quando afirmou que as sirenes foram engolidas pelas lamas. Estão, ainda,
intactas, só não foram acionadas, como comprovaram investigações posteriores à
tragédia. Pese embora as recomendações da empresa alemã TÜV-SÜD, que detetou
problemas, os engenheiros da VALE atestaram que a segurança da barragem era
boa.
O
que fica da tragédia de Brumadinho? Ficam os mortos e os desaparecidos. Uma
região sepultada pela lama onde só nasce a revolta; fica uma dor coletiva
incomensurável; fica o desejo de que a Justiça seja cega. Mesmo assim, há
gestos que falam de corações duros e insensíveis. Quando em Brumadinho foi
pedido um minuto de silêncio pelas vítimas, o presidente da VALE, Fabio
Schvartsman, foi a única pessoa que não se levantou. Por outro lado, o poeta
Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), escreveu um poema, em 1984, onde falava
“profeticamente” e abordava a paisagem e as águas do Rio Doce destruído pelas
lamas: I O Rio? É doce. // A Vale? Amarga. // Ai, antes fosse // Mais leve a
carga. II Entre estatais // E multinacionais, // Quantos ais! // III A dívida
interna. // A dívida externa // A dívida eterna. // IV Quantas toneladas
exportamos // De ferro? // Quantas lágrimas disfarçamos // Sem berro?
Sim,
os gritos e o desespero são sufocados por mães, pais, filhos e irmãos. Imagino
um monumento com os nomes do Ricardo, do Henrique, do Veppo, do Lara, da Joana,
do Miguel, da Rosa, da Cláudia, do José, do Artur, do Aprígio, da Graça, do
Hipólito, da Catarina, do Raposo, do Tavares e de tantos outros a que as
famílias não conseguiram dar sepultura. Na imensa vala de lama não crescem
flores, apenas ervas daninhas. Perante uma tragédia desta dimensão, o gesto do
presidente da empresa VALE, Fabio Schvartsman, ao não levantar-se para prestar
homenagem aos mortos numa sessão pública, revela uma inqualificável arrogância
e falta de sensibilidade – é o que Hannah Arendt (1906-1975) chamou de
“banalidade do mal”.
António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
Onde estão as Belas Artes?
Sempre que a Universidade de
Coimbra elege um novo reitor abre-se uma porta de esperança. Infelizmente, nos
últimos anos as portas são estreitas e o guarda-interno encarrega-se de as
blindar. Temos assistido ao definhamento da Universidade de Coimbra, pese
embora a propaganda que os burocratas fazem ao ranquing. Há vários olhares da Universidade de Coimbra: o que os
cientistas amam, o que os professores adoram, o que os alunos sonham e, ainda, o
que os contabilistas pensam. Ouve-se de forma recorrente que a Universidade de
Coimbra vive do seu passado, mas a verdade é que nem todo o passado foi assim
tão bom. Tudo depende da margem que escolhemos para atracar o barco.
Quem não
sentiu a Academia, quem não a viveu nas suas idiossincrasias sociais e
culturais, pode pedir a todos archeiros que abram as portas da Reitoria, mas o
único vento que passa é o gripal. Não gosto de citar Antero de Quental sobre a
Universidade, mas há uma progressiva lentificação que tolhe a essência do seu
primado: ser moderna em cada circunstância, inovadora, universal e humanista. O
próprio processo de eleição do reitor mostra a sua clausura e, também, a farsa que
configura a possibilidade de haver outros candidatos estrangeiros. A
instituição fecha-se sobre si própria, como um caracol, condenando as
candidaturas exógenas a uma mera representação fictícia. O que eu digo ficou
provado nesta eleição para o novo reitor. O Conselho Geral que elege o reitor
não estimula as forças vivas da Universidade e muito menos a Academia. É uma
mão cheia de ilustres personalidades que só aparecem quando há eleições.
O
modelo é pouco mobilizador e estimulante, favorece os que têm receio do debate
e da exposição – sempre discordei. Sou do tempo da Assembleia da Universidade
onde existia mais pluralismo e representatividade. Chegados aqui, importa saber
o que podemos esperar da eleição do Doutor Amílcar Falcão. Não sabemos que
compromissos prévios assumiu para além do seu programa, principalmente, na
segunda volta. O pior argumento para o vencedor é identifica-lo com o mandato
anterior. Mas acredito que o novo reitor não deixará fugir a pomba da
esperança. Esta é a hora de soltar as amarras, de quebrar as algemas e de içar
as velas – estas metáforas têm correspondência com a realidade. É isto que se
espera de um novo reitor. Que não apague as cinzas da crítica de Antero, mas
que ouse afirmar a universalidade e as humanidades.
A Universidade e a cidade
de Coimbra não podem continuar de costas voltadas, num mutismo ensurdecedor. A
autonomia universitária não é equivalente a autodeterminação. A cidade
orgulha-se da sua universidade, mas a universidade nem sempre corresponde à
empatia. Talvez uma certa distopia histórica ajude a explicar o desencontro. Com
a eleição do Doutor Amílcar Falcão, que toma posse dia 1 de Março, não se
esperam milagres, mas uma atitude que crie pontes, uma linguagem mais
contemporânea e, acima de tudo, um compromisso sério com outras instituições ao
serviço da cidade e da região. A mais internacional das universidades não pode
ficar refém de nenhuma faculdade, não deve perder a sua visão humanista, mas
pode e deve, através da excelência da sua investigação e do seu prestígio,
criar condições para o ensino das Belas Artes. Falta coragem? Visão
estratégica? Paradoxalmente existe o Colégio das Artes.
As Belas Artes ainda
parecem ser o tema tabu na Universidade de Coimbra. Esta discussão é antiga e
não tem merecido a atenção que merece ao longo dos vários reitorados. Não é
impunemente que esta questão é recorrente, ela é transversal e e permitiria um
arejamento da instituição e, quiçá, mudaria o paradigma. Desde há muito que o
ensino das Artes está reservado a Lisboa e ao Porto. Quem tem medo do ensino
das Belas Artes na Universidade de Coimbra? O novo reitor tem a grande oportunidade
de acrescentar à força e à sabedoria da Universidade de Coimbra, a beleza que
tudo transforma.
António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
Jamaicas.
Portugal descobriu
recentemente que existia um bairro pobre chamado Jamaica. E digo descobriu
porque, até agora, fingiu que não existia, como acontece a muitos outros
bairros que não passam de um amontoado de gente que não tem voz, nem se sente
representada. Infelizmente, o bairro Jamaica deu-se a conhecer como a
comunicação social bem entendeu e o pintou. Para uns trata-se de gente perigosa
e com comportamentos violentos; para outros, ali acontecem coisas estranhas.
Depois veio a questão do racismo e Assunção Cristas confrontou António Costa,
como se fosse seu filho, a querer puxar-lhe as orelhas em frente aos recortes
da imprensa.
Acrescente-se, ainda, a falta de jeito de Mamadou Ba para defender
as causas que diz representar. E uma extrema-direita caceteira à espreita para
envernizar o racismo, a xenofobia e outros ismos. Mas gostava que Mamadou Ba
soubesse que eu e todos os que defendem uma sociedade justa e solidária, também,
queremos que as famílias que vivem no bairro Jamaica tenham condições e que os
seus filhos tenham as mesmas oportunidades de outros meninos de qualquer rua de
Portugal. Talvez Mamadou Ba pense que escrevo esta crónica com a poeira dos
dias, desengane-se. Procurei saber quem vive no bairro, quantos são, de onde
vieram e que vida levam.
Mamadou Ba deve saber que o bairro, é um amontoado de
prédios inacabados, propriedade de uma empresa falida e com dívidas fiscais, e
que foi ocupado por famílias, na sua maioria, de países lusófonos, com a
promessa de realojamento pela autarquia. Deve saber, também, que a CRIAR-T –
Associação de Solidariedade tem feito um esforço enorme para acolher as
crianças, permitindo que os pais possam ir trabalhar – porque as crianças não
podem ficar sozinhas correndo vários perigos no bairro. Também deve saber que
muitas vezes a EDP corta a luz porque as famílias não podem pagar a fatura coletiva.
Talvez fosse uma boa ideia a EDP aplicar a tarifa social a essas famílias.
No
bairro vivem aproximadamente 800 cidadãos que esperam por promessas, algumas
delas como a requalificação do parque infantil, muito degradado, e que não
reúne as mínimas condições de segurança para as crianças brincarem. Quem entra
no bairro é recebido por Bob Marley e Che Guevara, símbolos de outros tempos
que continuam a inspirar a revolta dos que vivem num bairro que não tem
condições mínimas de vida. Quem vive ali não tem dinheiro para viver noutro
sítio, precisa de emprego e esse, também, não é fácil. A autarquia não
desconhece esta realidade e tem responsabilidades acrescidas. Os políticos de
Lisboa, os que conhecem bem as passadeiras vermelhas do poder, os corredores e
as salas com salvas de prata, descobriram o Jamaica e interessaram-se pelas
manchetes.
A hipocrisia tem limites. Deviam ser proibidos de entrar no Jamaica
enquanto não assumissem as suas responsabilidades. Pedro Santana Lopes foi o
mais lesto a visitá-lo e até se mostrou chocado com a pobreza. Lembro que foi
primeiro-ministro e provedor da Santa Casa. E o que fez por esta gente? A
seguir irão outros políticos com um batalhão de jornalistas atrás para
mostrarem a sua estupefação e incredulidade. Enquanto o assunto for a espuma do
dia será aproveitado como tema para interpelações ao governo na Assembleia da
República, mas depois a monotonia regressará e o Jamaica voltará à rotina dos
seus dias.
Todos sabemos que mais tarde ou mais cedo haverá outro Jamaica,
outro bairro com gente dentro que se sente abandonada, que sente a vida dos
seus filhos não ter futuro, sem dinheiro para a luz, a água e a universidade.
Haverá outro Jamaica que encontra na exclusão a semente para gritar que também
quer “trabalho, pão, habitação e liberdade a sério”. Quem empurra para os
guetos os mais vulneráveis não pode esperar que eles se calem e se resignem.
Nem todos podem ser como o banqueiro que nos disse para aguentarmos. Esse ganha
milhões e não quer saber se o Jamaica fica em Portugal ou em Angola. Uma
sociedade inclusiva promove a igualdade e luta contra todo o tipo de
segregação. Infelizmente, há outros bairros como o Jamaica que ainda não
gritaram.
António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
Cristina Tavares não foi “ungida por Deus”
Eu sei que quando está em
causa dizer algumas verdades todos empurram a pedra pela encosta. Não me atrevo
a dizer que depois, para trazer a pedra de volta, alguns não sejam tão
solidários como antes. Todos sabemos que a mediatização, nalguns casos, apenas
contempla empurrar a pedra. Quando o caso surgiu de Cristina Tavares, uma
trabalhadora de uma corticeira, em que a Autoridade para as Condições do
Trabalho denunciou que a trabalhadora estava ser vítima de assédio, a notícia
propagou-se, não faltou tempo de antena. Era a notícia do momento.
Fernando
Couto-Cortiças, SA, de Paços de Brandão, Feira, despediu a sua funcionária pela
segunda vez, alegando que ela pôs em causa o bom nome da empresa. Claro que a
questão ainda corre nos tribunais, apesar de estes já terem levantado autos e
uma multa de 31 mil euros - mas a verdade é que Cristina Tavares está de novo
despedida. Depois da primeira integração da trabalhadora imposta pelos
tribunais, foram-lhe atribuídas funções quase humilhantes e que configuravam uma
clara descriminação, sendo privada, inclusive, de usar a casa de banho com
privacidade. O bulling empresarial
condena sempre os mais fracos, aponta-lhes a porta de saída em nome de uma
justa causa: o bom nome. É preciso denunciar estas situações desumanas e com
reminiscência de outros tempos.
Agora interessa-me saber quem está disponível
para ajudar esta mulher? Como ela diz: estou em casa, a viver um dia de cada
vez. Não vou desistir, porque quero o meu posto de trabalho. Não me meto com
ninguém estou lá apenas para trabalhar. Mas terá Cristina condições
psicológicas para ganhar o pão na mesma empresa? Para além de um novo emprego
esta mulher precisaria, eventualmente, de apoio psicológico. Agora que o caso
já saiu do alinhamento noticioso é hora de repicar os sinos pelas questões
práticas: ajudar a Cristina.
Este caso tornou-se conhecido, mas haverá,
certamente, outras Cristinas que “aguentam” com medo de perderem o emprego. A
precaridade é uma ameaça e espreita em cada oportunidade. É por isso que
defendo os sindicatos, porque estes têm um papel fundamental na defesa dos
trabalhadores contra a prepotência e as arbitrariedades. O Sindicato dos
Operários Corticeiros do Norte promete fazer tudo para defender este caso. Tem
agendada para o próximo sábado, 19 de janeiro, a primeira "caminhada
solidária". A concretizar-se será um momento histórico. Em primeiro lugar
porque a causa é justa; depois, porque representa a essência do sindicalismo e
dos seus valores fundacionais.
Este caso exige uma
reflexão: ainda temos alguns empresários que consideram os seus trabalhadores
como carne para canhão. Claro que a empresa acha que o “caso Cristina” é “um
linchamento público da empresa, sem defesa” na praça pública. Parece-me que a
empresa não aprendeu nada quando foi obrigada a integrar a trabalhadora depois
do primeiro despedimento. Nas sociedades modernas a informação é a grande força
da democracia. Os danos causados à imagem pública da empresa são óbvios.
Se os portugueses se unirem,
na defesa de Cristina, estão a dizer que é preciso respeitar quem trabalha,
defender os seus direitos e a dignidade de cada pessoa. Cristina quer dizer
“ungida por Deus”, mas neste caso parece que foi a filha de um deus menor.
Defender a igualdade de género é emprestar a escrita a quem não tem voz, a quem
não tem o #ME TOO ao seu lado. É nestes momentos que eu acho que alguns
políticos, que defendem estas causas, deviam estar presentes – não chega
fazerem discursos de circunstância, redondinhos e com prosápia oportunista. É
preciso estar lá. Desafio os que enchem a boca com solidariedade, a estarem dia
19 de Janeiro na “caminhada solidária” para defenderem a Cristina. Não basta
parecer, é preciso ser solidário.
António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
Muita roupa na varanda.
Chamaste por mim onde a
curva esconde a rua que vira para o rio e o eco da tua voz perpetuou-se depois
do encontro. Era como se um balão de som nos envolvesse ao longo da caminhada.
Apesar do sol, o frio exigia cachecóis. Nada era tão paradoxal: onde o céu era
azul e infinito, soava um vento invisível rente aos olhos; o que não se via era
sentido na pele, e o rio levava o olhar. Ao longo da caminhada escutámos um
violino, talvez perto, talvez escondido numa viela, numa esquina. Percebemos
que seria um virtuoso. Fomos em busca desses dedos voadores que soltavam tão
belas melodias. Pelo caminho, sentadas nas escadas das portas, havia mulheres
de outra idade vendendo fruta seca. Insistiam para lhes comprarmos alguma
coisa. Foi então que ouvimos o choro do violino, um clarão de sons clamando a
paz e o amor. Aos poucos aproximamo-nos da nascente dessa música, uma praça
onde desaguam todas as ruas estreitas da cidade velha. Encostado a um velho
pelourinho, um violinista esticava o arco e a multidão lançava moedas para uma
caixa.
Quando chegámos o sol desaparecia sobre os telhados, a sombra
estendia-se e os turistas zarpavam lentamente. Ficavam os que amavam o velho
violinista, a poética do lugar, o delta de ruas, a ancestralidade da urbe, o
inverno vestido de azul. Nas arcadas estendiam-se esplanadas, serviam chocolate
quente e pão com geleia. Era a hora de ligarem os aquecedores. O violinista
recolheu a sua jorna, agradeceu com uma vénia e colocou o instrumento na
mochila. Talvez voltasse no dia seguinte. Regressámos ao hotel pelas
ruas estreitas e já com os candeeiros acesos derramando uma luz quente na pedra
gasta dos edifícios, outrora, moradas de mercadores e contrabandistas. Hoje são
pensões, lojas comerciais para turistas. Ouve-se o fechar das portas, o descer
das grades de segurança, a cidade velha prepara-se para dormir.
No lado oposto,
junto ao rio, os restaurantes estão apinhados de gente para jantar. É a polis
gastronómica, uma variedade de países oferecem as suas tradições. A poucas
horas da passagem do ano, aproximamo-nos do MED, um restaurante onde a sua
especialidade é sopa de cação. MED é a abreviatura de Mediterrânio. É muito
procurado por portugueses, espanhóis, italianos, argentinos e cubanos. A sua
história cruza-se com os Descobrimentos. O seu proprietário é indiano, diz que
é descendente de portugueses. Fala um português arranhado e faz questão de
exibir Os Lusíadas e recitar alguns Cantos. É um deslumbramento. A
acrescentar a esta luxúria cultural, oferece vinho português como aperitivo. Entre
tantas surpresas, o que mais nos surpreendeu foi, no primeiro andar, haver uma
varanda cheia de roupa, um estendal ao vento. À medida que a fila crescia para
o MED, ouvia-se um violino no seu interior. Por instantes, pensámos nos acordes
que ouvimos na praça. Talvez fosse o mesmo virtuoso, crescia-nos a esperança de
conhecê-lo. Junto ao rio há imensos lugares de diversão, chamam-lhe o rio sem
sono.
Mas é de madrugada que os pescadores dão outra vida aos cais, as embarcações
regressam para vender o peixe, ainda muitos perpetuam a diversão da noite. Ao
romper da manhã ouvem-se os sinos das igrejas, quase em uníssono, a chamarem os
fiéis para as primeiras missas. Pelas ruelas encaminham-se muitas mulheres
idosas, em passo lento, levando um terço na mão. A maioria veste de negro e
leva o rosto quase tapado. As muitas vidas da cidade velha cruzam-se na praça e
junto ao rio. O bulício no cais não faz esquecer as crianças que se abeiram das
mesas dos restaurantes de mão estendida. Os empregados são lestos a
expulsá-las. A lei é de encobrimento e de vergonha. O ritual da passagem de
ano, por estas bandas, faz-se, também, com champanhe. Mas, aprendemos que muita
roupa na varanda significa purificação e novos aromas para receber o novo ano. Nada
como mudar as roupas ou içá-las ao vento para receber o que é novo de um tempo
velho.
António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
Última lição da Professora Nair de Nazaré Soares.
A última lição é, assim, uma
maneira eclética de dizer que um Professor se jubilou, ou seja, que pela força
da lei chegou a hora de passar o testemunho aos mais novos. Na verdade, um
Professor nunca diz adeus, os seus discípulos lembrá-lo-ão durante muito tempo,
perpetuando os seus ensinamentos com a transmissão do conhecimento. Mas
confesso que a última lição da Professora Nair de Nazaré Castro Soares foi
muito mais do que isso, foi um mar de saber que encheu o anfiteatro IV da
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, o mesmo onde há trinta anos se
apresentou publicamente. Como referiu: “Fechei o ciclo aqui”. O que é que esta
última lição teve de extraordinário? Senti que a Polis estava ali, que os seus
discípulos – e eram muitos - quiseram honrar a sua professora naquele palco
onde tantas vezes receberam a luz. Não se tratou apenas de beleza, mas da razão
maior das coisas, da essência que nos agiganta.
Ao longo de uma hora, de pé,
atravessou a história da humanidade, cruzou o Mediterrâneo, o mar Vermelho, o
Adriático, o Mar Negro, o Índico; levou-nos a Atenas, a Creta, a Ítaca, a Roma
e a Jerusalém. Falou-nos daqueles que não nos deixam morrer nas trevas, fez-nos
sentir parte de uma humanidade onde o humanismo nos devolve a dignidade de
sermos mortais. Durante a sua lição compreendi melhor a importância do Centro
de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, onde
passaram os Doutores Américo Ramalho, Walter Medeiros, Manuel Pulquério, Maria
Helena da Rocha Pereira…
A última lição foi uma ágora privilegiada, a ela convergiram
os seus pares, alunos, amigos, admiradores e debutantes. Foi, acima de tudo, um
momento de homenagem, de preito a quem dedicou o melhor da sua vida, neste
caso, à Universidade. Foi um momento de emoções fortes, de reencontros e recordações.
Agora aproxima-se a hora de arrumar o passado, de mudar as rotinas, de acertar
o passo, de fazer o que falta. O desapego é um processo doloroso, por isso,
vamos continuar a ver, felizmente, a Professora Nair de Nazaré Soares, com um
seu sorriso de bondade, onde sempre a procurámos.
Roland Barthes (1915 – 1980)
lembrava na sua lição inaugural da cadeira de Semiologia Literária do Colégio
de França, em 1977, que estava a entrar numa vita nuova e que tinha de
se “deixar levar pela força de toda a vida viva: o esquecimento”. Por outras
palavras, talvez fosse mais fácil recomeçar quando chega a hora de desaprender,
“de deixar germinar a mudança imprevisível que o esquecimento impõe à
sedimentação dos saberes, das culturas, das crenças que atravessámos”. É nesse
lugar, onde o relógio consome a urgência da existência, que fica a “Sapiência:
nenhum poder, um pouco de saber, um pouco de sabedoria e o máximo de sabor
possível”.
A última lição da Professora
Nair trouxe-me à memória o ensaio “A
Ordem do Discurso” de Michel Foucault: “Mas o que há afinal de tão perigoso
no facto de as pessoas falarem e de os seus discursos proliferarem
indefinidamente?” A resposta é complexa e exige mergulhar num caldo de
possibilidades, conforme o contexto, onde cada escolha pressupõe outras tantas
exclusões. Mas a eloquência da Professora Nair é real, porque no seu scriptorium sobreviveram os ensinamentos
dos textos clássicos e porque nunca foi uma professora que “por cegueira
estética e ciúme inconsciente” esmagasse os seus alunos.
Um mestre é aquele que
estimula e envolve, que nos faz sentir a tomar café com Aristóteles ou Erasmo,
que nos faz entrar na poética do homem, a poiêsis,
e declamar o verso de Keats: “A verdade é a beleza e a beleza é a verdade”.
Apesar da última lição permanecem os verbos do futuro, da esperança, que só a
poesia é capaz de oferecer. Esta é uma crónica de elogio à professora e à mulher
Nair de Nazaré Castro Soares, à sua resiliência e coragem. Mulher de lágrima
fácil e de coração gigante com um pé em Jerusalém e outro em Atenas. A última
lição constituiu um canto na sua voz, um abraço de emoção de que todos somos
devedores. Neste fragmento de Píndaro: “Aquele que, na sua profundidade do mar
sem ondulação, das flautas/Se viu amorosamente comovido pelo canto”, estão
todas as emoções que senti na sua última lição.
António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
Natália
Correia, 25 anos depois da sua morte.
Natália
é imensa, enche o imaginário de todos os que alimentam a esperança de
conhecerem melhor a mulher de “Somos Todos Hispanos” (1988). Apesar de muito se
ter escrito e dito sobre a poeta que nasceu em 1923, na Fajã de Baixo, em Ponta
Delgada, há uma imperecível curiosidade pela mulher deslumbrada com o futuro,
mas que não foi compreendida no seu tempo. E esse tempo foi há 25 anos. Quando
passa um quarto de século sobre a sua morte, a Câmara Municipal de Ponta
Delgada juntou num colóquio alguns estudiosos (Fernando Dacosta, Fernando Pinto
do Amaral, José Manuel Anes, Ângela Almeida, Armando Nascimento Rosa, Leonor
Sampaio Silva, António Vilhena, Luís Filipe Sarmento, Vamberto Freitas) que trouxeram
mais luz à face visionária de Natália Correia. E se esse colóquio foi
importante, ele serviu, também para lançar o 1º Centenário do seu nascimento em
2023. Foi esse o compromisso do presidente da Câmara de Ponta Delgada, José
Bolieiro. Ficámos a saber que será constituída uma comissão que dará expressão
nacional a essa evocação.
Natália
era universalista, no sentido em que Thomas Mann era alemão: “Onde estou, está
a cultura alemã” – quando chegou aos EUA em 1938; e na mesma linha de George
Steiner quando diz que “Onde estou, está a cultura europeia”. Natália reforça a
sua convicção: “Toda a nossa relação cultural com o Mundo é perspetivada no
universalismo atlantista”
O
Atlântico é, assim, a janela que abriu caminho aos descobrimentos - no seu entender
o começo da Idade Moderna dos povos ibéricos -, o horizonte que desnuda a bruma
com vocação épica e trágica. O lugar de Portugal não foi ser menos terra, mas
antes mais longe, através da maritimidade - expressão sua -, onde foi possível
o que se “agiganta n`Os Lusíadas sem, contudo, silenciar as tonificações do
Mediterrâneo e da interioridade”(STH, p. 10). Para a escritora “interioridade”
é sinónima de lágrimas, de sofrimento de dor, cristalizada na figura do Velho
do Restelo. Para si, a voz da maritimidade encontra o seu mais sonoro eco na
“Peregrinação” de Fernão Mendes Pinto.
É
sempre com olhar crítico que Natália Correia desoculta a lâmina para afirmar o
húmus cultural de Portugal. Com Miguel Torga, com profundas afinidades
políticas na defesa do iberismo, tece o manifesto da defesa de uma visão que
una o Mediterrânico e o Atlântico. Natália
não era nacionalista, era patriótica. O nacionalismo apouca a universalidade
que há em nós, o patriotismo é o diálogo maritimista, a “inserção do mar
português numa visão metafísica e profética” lembrando que a Ode Marítima, do
heterónimo Álvaro de Campos, não pode ser lida fora do conjunto da obra do
Pessoa, numa claríssima comparação com o que considera alienar “a mística
nacionalista dos Descobrimentos”, “atrofiando as proporções da mediterraneidade
e da continentalidade, nas quais se afundam as raízes da nossa identidade
original” (STH, pag. 12). O seu olhar universalista leva-a a reconhecer que a
nossa relação cultural com o Mundo é perspetivada no universalismo atlantista,
ou seja, “daqui eu vejo o Mundo que habita dentro de mim”.
Mas
a sua visão ibérica, a sua hispanidade, perseguia-lhe os passos rumo a uma
comunidade ibero-afro-americana ecuménica, atlantista e pluricontinental. Esta
comunidade centrada nas línguas portuguesa e espanhola, de 700 milhões de
falantes, serviria para exorcizar os medos de Portugal e Espanha valorizando o
muito que nos une para fazermos frente a uma União Europeia onde a
solidariedade cultural é frágil. O
seu pensamento visionário faz jus à mulher que recusou a anorexia cultural e se
revia em Shelley quando este afirmava que “Somos todos gregos”.
António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
Natália
Correia, 25 anos depois da sua morte.
Natália
é imensa, enche o imaginário de todos os que alimentam a esperança de
conhecerem melhor a mulher de “Somos Todos Hispanos” (1988). Apesar de muito se
ter escrito e dito sobre a poeta que nasceu em 1923, na Fajã de Baixo, em Ponta
Delgada, há uma imperecível curiosidade pela mulher deslumbrada com o futuro,
mas que não foi compreendida no seu tempo. E esse tempo foi há 25 anos. Quando
passa um quarto de século sobre a sua morte, a Câmara Municipal de Ponta
Delgada juntou num colóquio alguns estudiosos (Fernando Dacosta, Fernando Pinto
do Amaral, José Manuel Anes, Ângela Almeida, Armando Nascimento Rosa, Leonor
Sampaio Silva, António Vilhena, Luís Filipe Sarmento, Vamberto Freitas) que trouxeram
mais luz à face visionária de Natália Correia. E se esse colóquio foi
importante, ele serviu, também para lançar o 1º Centenário do seu nascimento em
2023. Foi esse o compromisso do presidente da Câmara de Ponta Delgada, José
Bolieiro. Ficámos a saber que será constituída uma comissão que dará expressão
nacional a essa evocação.
Natália
era universalista, no sentido em que Thomas Mann era alemão: “Onde estou, está
a cultura alemã” – quando chegou aos EUA em 1938; e na mesma linha de George
Steiner quando diz que “Onde estou, está a cultura europeia”. Natália reforça a
sua convicção: “Toda a nossa relação cultural com o Mundo é perspetivada no
universalismo atlantista”
O
Atlântico é, assim, a janela que abriu caminho aos descobrimentos - no seu entender
o começo da Idade Moderna dos povos ibéricos -, o horizonte que desnuda a bruma
com vocação épica e trágica. O lugar de Portugal não foi ser menos terra, mas
antes mais longe, através da maritimidade - expressão sua -, onde foi possível
o que se “agiganta n`Os Lusíadas sem, contudo, silenciar as tonificações do
Mediterrâneo e da interioridade”(STH, p. 10). Para a escritora “interioridade”
é sinónima de lágrimas, de sofrimento de dor, cristalizada na figura do Velho
do Restelo. Para si, a voz da maritimidade encontra o seu mais sonoro eco na
“Peregrinação” de Fernão Mendes Pinto.
É
sempre com olhar crítico que Natália Correia desoculta a lâmina para afirmar o
húmus cultural de Portugal. Com Miguel Torga, com profundas afinidades
políticas na defesa do iberismo, tece o manifesto da defesa de uma visão que
una o Mediterrânico e o Atlântico. Natália
não era nacionalista, era patriótica. O nacionalismo apouca a universalidade
que há em nós, o patriotismo é o diálogo maritimista, a “inserção do mar
português numa visão metafísica e profética” lembrando que a Ode Marítima, do
heterónimo Álvaro de Campos, não pode ser lida fora do conjunto da obra do
Pessoa, numa claríssima comparação com o que considera alienar “a mística
nacionalista dos Descobrimentos”, “atrofiando as proporções da mediterraneidade
e da continentalidade, nas quais se afundam as raízes da nossa identidade
original” (STH, pag. 12). O seu olhar universalista leva-a a reconhecer que a
nossa relação cultural com o Mundo é perspetivada no universalismo atlantista,
ou seja, “daqui eu vejo o Mundo que habita dentro de mim”.
Mas
a sua visão ibérica, a sua hispanidade, perseguia-lhe os passos rumo a uma
comunidade ibero-afro-americana ecuménica, atlantista e pluricontinental. Esta
comunidade centrada nas línguas portuguesa e espanhola, de 700 milhões de
falantes, serviria para exorcizar os medos de Portugal e Espanha valorizando o
muito que nos une para fazermos frente a uma União Europeia onde a
solidariedade cultural é frágil. O
seu pensamento visionário faz jus à mulher que recusou a anorexia cultural e se
revia em Shelley quando este afirmava que “Somos todos gregos”.
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
A Biblioteca “Guggenheim”
“Será
inaugurada, em Coimbra, a maior biblioteca de Portugal. É uma obra de
arquitetura moderna, desenhada pelo arquiteto Siza Vieira para o antigo espaço
da Penitenciária, que homenageia a cidade do Conhecimento e recoloca Coimbra no
roteiro das maiores e mais belas bibliotecas modernas, a par da Biblioteca
Pública de Sttutgard, projetada pelo arquiteto coreano Eun Young Yi, da Biblioteca
Pública de Tianjin (Tianjin, China) inaugurada em 2017, o projeto é do holandês
MVRDV em parceria com os arquitetos chineses do TUPD – esta biblioteca tem no
centro um olho gigante, uma bela metáfora, da Biblioteca Real Dinamarquesa no
canal Christianshavn, junto ao porto de Copenhague, da Biblioteca Nacional da
Coreia do Sul, na cidade de Sejong, em 2013, uma obra do Gabinete Samoo
Architects & Engineers ou, ainda, a nova Biblioteca de Alexandria que
homenageia Rá, o deus do Sol, foi erguida para recuperar o “espírito de
abertura e erudição”. Coimbra junta-se às cidades das bibliotecas fantásticas”.
Esta é a notícia do futuro, a notícia que qualquer jornalista gostará de
escrever quando Coimbra celebrar o passado através da Biblioteca Joanina e for
ousada para celebrar a modernidade. Quando em 1938, Orson Welles transmitiu 'A
Guerra dos Mundos', de H.G. Wells, muitos acreditaram, mas esse era outro
tempo. Gostaria que acreditassem na notícia da biblioteca do futuro, porque
“Deus quer, o homem sonha e a obra nasce”. As bibliotecas foram sempre o
espelho do melhor do seu tempo, preservando a memória que se abre ao delta da
modernidade, atravessando o tempo que há-de vir. Em Coimbra é fácil evocar o
passado, é uma cidade cheia de história: o Colégio de Santo Agostinho ou da Sapiência,
o Colégio de Nossa Senhora da Graça, o Museu de História Natural da
Universidade, a Capela de São Miguel da Universidade, o Colégio de São
Jerónimo, o Mosteiro de Santo António dos Olivais, o Colégio do Carmo, a Igreja
de São Bartolomeu, a Igreja de São Tiago, o Mosteiro de Santa Maria de Celas, a
Capela de Nossa Senhora da Esperança, o Colégio de São Pedro dos Terceiros, a
Sé Nova ou Igreja do Colégio da Companhia de Jesus, a Sé Velha…
Não nos falta
passado para celebrarmos o melhor da nossa história. Mas há uma ladainha, que
às vezes parece um pregão, onde se anuncia a desgraça e o fim do mundo. Os
otimistas da crítica fácil são os consulentes da imaginação perdulária,
enfeitam-se no carnaval com adereços de natal. Trocam o nome das ruas, esquecem-se
que a rua que sobe é a mesma que desce. “Ninguém se constrói a partir da
negação”- escreveu o psicólogo francês Gérard Poussin. O mesmo acontece com as
cidades. Elas são o que soubermos sonhar para perpetuarmos o passado na mais
insignificante pedra. A nova biblioteca de Alexandria tem cerca de 6.400
painéis de granito com todos os alfabetos conhecidos do planeta, é um ícone do
século XXI.
Independentemente de outros investimentos, advogo a construção de
uma biblioteca, que fosse o nosso “Guggenheim”, que conjugasse o mundo digital
e preservasse o cheiro do papel dos livros. As cidades sempre se afirmaram pelo
saber e pela Arte: Atenas e Alexandria são os exemplos clássicos. Neste tempo
em que assistimos ao pior dos obscurantismos, a fogueira de livros, urge
afirmar a Arte e o Humanismo sob o céu de uma biblioteca. Classificada pela
UNESCO como Património Mundial, Coimbra precisa de esculpir um compromisso com a
inovação. Agora que se inicia a caminhada para que em 2027, daqui a nove anos,
Coimbra seja Capital Europeia da Cultura, talvez a proposta de uma nova
biblioteca possa desviar as águas do Nilo ou do Danúbio e perpetuar o que não
morre para além de um efémero reconhecimento.
O que fica depois da festa?
Depois da Expo`98 ficou uma cidade nova, depois de 2027 pode ficar uma
biblioteca e muito mais. Nos tempos ditos modernos importa lembrar, sempre, a
frase de Almada Negreiros: ser moderno é o que de mais antigo permanece dentro
de nós. E os livros são a luz que Heródoto viu em Fidípides, esse soldado
ateniense que em 490 a.C. foi a Esparta pedir ajuda contra os Persas na batalha
de Maratona. É preciso correr como Fidípides, desviar as pedras do caminho como
Carlos Drummond de Andrade, vencer em Maratona e Salamina para mantermos a nossa
cultura, a nossa identidade e a liberdade de pensamento. Não se trata apenas de
mais uma biblioteca, ela simbolizará o passado e o futuro, homenageará as
Culturas, a Arte, a História e as civilizações. Gostava que os futuros turistas
visitassem a cidade pela Biblioteca Joanina mas, também, pela nova Biblioteca.
Hoje conhecemos a cidade de Tianjin, na China, porque construiu a sua Biblioteca
Pública, transformou-a num ícone mundial de cultura. A notícia que qualquer
jornalista gostaria de escrever não é uma utopia, basta que ousemos.
António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
A Biblioteca “Guggenheim”
“Será
inaugurada, em Coimbra, a maior biblioteca de Portugal. É uma obra de
arquitetura moderna, desenhada pelo arquiteto Siza Vieira para o antigo espaço
da Penitenciária, que homenageia a cidade do Conhecimento e recoloca Coimbra no
roteiro das maiores e mais belas bibliotecas modernas, a par da Biblioteca
Pública de Sttutgard, projetada pelo arquiteto coreano Eun Young Yi, da Biblioteca
Pública de Tianjin (Tianjin, China) inaugurada em 2017, o projeto é do holandês
MVRDV em parceria com os arquitetos chineses do TUPD – esta biblioteca tem no
centro um olho gigante, uma bela metáfora, da Biblioteca Real Dinamarquesa no
canal Christianshavn, junto ao porto de Copenhague, da Biblioteca Nacional da
Coreia do Sul, na cidade de Sejong, em 2013, uma obra do Gabinete Samoo
Architects & Engineers ou, ainda, a nova Biblioteca de Alexandria que
homenageia Rá, o deus do Sol, foi erguida para recuperar o “espírito de
abertura e erudição”. Coimbra junta-se às cidades das bibliotecas fantásticas”.
Esta é a notícia do futuro, a notícia que qualquer jornalista gostará de
escrever quando Coimbra celebrar o passado através da Biblioteca Joanina e for
ousada para celebrar a modernidade. Quando em 1938, Orson Welles transmitiu 'A
Guerra dos Mundos', de H.G. Wells, muitos acreditaram, mas esse era outro
tempo. Gostaria que acreditassem na notícia da biblioteca do futuro, porque
“Deus quer, o homem sonha e a obra nasce”. As bibliotecas foram sempre o
espelho do melhor do seu tempo, preservando a memória que se abre ao delta da
modernidade, atravessando o tempo que há-de vir. Em Coimbra é fácil evocar o
passado, é uma cidade cheia de história: o Colégio de Santo Agostinho ou da Sapiência,
o Colégio de Nossa Senhora da Graça, o Museu de História Natural da
Universidade, a Capela de São Miguel da Universidade, o Colégio de São
Jerónimo, o Mosteiro de Santo António dos Olivais, o Colégio do Carmo, a Igreja
de São Bartolomeu, a Igreja de São Tiago, o Mosteiro de Santa Maria de Celas, a
Capela de Nossa Senhora da Esperança, o Colégio de São Pedro dos Terceiros, a
Sé Nova ou Igreja do Colégio da Companhia de Jesus, a Sé Velha…
Não nos falta
passado para celebrarmos o melhor da nossa história. Mas há uma ladainha, que
às vezes parece um pregão, onde se anuncia a desgraça e o fim do mundo. Os
otimistas da crítica fácil são os consulentes da imaginação perdulária,
enfeitam-se no carnaval com adereços de natal. Trocam o nome das ruas, esquecem-se
que a rua que sobe é a mesma que desce. “Ninguém se constrói a partir da
negação”- escreveu o psicólogo francês Gérard Poussin. O mesmo acontece com as
cidades. Elas são o que soubermos sonhar para perpetuarmos o passado na mais
insignificante pedra. A nova biblioteca de Alexandria tem cerca de 6.400
painéis de granito com todos os alfabetos conhecidos do planeta, é um ícone do
século XXI.
Independentemente de outros investimentos, advogo a construção de
uma biblioteca, que fosse o nosso “Guggenheim”, que conjugasse o mundo digital
e preservasse o cheiro do papel dos livros. As cidades sempre se afirmaram pelo
saber e pela Arte: Atenas e Alexandria são os exemplos clássicos. Neste tempo
em que assistimos ao pior dos obscurantismos, a fogueira de livros, urge
afirmar a Arte e o Humanismo sob o céu de uma biblioteca. Classificada pela
UNESCO como Património Mundial, Coimbra precisa de esculpir um compromisso com a
inovação. Agora que se inicia a caminhada para que em 2027, daqui a nove anos,
Coimbra seja Capital Europeia da Cultura, talvez a proposta de uma nova
biblioteca possa desviar as águas do Nilo ou do Danúbio e perpetuar o que não
morre para além de um efémero reconhecimento.
O que fica depois da festa?
Depois da Expo`98 ficou uma cidade nova, depois de 2027 pode ficar uma
biblioteca e muito mais. Nos tempos ditos modernos importa lembrar, sempre, a
frase de Almada Negreiros: ser moderno é o que de mais antigo permanece dentro
de nós. E os livros são a luz que Heródoto viu em Fidípides, esse soldado
ateniense que em 490 a.C. foi a Esparta pedir ajuda contra os Persas na batalha
de Maratona. É preciso correr como Fidípides, desviar as pedras do caminho como
Carlos Drummond de Andrade, vencer em Maratona e Salamina para mantermos a nossa
cultura, a nossa identidade e a liberdade de pensamento. Não se trata apenas de
mais uma biblioteca, ela simbolizará o passado e o futuro, homenageará as
Culturas, a Arte, a História e as civilizações. Gostava que os futuros turistas
visitassem a cidade pela Biblioteca Joanina mas, também, pela nova Biblioteca.
Hoje conhecemos a cidade de Tianjin, na China, porque construiu a sua Biblioteca
Pública, transformou-a num ícone mundial de cultura. A notícia que qualquer
jornalista gostaria de escrever não é uma utopia, basta que ousemos.
António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
Amoro-te
Podemos recriar a língua,
mas sabemos que isso é uma ousadia que tem custos. Logo a seguir vêm os
guardiões do templo chamar a atenção para o crime que é inventar palavras. Os
especialistas argumentarão que existem todas as palavras de que precisamos para
nos expressarmos, basta que saibamos e tenhamos arte e engenho. Mas há palavras
que não fazem parte do cânone, são uma rebeldia, uma tempestade emocional e,
por isso, vivem à margem dos congressos, dos corredores dos filólogos, das
sebentas bafientas; preferem os jardins, o mar, as avenidas, o escurinho das
salas de cinema…É aí, nesses lugares, que a melopeia se oferece à linguística
como uma sedução irrecusável. É nos escombros da paixão que os sons se combinam
para trazer o relâmpago aos lábios onde se murmura um “futuro que houve
dantes”.
Tudo o que sabemos é que a linguagem do amor é rebelde e não cabe onde
a liberdade não existe, ela é a “chuva de prata” e o luar espelhado, a paisagem
que sobe a encosta e abre os olhos sobre o horizonte na garupa do vento. Onde
se desenharem pássaros e viagens abrem-se as galáxias e o pensamento, o
deslumbramento das coisas intemporais que habitam as verdades dos pequenos
mundos, esses lugares onde o amor se basta a si próprio. Quando escrevo sobre o
amor reencontro-me sempre com a história de Sá Carneiro e de Snu Abecassis, a
princesa da Dinamarca, que a escritora Natália Correia patrocinou; ou, ainda, a
paixão torrencial do embaixador Luís Pinto Coelho pela americana Kit, que dizem
ter renunciado à Pátria, a Salazar e, também, à família.
Esta última história
está retratada no livro “O meu avô Luís”, da neta, a jornalista Sofia Pinto
Coelho, publicado em 2017. E se resgato esta história é porque não concordo que
ele tenha renunciado à família. Como ele escreveu em carta de 15 de Março de
1965 à sua mulher: “Minha querida Piinha, As nossas situações ou posições sua e
minha – são muito diferentes, como diferentes são os nossos feitios e as nossas
sensibilidades (pg.105)”. Apesar da ruptura, ele continua a tratá-la pelo diminutivo,
Piinha, antecedido de “querida”, numa clara manifestação de ternura. Da leitura
da correspondência não se pode inferir que Pinto Coelho tenha trocado a família
por Kit. Havia sim uma resistência absoluta a Kit que não lhe deixava
alternativa: ou Kit ou Piinha. Isso é muito diferente de ter renunciado à
família. De um lado estarão aqueles que acham que se deixou levar por uma
modelo com “dois metros” de pernas; para outros será sempre um traidor aos
valores morais, religiosos, sociais e políticos do antigo regime. Regresso às
suas palavras: “Na verdade, o problema é de sentir”. No divórcio com Piinha
havia uma cláusula que o impedia de viver em Portugal com a Kit e, por isso,
foi viver para o Rio de Janeiro.
O que esta história tem de surpreendente não é
o óbvio; de um lado esteve a família que sofreu imenso, a todos os níveis, de
uma maneira irreparável, e, do outro, os falsos moralistas, os hipócritas, os
conformados e os oportunistas. O que é notável nesta paixão foi “o sentir” de
Pinto Coelho e de Kit. Quando o fascismo caiu em 1974, Pinto Coelho não podia
regressar a Portugal, já tinha 63 anos, e estava sem trabalho. Era velho para
quase tudo, menos para o amor. Em 1975, a Kit tinha ido passar o Natal a
Madrid, e, com 63 anos, Pinto Coelho continuava a misturar a linguagem do amor
com a do velho diplomata: “Para ti, little baby, um monte de beijos com a maior
ternura”. A cumplicidade de ambos é proporcional à esperança com que enfrentam
a vida e o futuro. Kit perante a situação preocupante de se verem sem casa e
sem trabalho no Rio de Janeiro, diz: “Até é divertido meter estacas e começar
tudo de novo (pg.205). Só o amor dispensa as mordomias e basta-se a si próprio
e, também, reinventa a linguagem: AMORO-TE.
Amoro-te
Podemos recriar a língua,
mas sabemos que isso é uma ousadia que tem custos. Logo a seguir vêm os
guardiões do templo chamar a atenção para o crime que é inventar palavras. Os
especialistas argumentarão que existem todas as palavras de que precisamos para
nos expressarmos, basta que saibamos e tenhamos arte e engenho. Mas há palavras
que não fazem parte do cânone, são uma rebeldia, uma tempestade emocional e,
por isso, vivem à margem dos congressos, dos corredores dos filólogos, das
sebentas bafientas; preferem os jardins, o mar, as avenidas, o escurinho das
salas de cinema…É aí, nesses lugares, que a melopeia se oferece à linguística
como uma sedução irrecusável. É nos escombros da paixão que os sons se combinam
para trazer o relâmpago aos lábios onde se murmura um “futuro que houve
dantes”.
Tudo o que sabemos é que a linguagem do amor é rebelde e não cabe onde
a liberdade não existe, ela é a “chuva de prata” e o luar espelhado, a paisagem
que sobe a encosta e abre os olhos sobre o horizonte na garupa do vento. Onde
se desenharem pássaros e viagens abrem-se as galáxias e o pensamento, o
deslumbramento das coisas intemporais que habitam as verdades dos pequenos
mundos, esses lugares onde o amor se basta a si próprio. Quando escrevo sobre o
amor reencontro-me sempre com a história de Sá Carneiro e de Snu Abecassis, a
princesa da Dinamarca, que a escritora Natália Correia patrocinou; ou, ainda, a
paixão torrencial do embaixador Luís Pinto Coelho pela americana Kit, que dizem
ter renunciado à Pátria, a Salazar e, também, à família.
Esta última história
está retratada no livro “O meu avô Luís”, da neta, a jornalista Sofia Pinto
Coelho, publicado em 2017. E se resgato esta história é porque não concordo que
ele tenha renunciado à família. Como ele escreveu em carta de 15 de Março de
1965 à sua mulher: “Minha querida Piinha, As nossas situações ou posições sua e
minha – são muito diferentes, como diferentes são os nossos feitios e as nossas
sensibilidades (pg.105)”. Apesar da ruptura, ele continua a tratá-la pelo diminutivo,
Piinha, antecedido de “querida”, numa clara manifestação de ternura. Da leitura
da correspondência não se pode inferir que Pinto Coelho tenha trocado a família
por Kit. Havia sim uma resistência absoluta a Kit que não lhe deixava
alternativa: ou Kit ou Piinha. Isso é muito diferente de ter renunciado à
família. De um lado estarão aqueles que acham que se deixou levar por uma
modelo com “dois metros” de pernas; para outros será sempre um traidor aos
valores morais, religiosos, sociais e políticos do antigo regime. Regresso às
suas palavras: “Na verdade, o problema é de sentir”. No divórcio com Piinha
havia uma cláusula que o impedia de viver em Portugal com a Kit e, por isso,
foi viver para o Rio de Janeiro.
O que esta história tem de surpreendente não é
o óbvio; de um lado esteve a família que sofreu imenso, a todos os níveis, de
uma maneira irreparável, e, do outro, os falsos moralistas, os hipócritas, os
conformados e os oportunistas. O que é notável nesta paixão foi “o sentir” de
Pinto Coelho e de Kit. Quando o fascismo caiu em 1974, Pinto Coelho não podia
regressar a Portugal, já tinha 63 anos, e estava sem trabalho. Era velho para
quase tudo, menos para o amor. Em 1975, a Kit tinha ido passar o Natal a
Madrid, e, com 63 anos, Pinto Coelho continuava a misturar a linguagem do amor
com a do velho diplomata: “Para ti, little baby, um monte de beijos com a maior
ternura”. A cumplicidade de ambos é proporcional à esperança com que enfrentam
a vida e o futuro. Kit perante a situação preocupante de se verem sem casa e
sem trabalho no Rio de Janeiro, diz: “Até é divertido meter estacas e começar
tudo de novo (pg.205). Só o amor dispensa as mordomias e basta-se a si próprio
e, também, reinventa a linguagem: AMORO-TE.
António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
Princesa,
minha querida.
Li
recentemente num jornal de referência a opinião de Gabriela Moita, onde
afirmava que a “noção de princesa contém nela o poder de ser vítima de abuso
sem consentimento”. Aparentemente o seu constructo teórico é mais um exercício
que parece inabalável, robustecido pelo curriculum académico. Não é isso que me
tira o sono. Se pensarmos que ainda recentemente um ilustríssimo professor veio
dizer que beijar os avós pode potenciar coisas estranhas porque “estamos a
educar para a violência no corpo do outro”, sou obrigado a pensar que nada
disto surge por acaso. A primeira constatação é que há uma agenda que
privilegia os que aproveitam o estatuto académico para capitalizarem o
proselitismo dos que radicalizam as diferenças, elevando à condição de ideal
tudo o que se diz em defesa das minorias.
E não está em causa defender os mais
frágeis, os que não têm voz, os mais desprotegidos – sempre fiz isso ao longo
da vida com riscos pessoais que não preciso de exibir. Dispenso, por isso,
lições daqueles que descobriram recentemente o #METOO para surfarem algumas
causas. Eu bem sei que há gente bem-intencionada em todos os movimentos, mas
há, também, gente mascarada que se esconde atrás do roupeiro para ocultar a
pedra que traz nos sapatos e que nunca teve coragem de parar e retirá-la,
habituou-se à pedra e à dor transformando-a numa situação normal. Depois,
alguns veem no radicalismo uma oportunidade para se emproarem rasgando a
biblioteca de emoções - qual auto de fé! - para esquecerem as suas histórias de
vida. É fácil distorcer a realidade, atribuindo-lhe uma conotação capciosa sem
cuidar de separar as águas. E se digo “as águas” é, exactamente, porque parece
existir uma escalada de interesses que se ocultam sob as águas que,
inexoravelmente, hão-de chegar ao mar.
Se há uma luta pela igualdade, a que
alguns, hoje, chamam de género, esta é apenas a continuação de outras lutas que
atravessaram a História: o fim da escravatura, o direito à greve, os cinco dias
de trabalho semanais, o direito a férias, o direito à saúde, à justiça ou ao
ensino. Esquartejar a língua para esconjurar os fantasmas parece a nova cruzada
dos puristas. Amputar palavras segregando-lhes os conceitos, arredondando a
pedra para esconder o sol na mais fina presunção parece ser o vapor da colheita
que se respira nos iluminados da vaga conceptual. Assim, vai a redoma: as
princesas adormecidas devem continuar o seu sono profundo, a não ser que peçam
para acordar e o príncipe esteja por perto e lhes conceda, sem segundas
intenções, um beijo tipo despertador. E os avós devem ter mais cuidado quando
forem levar os netos à escola, não devem beijar os netinhos em plena rua,
porque isso, talvez, seja interpretado como uma “violência sobre o corpo” ou,
ainda, como uma ostensiva invasão da liberdade do vento.
Enfim, aos mais
ressabiados, que ganham a vida a perorar sobre estas lucubrações pós-modernas,
aguarda-os uma princesa ou um príncipe, consoante o gosto, quando a vida vos
gastar a demagogia e o populismo. Eu que nasci no Alentejo, eu bem sei que
alguns vão dizer que é uma terra atrasada, mas lá as vizinhas cuidavam dos
filhos de todos, dos seus e das vizinhas, éramos abraçados, beijados,
sentavam-nos no colo, contavam-nos histórias de princesas e isso nunca me
inibiu de nada. Sejamos honestos, há modas mal paridas, não sei se esta de
encontrar todos os males na nossa cultura, sim, a nossa cultura, terá futuro.
Mas sei que não tem passado e o presente é um arroto de cozido sem temperos.
Gabriela Moita, a metáfora da princesa é isso mesmo, alguém que espera, não sei
se é o seu caso, por um príncipe que, com muito jeitinho e delicadeza, recita o
poema de Daniel Filipe, “A invenção do amor” de que lhe deixo aqui uma
passagem: “Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração e/fome de ternura/e
souberam entender-se sem palavras inúteis/Apenas o silêncio A descoberta A
estranheza/de um sorriso natural e inesperado”.
Princesa, minha querida.
Li
recentemente num jornal de referência a opinião de Gabriela Moita, onde
afirmava que a “noção de princesa contém nela o poder de ser vítima de abuso
sem consentimento”. Aparentemente o seu constructo teórico é mais um exercício
que parece inabalável, robustecido pelo curriculum académico. Não é isso que me
tira o sono. Se pensarmos que ainda recentemente um ilustríssimo professor veio
dizer que beijar os avós pode potenciar coisas estranhas porque “estamos a
educar para a violência no corpo do outro”, sou obrigado a pensar que nada
disto surge por acaso. A primeira constatação é que há uma agenda que
privilegia os que aproveitam o estatuto académico para capitalizarem o
proselitismo dos que radicalizam as diferenças, elevando à condição de ideal
tudo o que se diz em defesa das minorias.
E não está em causa defender os mais
frágeis, os que não têm voz, os mais desprotegidos – sempre fiz isso ao longo
da vida com riscos pessoais que não preciso de exibir. Dispenso, por isso,
lições daqueles que descobriram recentemente o #METOO para surfarem algumas
causas. Eu bem sei que há gente bem-intencionada em todos os movimentos, mas
há, também, gente mascarada que se esconde atrás do roupeiro para ocultar a
pedra que traz nos sapatos e que nunca teve coragem de parar e retirá-la,
habituou-se à pedra e à dor transformando-a numa situação normal. Depois,
alguns veem no radicalismo uma oportunidade para se emproarem rasgando a
biblioteca de emoções - qual auto de fé! - para esquecerem as suas histórias de
vida. É fácil distorcer a realidade, atribuindo-lhe uma conotação capciosa sem
cuidar de separar as águas. E se digo “as águas” é, exactamente, porque parece
existir uma escalada de interesses que se ocultam sob as águas que,
inexoravelmente, hão-de chegar ao mar.
Se há uma luta pela igualdade, a que
alguns, hoje, chamam de género, esta é apenas a continuação de outras lutas que
atravessaram a História: o fim da escravatura, o direito à greve, os cinco dias
de trabalho semanais, o direito a férias, o direito à saúde, à justiça ou ao
ensino. Esquartejar a língua para esconjurar os fantasmas parece a nova cruzada
dos puristas. Amputar palavras segregando-lhes os conceitos, arredondando a
pedra para esconder o sol na mais fina presunção parece ser o vapor da colheita
que se respira nos iluminados da vaga conceptual. Assim, vai a redoma: as
princesas adormecidas devem continuar o seu sono profundo, a não ser que peçam
para acordar e o príncipe esteja por perto e lhes conceda, sem segundas
intenções, um beijo tipo despertador. E os avós devem ter mais cuidado quando
forem levar os netos à escola, não devem beijar os netinhos em plena rua,
porque isso, talvez, seja interpretado como uma “violência sobre o corpo” ou,
ainda, como uma ostensiva invasão da liberdade do vento.
Enfim, aos mais
ressabiados, que ganham a vida a perorar sobre estas lucubrações pós-modernas,
aguarda-os uma princesa ou um príncipe, consoante o gosto, quando a vida vos
gastar a demagogia e o populismo. Eu que nasci no Alentejo, eu bem sei que
alguns vão dizer que é uma terra atrasada, mas lá as vizinhas cuidavam dos
filhos de todos, dos seus e das vizinhas, éramos abraçados, beijados,
sentavam-nos no colo, contavam-nos histórias de princesas e isso nunca me
inibiu de nada. Sejamos honestos, há modas mal paridas, não sei se esta de
encontrar todos os males na nossa cultura, sim, a nossa cultura, terá futuro.
Mas sei que não tem passado e o presente é um arroto de cozido sem temperos.
Gabriela Moita, a metáfora da princesa é isso mesmo, alguém que espera, não sei
se é o seu caso, por um príncipe que, com muito jeitinho e delicadeza, recita o
poema de Daniel Filipe, “A invenção do amor” de que lhe deixo aqui uma
passagem: “Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração e/fome de ternura/e
souberam entender-se sem palavras inúteis/Apenas o silêncio A descoberta A
estranheza/de um sorriso natural e inesperado”.
António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
Os
bolsonaros do Brasil pequeno.
A
maioria dos brasileiros em Portugal votou em Bolsonaro. Confesso que não me
surpreende. Afinal de contas os que votaram no fascista com tiques de caudilho
talvez não tenham lido "Casa Grande e Senzala" de Gilberto Freire. E
digo, talvez, porque quem conhece a história do Brasil não pode ser masoquista.
E a maioria dos irmãos brasileiros, que vivem em Portugal, têm a obrigação de
conhecer as diferenças entre o que defende o fascista populista e o regime que
se vive em Portugal. É quase inaceitável que a suposta elite brasileira, que
estuda e trabalha em Portugal, tenha votado num homem do século XIX.
A História
pode não ensinar a fazer contas, a construir pontes, mas ensina, seguramente, a
evitar os erros do passado, a compreender as razões que atropelaram os direitos
sociais e, principalmente, a conhecermos a nossa própria identidade. A
ignorância é a pior das ousadias quando não vamos sozinhos, quando arrastamos
um povo para o precipício. O que se passa no Brasil deve-nos preocupar, é um
ensaio sobre a ignorância que usa as fragilidades e o medo dos que estão
desiludidos mas têm esperança. Desiludidos com as políticas e os políticos, e o
medo das sombras onde os fantasmas diabolizam um futuro de incertezas.
A
insegurança, o aumento do crime, o desinvestimento na educação e na cultura
parecem ser espelhos de uma realidade que se insinua sem solução num país que
tem tudo para ser uma potência. Mas a corrupção tomou conta das instituições e
a Igreja Evangélica infiltrou-se, em nome da fé, em todos os lugares para
lançar os seus tentáculos. Mas o Brasil é uma grande nação, tem gente
maravilhosa que todos os dias luta, tal como nós, pela justiça social, pela
educação dos seus filhos, por melhores condições de vida. O Brasil tem gente
que trabalha de sol a sol para sobreviver, que alimenta o sonho e acredita que
o futuro passa por não abandonar o seu país.
O que o Brasil precisa é de uma
classe política credível, de uma justiça cega que não esteja ao serviço de
interesses e que respeite a memória dos que com José Bonifácio ergueram o facho
da liberdade e da igualdade. Estas eleições brasileiras são um bom exemplo que
nos deve alertar: quando um povo está desiludido com a política e os políticos
podem surgir populistas que vendem sonhos e promessas. São estes que capitalizam
os ódios, os medos, as fragilidades e as crenças. O caldo que serve para um
caudilho arrastar as massas tem todos estes condimentos, com que se faz um
ditador: insinua com mais violência, mais polícia, mais descriminação, mais
segregação, mais exclusão e mais pobreza. Os que trocam a liberdade pela
segurança acabam por deixar aos outros o que só a liberdade de pensamento lhe
confere: a dignidade.
Bolsonaro é a síntese do que de mais inóspito habita a
condição humana, é um mapa de perversidades ideológicas cheias de preconceitos
e de racismo, representa um passado que parecia enterrado. O simples facto de
ele existir como candidato é um retrocesso civilizacional, representa um Brasil
dos coronéis, autocratas, prepotentes, senhores das terras e das pessoas.
Bolsonaro é o perfil do homem vazio de ideias, analfabeto, um candidato anti PT
primário, que bipolarizou o Brasil entre o amarelo e o vermelho. Os que
estiveram com o PT no passado quase desapareceram do mapa político, são, ainda,
a caixa-de-ressonância que se faz ouvir de um lulismo sem Lula ou de uma
ortodoxia revisionista que provou o caviar do Planalto. Mas o Brasil tem uma
longa história de ditadura (1964 -1985) que os brasileiros deviam estudar e
conhecer. Quem desconhece o passado está condenado a revivê-lo. Ainda há
esperança.
Os bolsonaros do Brasil pequeno.
A
maioria dos brasileiros em Portugal votou em Bolsonaro. Confesso que não me
surpreende. Afinal de contas os que votaram no fascista com tiques de caudilho
talvez não tenham lido "Casa Grande e Senzala" de Gilberto Freire. E
digo, talvez, porque quem conhece a história do Brasil não pode ser masoquista.
E a maioria dos irmãos brasileiros, que vivem em Portugal, têm a obrigação de
conhecer as diferenças entre o que defende o fascista populista e o regime que
se vive em Portugal. É quase inaceitável que a suposta elite brasileira, que
estuda e trabalha em Portugal, tenha votado num homem do século XIX.
A História
pode não ensinar a fazer contas, a construir pontes, mas ensina, seguramente, a
evitar os erros do passado, a compreender as razões que atropelaram os direitos
sociais e, principalmente, a conhecermos a nossa própria identidade. A
ignorância é a pior das ousadias quando não vamos sozinhos, quando arrastamos
um povo para o precipício. O que se passa no Brasil deve-nos preocupar, é um
ensaio sobre a ignorância que usa as fragilidades e o medo dos que estão
desiludidos mas têm esperança. Desiludidos com as políticas e os políticos, e o
medo das sombras onde os fantasmas diabolizam um futuro de incertezas.
A
insegurança, o aumento do crime, o desinvestimento na educação e na cultura
parecem ser espelhos de uma realidade que se insinua sem solução num país que
tem tudo para ser uma potência. Mas a corrupção tomou conta das instituições e
a Igreja Evangélica infiltrou-se, em nome da fé, em todos os lugares para
lançar os seus tentáculos. Mas o Brasil é uma grande nação, tem gente
maravilhosa que todos os dias luta, tal como nós, pela justiça social, pela
educação dos seus filhos, por melhores condições de vida. O Brasil tem gente
que trabalha de sol a sol para sobreviver, que alimenta o sonho e acredita que
o futuro passa por não abandonar o seu país.
O que o Brasil precisa é de uma
classe política credível, de uma justiça cega que não esteja ao serviço de
interesses e que respeite a memória dos que com José Bonifácio ergueram o facho
da liberdade e da igualdade. Estas eleições brasileiras são um bom exemplo que
nos deve alertar: quando um povo está desiludido com a política e os políticos
podem surgir populistas que vendem sonhos e promessas. São estes que capitalizam
os ódios, os medos, as fragilidades e as crenças. O caldo que serve para um
caudilho arrastar as massas tem todos estes condimentos, com que se faz um
ditador: insinua com mais violência, mais polícia, mais descriminação, mais
segregação, mais exclusão e mais pobreza. Os que trocam a liberdade pela
segurança acabam por deixar aos outros o que só a liberdade de pensamento lhe
confere: a dignidade.
Bolsonaro é a síntese do que de mais inóspito habita a
condição humana, é um mapa de perversidades ideológicas cheias de preconceitos
e de racismo, representa um passado que parecia enterrado. O simples facto de
ele existir como candidato é um retrocesso civilizacional, representa um Brasil
dos coronéis, autocratas, prepotentes, senhores das terras e das pessoas.
Bolsonaro é o perfil do homem vazio de ideias, analfabeto, um candidato anti PT
primário, que bipolarizou o Brasil entre o amarelo e o vermelho. Os que
estiveram com o PT no passado quase desapareceram do mapa político, são, ainda,
a caixa-de-ressonância que se faz ouvir de um lulismo sem Lula ou de uma
ortodoxia revisionista que provou o caviar do Planalto. Mas o Brasil tem uma
longa história de ditadura (1964 -1985) que os brasileiros deviam estudar e
conhecer. Quem desconhece o passado está condenado a revivê-lo. Ainda há
esperança.
António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
Rui Alarcão, um homem iluminado.
A morte é uma estranha criatura que chega, quase sempre, inesperadamente e não conhece ninguém. Tem esse secretismo que faz dela uma fada má e impiedosa. A Justiça devia ser como a morte, cega. Infelizmente, todos sabemos que a morte é mais democrática, trata todos por igual. Mas quando nos leva os amigos, os que foram companheiros de muitas “viagens”, ficamos a destilar fel e impropérios. Somos educados para a vida, não para a morte, por isso, nunca estamos preparados para receber a notícia da viagem perpétua. A morte do Professor Rui Alarcão representa mais do que a ausência física de um homem que admirava. Ele representava o que de melhor a Universidade de Coimbra conseguiu desde a sua fundação. É um exagero, dirão alguns. Basta pensar as razões porque se fala da Universidade de Coimbra hoje para encontrarmos as diferenças.
Se afirmo que o Magnífico Reitor Rui Alarcão foi o homem certo na Universidade de Coimbra e na urbe, é porque ele trouxe o diálogo, sentou na mesma mesa estudantes e funcionários, criou as bases da expansão do Polo 2, modernizou os Serviços Sociais, foi um embaixador de Coimbra no mundo. É pouco? Antes dele nada se assemelhou. E depois dele a luz morreu nas velhas ruas da Alta. Foi um homem solidário, estava sempre disponível para os amigos e para as causas, interpretou a função de reitor com elevação, foi um gestor de sensibilidades e um humanista de referência. Fez muito amigos, era de trato fácil, afável e, por isso, envolvente. Teria sido um excelente Presidente da República. Partilhei com ele, enquanto estudante, grandes momentos na academia. Apresentei no Senado da Universidade a proposta para retirar os carros do Pátio.
O que parecia uma proposta subversiva, ao arrepio da tradição, mas em linha com a defesa do património, o Professor Rui Alarcão subscreveu a ideia. Lembro que o principal opositor à proposta foi o Professor Orlando de Carvalho, director da Faculdade de Direito. A minha ousadia dividiu o Senado, mas o Professor Rui Alarcão ficou ao lado dos estudantes e dos poucos professores que defenderam a minha proposta. Nessa altura era Pró-Reitor o Professor Pinho Brojo que defendia uma transição moderada, ou seja, retirar os carros apenas do lajedo. A proposta foi aprovada no Senado e, hoje, o Pátio da Universidade está livre de automóveis. Este exemplo serve para lembrar que o Professor Rui Alarcão não temia as mudanças quando se afiguravam justas. Quando em 1987, ano do centenário da ACC, organizámos as conferências sobre Timor-Leste, ele foi um homem notável, abraçou a ideia e empenhou-se na sua concretização.
Ajudou a falar com todos os ex-ministros que tiveram essa pasta e as conferências realizaram-se juntando à mesa os dirigentes da FRETILIN, UDT e APODETE. Posso dizer que essas conferências ajudaram imenso na aproximação e diálogo entre as partes até ao dia da independência de Timor. Com o Professor Rui Alarcão sabíamos que quase tudo era possível. A sua inteligência e homem de consensos cultivaram a praxis da parceria positiva. Durante o seu reitorado a Universidade de Coimbra não se limitou a olhar para o umbigo, ligou-se às mais antigas universidades do mundo através do que se denominaria Grupo de Coimbra, hoje completamente morto.
Precisamos de tempo para fazermos a história, mas a história do tempo do Reitor Rui Alarcão confunde-se com a história de Portugal, enquanto exerceu funções na Universidade de Coimbra. Cada homem faz a sua história, o Professor Rui Alarcão soube interpretar o chamamento do dever, foi cosmopolita, conciliador, democrata e teve ambição. É justo lembrar o Professor Fernando Rebelo que lhe sucedeu, homem bom e leal, que o acompanhou em muitos momentos do seu reitorado. A morte é sempre um pano negro que escurece o sorriso dos que admiramos, mas importa lembrar que o Professor Rui Alarcão foi um nome incontornável na Universidade de Coimbra e no país. Quando morre um amigo, ficamos mais pobres. O Professor Rui Alarcão foi um homem iluminado que inspirou muitos astrónomos.
António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
As
palavras de domingo.
Há-de
chegar domingo, e nesse dia as palavras perdidas no parque renascerão nos
troncos das árvores, haverá uma brisa suave que junta as folhas e as memórias,
haverá, ainda, quem se lembre de escrever o nome de quem estava ao seu lado há
muitos anos. Quando me sento num banco do jardim, vejo, quase sempre, muitos
nomes gravados na madeira. Cada nome conta uma história, um encontro, são simples
palavras que parecem querer sair do silêncio. Leio algumas. Há uma que parece
estrangeira, não tem tradução para português, aparece esculpida com um ursinho.
É apenas um nome entre tantos, mas aquele ursinho fez-me esquecer todos os
outros. Talvez fosse o nome de uma criança. Muitos pais sentam-se naquele lugar
depois do passeio pelo parque. Entre dezenas de inscrições aquele deixou-me uma
nódoa no coração.
Estava esculpida com delicadeza. Ao domingo o parque enche-se
de forasteiros, muitos começaram a visitá-lo ainda bebés com as famílias,
cresceram e ensaiaram os primeiros namoros entre as árvores. Há uma sucessão de
encontros e de lugares que nunca envelhecem. A memória chega com a mudança da
luz, principalmente, ao final da tarde quando as sombras se juntam numa espécie
de coro para ensaiarem o apaziguamento. É como se o universo exigisse o
silêncio num só instante. Há mais poesia nesse lugar do que em muitos tratados.
A luz de domingo é diferente, não é só a que o sol empresta ou as árvores
filtram entre a folhagem, é a que a memória recorda quando as palavras de
domingo traziam a comunhão dos encontros. Cada passeio era uma peregrinação de
acasos, uma promessa que vivia até ao próximo domingo.
A esperança é isso
mesmo, a ausência que se promete reencontrar, um desejo que se desafia a si
próprio, a viagem que convida o aventureiro a conhecer novos destinos. O
passado que resiste dentro de nós é o futuro que se recusa a morrer. “Como uma
flor incerta entre o dedos/Há harmonia de um bailar sem fim/E tens o silêncio
indizível dum jardim/Invadido de luar e de segredos”. Ah! Como Sophia de Mello
Breyner Andersen diz tão bem o que outros não conseguem traduzir. Como as suas
palavras juntam o indizível e o eterno! Quando se procura a perfeição, são as
emoções que traçam os caminhos da descoberta, que sinalizam as cores e os sons,
que juntam as pedras em cada regresso para que os aromas sejam o jardim da
saudade. Há tanto perfume em certas palavras, são as corolas apaixonadas pela
vida que se abeiram do horizonte e insinuam as asas da liberdade; são as aves
incansáveis que traduzem os dias e as noites nos seus cantos.
As suas melodias
combinam Schubert e Chopin, são a nostalgia do encontro, a sonoridade da
floresta. Os fios de luz esmaecidos ao final da tarde são tranças na paisagem,
misturam o que vem da terra, há um compromisso de humildade que atravessa sem
pressa os sentidos. Naquele banco de madeira, com o nome estrangeiro
intraduzível, há um palco de sonhos. Daquele lugar vê-se um bosque encantado,
talvez o poeta Gueorgui Gospodinov gostasse de reencontrar ali “O coelho do
amor”, no bosque não há portas, por isso, escreveu: “Volto já, disse/e deixou a
porta aberta” - como uma metáfora do tempo. No próximo domingo voltarei a
sentar-me onde as palavras guardam os segredos, talvez grave na madeira o nome
crepuscular das manhãs ou o cintilar da iris.
Rui Alarcão, um homem iluminado.
A morte é uma estranha criatura que chega, quase sempre, inesperadamente e não conhece ninguém. Tem esse secretismo que faz dela uma fada má e impiedosa. A Justiça devia ser como a morte, cega. Infelizmente, todos sabemos que a morte é mais democrática, trata todos por igual. Mas quando nos leva os amigos, os que foram companheiros de muitas “viagens”, ficamos a destilar fel e impropérios. Somos educados para a vida, não para a morte, por isso, nunca estamos preparados para receber a notícia da viagem perpétua. A morte do Professor Rui Alarcão representa mais do que a ausência física de um homem que admirava. Ele representava o que de melhor a Universidade de Coimbra conseguiu desde a sua fundação. É um exagero, dirão alguns. Basta pensar as razões porque se fala da Universidade de Coimbra hoje para encontrarmos as diferenças.
Se afirmo que o Magnífico Reitor Rui Alarcão foi o homem certo na Universidade de Coimbra e na urbe, é porque ele trouxe o diálogo, sentou na mesma mesa estudantes e funcionários, criou as bases da expansão do Polo 2, modernizou os Serviços Sociais, foi um embaixador de Coimbra no mundo. É pouco? Antes dele nada se assemelhou. E depois dele a luz morreu nas velhas ruas da Alta. Foi um homem solidário, estava sempre disponível para os amigos e para as causas, interpretou a função de reitor com elevação, foi um gestor de sensibilidades e um humanista de referência. Fez muito amigos, era de trato fácil, afável e, por isso, envolvente. Teria sido um excelente Presidente da República. Partilhei com ele, enquanto estudante, grandes momentos na academia. Apresentei no Senado da Universidade a proposta para retirar os carros do Pátio.
O que parecia uma proposta subversiva, ao arrepio da tradição, mas em linha com a defesa do património, o Professor Rui Alarcão subscreveu a ideia. Lembro que o principal opositor à proposta foi o Professor Orlando de Carvalho, director da Faculdade de Direito. A minha ousadia dividiu o Senado, mas o Professor Rui Alarcão ficou ao lado dos estudantes e dos poucos professores que defenderam a minha proposta. Nessa altura era Pró-Reitor o Professor Pinho Brojo que defendia uma transição moderada, ou seja, retirar os carros apenas do lajedo. A proposta foi aprovada no Senado e, hoje, o Pátio da Universidade está livre de automóveis. Este exemplo serve para lembrar que o Professor Rui Alarcão não temia as mudanças quando se afiguravam justas. Quando em 1987, ano do centenário da ACC, organizámos as conferências sobre Timor-Leste, ele foi um homem notável, abraçou a ideia e empenhou-se na sua concretização.
Ajudou a falar com todos os ex-ministros que tiveram essa pasta e as conferências realizaram-se juntando à mesa os dirigentes da FRETILIN, UDT e APODETE. Posso dizer que essas conferências ajudaram imenso na aproximação e diálogo entre as partes até ao dia da independência de Timor. Com o Professor Rui Alarcão sabíamos que quase tudo era possível. A sua inteligência e homem de consensos cultivaram a praxis da parceria positiva. Durante o seu reitorado a Universidade de Coimbra não se limitou a olhar para o umbigo, ligou-se às mais antigas universidades do mundo através do que se denominaria Grupo de Coimbra, hoje completamente morto.
Precisamos de tempo para fazermos a história, mas a história do tempo do Reitor Rui Alarcão confunde-se com a história de Portugal, enquanto exerceu funções na Universidade de Coimbra. Cada homem faz a sua história, o Professor Rui Alarcão soube interpretar o chamamento do dever, foi cosmopolita, conciliador, democrata e teve ambição. É justo lembrar o Professor Fernando Rebelo que lhe sucedeu, homem bom e leal, que o acompanhou em muitos momentos do seu reitorado. A morte é sempre um pano negro que escurece o sorriso dos que admiramos, mas importa lembrar que o Professor Rui Alarcão foi um nome incontornável na Universidade de Coimbra e no país. Quando morre um amigo, ficamos mais pobres. O Professor Rui Alarcão foi um homem iluminado que inspirou muitos astrónomos.
António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
Há-de
chegar domingo, e nesse dia as palavras perdidas no parque renascerão nos
troncos das árvores, haverá uma brisa suave que junta as folhas e as memórias,
haverá, ainda, quem se lembre de escrever o nome de quem estava ao seu lado há
muitos anos. Quando me sento num banco do jardim, vejo, quase sempre, muitos
nomes gravados na madeira. Cada nome conta uma história, um encontro, são simples
palavras que parecem querer sair do silêncio. Leio algumas. Há uma que parece
estrangeira, não tem tradução para português, aparece esculpida com um ursinho.
É apenas um nome entre tantos, mas aquele ursinho fez-me esquecer todos os
outros. Talvez fosse o nome de uma criança. Muitos pais sentam-se naquele lugar
depois do passeio pelo parque. Entre dezenas de inscrições aquele deixou-me uma
nódoa no coração.
Estava esculpida com delicadeza. Ao domingo o parque enche-se
de forasteiros, muitos começaram a visitá-lo ainda bebés com as famílias,
cresceram e ensaiaram os primeiros namoros entre as árvores. Há uma sucessão de
encontros e de lugares que nunca envelhecem. A memória chega com a mudança da
luz, principalmente, ao final da tarde quando as sombras se juntam numa espécie
de coro para ensaiarem o apaziguamento. É como se o universo exigisse o
silêncio num só instante. Há mais poesia nesse lugar do que em muitos tratados.
A luz de domingo é diferente, não é só a que o sol empresta ou as árvores
filtram entre a folhagem, é a que a memória recorda quando as palavras de
domingo traziam a comunhão dos encontros. Cada passeio era uma peregrinação de
acasos, uma promessa que vivia até ao próximo domingo.
A esperança é isso
mesmo, a ausência que se promete reencontrar, um desejo que se desafia a si
próprio, a viagem que convida o aventureiro a conhecer novos destinos. O
passado que resiste dentro de nós é o futuro que se recusa a morrer. “Como uma
flor incerta entre o dedos/Há harmonia de um bailar sem fim/E tens o silêncio
indizível dum jardim/Invadido de luar e de segredos”. Ah! Como Sophia de Mello
Breyner Andersen diz tão bem o que outros não conseguem traduzir. Como as suas
palavras juntam o indizível e o eterno! Quando se procura a perfeição, são as
emoções que traçam os caminhos da descoberta, que sinalizam as cores e os sons,
que juntam as pedras em cada regresso para que os aromas sejam o jardim da
saudade. Há tanto perfume em certas palavras, são as corolas apaixonadas pela
vida que se abeiram do horizonte e insinuam as asas da liberdade; são as aves
incansáveis que traduzem os dias e as noites nos seus cantos.
As suas melodias
combinam Schubert e Chopin, são a nostalgia do encontro, a sonoridade da
floresta. Os fios de luz esmaecidos ao final da tarde são tranças na paisagem,
misturam o que vem da terra, há um compromisso de humildade que atravessa sem
pressa os sentidos. Naquele banco de madeira, com o nome estrangeiro
intraduzível, há um palco de sonhos. Daquele lugar vê-se um bosque encantado,
talvez o poeta Gueorgui Gospodinov gostasse de reencontrar ali “O coelho do
amor”, no bosque não há portas, por isso, escreveu: “Volto já, disse/e deixou a
porta aberta” - como uma metáfora do tempo. No próximo domingo voltarei a
sentar-me onde as palavras guardam os segredos, talvez grave na madeira o nome
crepuscular das manhãs ou o cintilar da iris.
António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
A
minha vizinha Maria Irene.
Na
minha rua há uma senhora que me comove. Todas as tardes, senta-se na soleira da
porta, depois do sol se esconder atrás das casas. Há muito que nos
cumprimentamos sem sabermos nada um do outro. Tem idade de ser avó, mas a sua
ternura é intemporal. Parece viver sozinha, vejo-a conversar com as vizinhas de
avental, como se a rua fosse a extensão da sua cozinha. Quando mudei para a sua
rua, foi a primeira pessoa que me cumprimentou, talvez hábitos antigos de boa
vizinhança. O ritual manteve-se até hoje. Acena-me sempre como se fosse a
última vez, sinto que é genuína e isso fez-me lembrar a minha velha rua de
infância onde cresci. Durante quase um ano limitámo-nos a acenar, até que ousei
falar-lhe. Sei agora que se chama Maria Irene.
Não é mais uma senhora
simpática, é minha vizinha Maria Irene. A minha rua confunde-se com bondade da
senhora que me traz cativo desde que a “conheci”. Em frente à sua casa houve
dantes um colégio privado, agora em ruinas, onde existiu um elemento
escultórico evocativo do nosso maior poeta, Luís de Camões, que viria dar nome
à antiga Rua dos Olivais. O elemento escultórico foi recuperado e colocado, a
350 metros mais abaixo, ao fundo da rua, onde permanece com uma inscrição dos
Lusíadas: “Como? Da gente ilustre Portuguesa/ Há-de haver quem refuse o pátrio
Marte”, numa clara alusão aos irmãos de Dom Nuno Álvares - que sempre lutou
pela independência de Portugal -, e que se colocaram ao lado do inimigo. Marte
é o deus da guerra e aparece como elogio ao espírito guerreiro dos portugueses.
A palmeira que secou no antigo espaço do Colégio Camões parece ter a mesma
idade da sua construção, mais de cem anos. Às vezes, detenho-me a olhar o velho
edifício e fico a pensar nas recordações da minha vizinha Maria Irene. O mesmo
imóvel acolheu, em Outubro de 1965, o Instituto Industrial e outras
instituições públicas através dos tempos, mas hoje é um devoluto edifício de
ampla volumetria. Dantes a minha rua teve uma vida difícil de imaginar, era um
plinto de juventude onde cabiam os sonhos e o bulício da vida académica numa
colina da cidade que se deixava espreitar pelo horizonte. Agora é apenas uma
pacatez inspiradora, um fio de terra que ostenta o nome de Luís de Camões, a
poucos metros onde viveu o poeta Miguel Torga.
As ruas vizinhas têm nomes de
escritores, é um emaranhado de Literatura e de História que justifica, em
parte, os nomes ilustres que, ao longo dos tempos, escolheram estas bandas.
Sempre vivi em ruas com nomes de poetas ou de escritores, tive sempre muita
sorte. Por instantes, recordo todos os seus nomes, há uma espécie de destino em
cada morada, uma mão quase divina que me acolheu. Mas o que mais relevo, nesta
última, é o exemplo de humildade da vizinha Maria Irene. Em cada itinerância
trago comigo nomes e histórias que enchem uma biblioteca de saudade. Poderia
enumerar a Graça, o José, o Bruno, a Madalena, o Fernando, a Maria do Céu, o
Afonso e tantos outros. Viver numa rua é carregar a memória das árvores, dos
animais domésticos, das crianças, dos episódios improváveis, dos laços que
crescem e se quebram. Chegar a uma nova rua é uma aventura fantástica, é quase
tudo novo, mesmo numa rua centenária.
Há um fascínio equivalente ao caloiro que
chega à universidade, uma aprendizagem lenta e, muitas vezes, impercetível que
acrescenta inquietação e, também, alegria. A minha vizinha Maria Irene há-de
saber outras estórias ocultas que atravessaram a meninice de outras meninas da
rua, que outrora teve outro nome, antes dos Lusíadas lhe servirem de morada.
Quando esta crónica for publicada, prometo levar-lhe um exemplar do jornal e partilhar
uma boa conversa ao fim da tarde, na soleira onde diariamente a encontro. A
urgência das coisas ditas importantes está a matar a essência das cidades,
transformando-as em dormitórios anónimos e desumanizados. A minha vizinha Maria
Irene é um exemplo de resistência a uma certa modernidade, onde o melhor de nós
não custa dinheiro: a simpatia.
A minha vizinha Maria Irene.
Na
minha rua há uma senhora que me comove. Todas as tardes, senta-se na soleira da
porta, depois do sol se esconder atrás das casas. Há muito que nos
cumprimentamos sem sabermos nada um do outro. Tem idade de ser avó, mas a sua
ternura é intemporal. Parece viver sozinha, vejo-a conversar com as vizinhas de
avental, como se a rua fosse a extensão da sua cozinha. Quando mudei para a sua
rua, foi a primeira pessoa que me cumprimentou, talvez hábitos antigos de boa
vizinhança. O ritual manteve-se até hoje. Acena-me sempre como se fosse a
última vez, sinto que é genuína e isso fez-me lembrar a minha velha rua de
infância onde cresci. Durante quase um ano limitámo-nos a acenar, até que ousei
falar-lhe. Sei agora que se chama Maria Irene.
Não é mais uma senhora
simpática, é minha vizinha Maria Irene. A minha rua confunde-se com bondade da
senhora que me traz cativo desde que a “conheci”. Em frente à sua casa houve
dantes um colégio privado, agora em ruinas, onde existiu um elemento
escultórico evocativo do nosso maior poeta, Luís de Camões, que viria dar nome
à antiga Rua dos Olivais. O elemento escultórico foi recuperado e colocado, a
350 metros mais abaixo, ao fundo da rua, onde permanece com uma inscrição dos
Lusíadas: “Como? Da gente ilustre Portuguesa/ Há-de haver quem refuse o pátrio
Marte”, numa clara alusão aos irmãos de Dom Nuno Álvares - que sempre lutou
pela independência de Portugal -, e que se colocaram ao lado do inimigo. Marte
é o deus da guerra e aparece como elogio ao espírito guerreiro dos portugueses.
A palmeira que secou no antigo espaço do Colégio Camões parece ter a mesma
idade da sua construção, mais de cem anos. Às vezes, detenho-me a olhar o velho
edifício e fico a pensar nas recordações da minha vizinha Maria Irene. O mesmo
imóvel acolheu, em Outubro de 1965, o Instituto Industrial e outras
instituições públicas através dos tempos, mas hoje é um devoluto edifício de
ampla volumetria. Dantes a minha rua teve uma vida difícil de imaginar, era um
plinto de juventude onde cabiam os sonhos e o bulício da vida académica numa
colina da cidade que se deixava espreitar pelo horizonte. Agora é apenas uma
pacatez inspiradora, um fio de terra que ostenta o nome de Luís de Camões, a
poucos metros onde viveu o poeta Miguel Torga.
As ruas vizinhas têm nomes de
escritores, é um emaranhado de Literatura e de História que justifica, em
parte, os nomes ilustres que, ao longo dos tempos, escolheram estas bandas.
Sempre vivi em ruas com nomes de poetas ou de escritores, tive sempre muita
sorte. Por instantes, recordo todos os seus nomes, há uma espécie de destino em
cada morada, uma mão quase divina que me acolheu. Mas o que mais relevo, nesta
última, é o exemplo de humildade da vizinha Maria Irene. Em cada itinerância
trago comigo nomes e histórias que enchem uma biblioteca de saudade. Poderia
enumerar a Graça, o José, o Bruno, a Madalena, o Fernando, a Maria do Céu, o
Afonso e tantos outros. Viver numa rua é carregar a memória das árvores, dos
animais domésticos, das crianças, dos episódios improváveis, dos laços que
crescem e se quebram. Chegar a uma nova rua é uma aventura fantástica, é quase
tudo novo, mesmo numa rua centenária.
Há um fascínio equivalente ao caloiro que
chega à universidade, uma aprendizagem lenta e, muitas vezes, impercetível que
acrescenta inquietação e, também, alegria. A minha vizinha Maria Irene há-de
saber outras estórias ocultas que atravessaram a meninice de outras meninas da
rua, que outrora teve outro nome, antes dos Lusíadas lhe servirem de morada.
Quando esta crónica for publicada, prometo levar-lhe um exemplar do jornal e partilhar
uma boa conversa ao fim da tarde, na soleira onde diariamente a encontro. A
urgência das coisas ditas importantes está a matar a essência das cidades,
transformando-as em dormitórios anónimos e desumanizados. A minha vizinha Maria
Irene é um exemplo de resistência a uma certa modernidade, onde o melhor de nós
não custa dinheiro: a simpatia.
António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
O
dedo afiado de Ricardo Robles
O
milagre acontece quando perdemos a esperança e o Verão eleva o caso Robles à
dimensão da virgem que jura que, depois da gravidez, a virgindade ainda dorme
com ela. Os humoristas têm muita água para lavarem a má-língua e outras partes
do corpo antes de Cristo descer à terra. Ficámos a saber que o imaculado Robles
afinal é mais um “yupi” que não sabe surfar na crista da onda mediática. Não
critico Robles por ser rico ou querer ser rico, não critico Robles por querer
ganhar dinheiro como se trabalhasse para uma imobiliária, não o critico por
acreditar no milagre das rosas, não o critico por pensar que somos todos
pacóvios, sardões da poeira ou invejosos sem “pedigree”. Estamos habituados a
que os meninos de Lisboa, "alfacinhas para sempre, cuidando que todas as
praças deste mundo são como a do Terreiro do Paço" (Almeida Garrett),
façam da estátua de D. José o seu “bouquet” de lantejoulas. A pior das misérias
é a petulância investida de saber fátuo. Os “ismos” requentados com fervor
nobiliárquico catequizando os incautos de passeios domingueiros. Os excessos
são todos maus e já provaram que arrastam fragilidades inconfessáveis.
Nunca
convivi bem com os que se arvoravam em donos da verdade e rotulavam os outros
de “revisionistas” ou de fazerem o jogo da reação; nunca convivi bem com os que
achavam que escrever poesia era desnecessário e depois “vendiam” os interesses
dos trabalhadores da PT às administrações, dobrando a coluna para ascenderem na
vida, embora pertencendo às cúpulas da extrema-esquerda; nunca acreditei que a
Albânia fosse o melhor dos mundos, nem que a China fosse o dragão que
alimentava a chama vermelha do socialismo, mesmo quando era adolescente.
Conheço o areópago dos puros que perseguiam quem divergia dos papas
ideológicos. Lembro-me muito bem o que disseram de Acácio Barreiros, o que
fizeram a outros ex-deputados, antes da transfusão de sangue que deu origem ao
Bloco. Antes havia a Lisnave, a Setenave, a Marinha Grande, as grandes fábricas
onde a extrema-esquerda recrutava os seus quadros. Era nessa tarimba que os
dirigentes aferiam o escopo da intervenção política e ganhavam terreno ao PCP e
ao PS. O estreito caminho da utopia de uma revolução operária-camponesa cedeu
terreno a novas causas e, também, à emergência de uma “nouvelle vague” de
bonitinhos, charmosos e “modernos” com tiques simbólicos de má memória.
O dedo
em riste de Ricardo Robles, espumando ódio à especulação imobiliária, numa
sessão da Câmara de Lisboa, denuncia a montanha com pés de barro. Não basta ser
mulher de César, é preciso parecer. E em política a coerência é o néctar que
exala a confiança e a esperança. Rei morto, rei posto. O que fica do caso
Robles é a filigrana da hipocrisia, a morte dessa espécie de puros que chegou à
praia onde a nudez era ocultada pelo nevoeiro. Não está em causa o projeto
político que o defendeu até ao ridículo, com a miopia corporativa de quem se
esconde atrás das calças do pai quando chamam por ele. A ausência de humildade
política, não o mesmo que arrogância, é a incapacidade para reconhecer os erros
perante as evidências. Os estragos que este caso pode causar são imprevisíveis,
principalmente, depois da família política ter dado um voto de confiança para
que Robles se mantivesse como vereador.
Há para certa esquerda uma ética que às
vezes é republicana, mas nem sempre. Podemos
relevar o dedo afiado de Ricardo Robles, porque no melhor pano cai a nódoa e,
felizmente, há detergentes aromáticos. A ironia não serve apenas para arbitrar
os jogos de bolas de naftalina quando o prolongamento ultrapassa em muito o
tempo de jogo; serve, também, para fazer bloco quando nos querem vender o
melhor de dois mundos. Em Setembro a política regressará com matizes de
Orçamento de Estado para 2019, as folhas começarão a cair e o equinócio
anunciará outra peleja. As lições são muitas e nada ficará igual,
principalmente, se a casa veio abaixo e trovões ao “roble”.
António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
O
dedo afiado de Ricardo Robles
O
milagre acontece quando perdemos a esperança e o Verão eleva o caso Robles à
dimensão da virgem que jura que, depois da gravidez, a virgindade ainda dorme
com ela. Os humoristas têm muita água para lavarem a má-língua e outras partes
do corpo antes de Cristo descer à terra. Ficámos a saber que o imaculado Robles
afinal é mais um “yupi” que não sabe surfar na crista da onda mediática. Não
critico Robles por ser rico ou querer ser rico, não critico Robles por querer
ganhar dinheiro como se trabalhasse para uma imobiliária, não o critico por
acreditar no milagre das rosas, não o critico por pensar que somos todos
pacóvios, sardões da poeira ou invejosos sem “pedigree”. Estamos habituados a
que os meninos de Lisboa, "alfacinhas para sempre, cuidando que todas as
praças deste mundo são como a do Terreiro do Paço" (Almeida Garrett),
façam da estátua de D. José o seu “bouquet” de lantejoulas. A pior das misérias
é a petulância investida de saber fátuo. Os “ismos” requentados com fervor
nobiliárquico catequizando os incautos de passeios domingueiros. Os excessos
são todos maus e já provaram que arrastam fragilidades inconfessáveis.
Nunca
convivi bem com os que se arvoravam em donos da verdade e rotulavam os outros
de “revisionistas” ou de fazerem o jogo da reação; nunca convivi bem com os que
achavam que escrever poesia era desnecessário e depois “vendiam” os interesses
dos trabalhadores da PT às administrações, dobrando a coluna para ascenderem na
vida, embora pertencendo às cúpulas da extrema-esquerda; nunca acreditei que a
Albânia fosse o melhor dos mundos, nem que a China fosse o dragão que
alimentava a chama vermelha do socialismo, mesmo quando era adolescente.
Conheço o areópago dos puros que perseguiam quem divergia dos papas
ideológicos. Lembro-me muito bem o que disseram de Acácio Barreiros, o que
fizeram a outros ex-deputados, antes da transfusão de sangue que deu origem ao
Bloco. Antes havia a Lisnave, a Setenave, a Marinha Grande, as grandes fábricas
onde a extrema-esquerda recrutava os seus quadros. Era nessa tarimba que os
dirigentes aferiam o escopo da intervenção política e ganhavam terreno ao PCP e
ao PS. O estreito caminho da utopia de uma revolução operária-camponesa cedeu
terreno a novas causas e, também, à emergência de uma “nouvelle vague” de
bonitinhos, charmosos e “modernos” com tiques simbólicos de má memória.
O dedo
em riste de Ricardo Robles, espumando ódio à especulação imobiliária, numa
sessão da Câmara de Lisboa, denuncia a montanha com pés de barro. Não basta ser
mulher de César, é preciso parecer. E em política a coerência é o néctar que
exala a confiança e a esperança. Rei morto, rei posto. O que fica do caso
Robles é a filigrana da hipocrisia, a morte dessa espécie de puros que chegou à
praia onde a nudez era ocultada pelo nevoeiro. Não está em causa o projeto
político que o defendeu até ao ridículo, com a miopia corporativa de quem se
esconde atrás das calças do pai quando chamam por ele. A ausência de humildade
política, não o mesmo que arrogância, é a incapacidade para reconhecer os erros
perante as evidências. Os estragos que este caso pode causar são imprevisíveis,
principalmente, depois da família política ter dado um voto de confiança para
que Robles se mantivesse como vereador.
Há para certa esquerda uma ética que às vezes é republicana, mas nem sempre. Podemos relevar o dedo afiado de Ricardo Robles, porque no melhor pano cai a nódoa e, felizmente, há detergentes aromáticos. A ironia não serve apenas para arbitrar os jogos de bolas de naftalina quando o prolongamento ultrapassa em muito o tempo de jogo; serve, também, para fazer bloco quando nos querem vender o melhor de dois mundos. Em Setembro a política regressará com matizes de Orçamento de Estado para 2019, as folhas começarão a cair e o equinócio anunciará outra peleja. As lições são muitas e nada ficará igual, principalmente, se a casa veio abaixo e trovões ao “roble”.
António VilhenaHá para certa esquerda uma ética que às vezes é republicana, mas nem sempre. Podemos relevar o dedo afiado de Ricardo Robles, porque no melhor pano cai a nódoa e, felizmente, há detergentes aromáticos. A ironia não serve apenas para arbitrar os jogos de bolas de naftalina quando o prolongamento ultrapassa em muito o tempo de jogo; serve, também, para fazer bloco quando nos querem vender o melhor de dois mundos. Em Setembro a política regressará com matizes de Orçamento de Estado para 2019, as folhas começarão a cair e o equinócio anunciará outra peleja. As lições são muitas e nada ficará igual, principalmente, se a casa veio abaixo e trovões ao “roble”.
Diário
de Notícias
Nunca
imaginei escrever esta crónica. O normal seria não escrever sobre o Diário de
Notícias. Mas há mortes anunciadas que doem, que vão gastando a esperança como
se uma goteira pingasse sobre os ossos. A morte do Diário de Notícias pode ser
a lápide anunciada de um certo jornalismo onde jaz o Diário de Lisboa, o Diário
Popular ou A Capital. Há jornais que fazem parte das nossas vidas, pertencem à
família, vão connosco para todo o lado: ao café, à praia, ao cinema, ao
restaurante, às castanhas ou, simplesmente, ao jardim. Costumamos encontra-los
nos aviões, nos comboios, nos quiosques, nas bibliotecas ou nas livrarias.
Levamos uma vida inteira a tê-los por companhia.
Sabemos onde encontrar o que
nos interessa, nas páginas destinadas a certos assuntos. Conhecemos quase tudo
sobre os seus rituais, até se pode dizer que vestem o fato domingueiro. Há uma
liturgia para o jornal que atravessou a nossa vida e que se transmite de
geração em geração. Por isso, quando vou a um quiosque de jornais há um vazio
de difícil tradução. Apenas me ocorre um nome: assassinato. Assassinaram o meu
jornal, não está onde devia estar, o seu lugar foi tomado por outros
companheiros de viagem que, também, devem estranhar a sua ausência. Desde
sempre vou a um quiosque ver as “gordas” e comprar o jornal. Quando digo desde
sempre, quero dizer desde que me lembro de ter começado a escrever no DN-Jovem,
quando o jornalista Manuel Dias era responsável por esse suplemento. Foi aí que
escrevi os primeiros textos e estabeleci uma relação de afeto com o jornal.
Em
Coimbra, conheci jornalistas de mão cheia: Fernando Madail e Soares Rebelo. A
foto do meu primeiro livro foi da autoria do fotojornalista Luís Carregã, que,
em 1987, trabalhava na delegação de Coimbra do Diário de Notícia. Quando ia a
Lisboa visitava os meus amigos que trabalhavam na sede na Avenida da Liberdade.
Subia o elevador até à redação onde se “faziam” as páginas mágicas de um jornal
que nasceu em 1864. Havia nessas visitas um misto de sensações. Era um
privilégio estar na redação onde havia tantas caras conhecidas, gente que
ajudava a fazer o imaginário coletivo. A história dos jornais é a história do
país contada nas páginas dos que tiveram o privilégio de a escrever no seu
tempo. Cada visita à redação, ao templo, constituía uma memória inefável que
guardo na melhor galeria das recordações.
Durante alguns anos escrevi para o
DN-Jovem, aquele suplemento que abria janelas aos jovens escritores. Quando
cheguei a Coimbra o meu primeiro trabalho para o DN-Jovem foi uma entrevista a
Túlia Saldanha, diretora do Círculo de Artes Plásticas. Seguiram-se outros
trabalhos que culminaram com uma gala do DN-Jovem no Teatro Académico de Gil
Vicente, em parceria com o, ainda, jornalista Vitalino Santos. A morte
anunciada do Diário de Notícias é um luto difícil de fazer. Quando pela manhã
vou a quiosque de jornais, não encontro o DN, é como se à mesa faltasse alguém
da família, uma pessoa que tivesse morrido. A sua ausência traz sentimentos
contraditórios: tristeza e raiva. A edição on-line é uma espécie de namoro
virtual, não se cheira, não se toca, não se sente.
Eu prefiro o papel, aquele que
deixa tinta nos dedos, que serve para embrulhar castanhas, que protege o chão
quando pintamos a casa. Em Portugal os grupos económicos compraram os jornais
para fazerem política e controlarem a informação, outros criaram os seus
próprios jornais com os mesmos objetivos. A maior parte dos acionistas dos
velhos jornais são quase analfabetos, mas rodearam-se de lebres obedientes que
nomearam obedientes porteiros. Estes despediram as grandes referências do
jornalismo, fecharam delegações, contrataram inexperientes e baratos mancebos
da palavra e o resultado é um óbito anunciado. É difícil de acreditar, mas a
verdade é que o Diário de Notícias já não existe.
António Vilhena
Diário
de Notícias
Nunca
imaginei escrever esta crónica. O normal seria não escrever sobre o Diário de
Notícias. Mas há mortes anunciadas que doem, que vão gastando a esperança como
se uma goteira pingasse sobre os ossos. A morte do Diário de Notícias pode ser
a lápide anunciada de um certo jornalismo onde jaz o Diário de Lisboa, o Diário
Popular ou A Capital. Há jornais que fazem parte das nossas vidas, pertencem à
família, vão connosco para todo o lado: ao café, à praia, ao cinema, ao
restaurante, às castanhas ou, simplesmente, ao jardim. Costumamos encontra-los
nos aviões, nos comboios, nos quiosques, nas bibliotecas ou nas livrarias.
Levamos uma vida inteira a tê-los por companhia.
Sabemos onde encontrar o que
nos interessa, nas páginas destinadas a certos assuntos. Conhecemos quase tudo
sobre os seus rituais, até se pode dizer que vestem o fato domingueiro. Há uma
liturgia para o jornal que atravessou a nossa vida e que se transmite de
geração em geração. Por isso, quando vou a um quiosque de jornais há um vazio
de difícil tradução. Apenas me ocorre um nome: assassinato. Assassinaram o meu
jornal, não está onde devia estar, o seu lugar foi tomado por outros
companheiros de viagem que, também, devem estranhar a sua ausência. Desde
sempre vou a um quiosque ver as “gordas” e comprar o jornal. Quando digo desde
sempre, quero dizer desde que me lembro de ter começado a escrever no DN-Jovem,
quando o jornalista Manuel Dias era responsável por esse suplemento. Foi aí que
escrevi os primeiros textos e estabeleci uma relação de afeto com o jornal.
Em
Coimbra, conheci jornalistas de mão cheia: Fernando Madail e Soares Rebelo. A
foto do meu primeiro livro foi da autoria do fotojornalista Luís Carregã, que,
em 1987, trabalhava na delegação de Coimbra do Diário de Notícia. Quando ia a
Lisboa visitava os meus amigos que trabalhavam na sede na Avenida da Liberdade.
Subia o elevador até à redação onde se “faziam” as páginas mágicas de um jornal
que nasceu em 1864. Havia nessas visitas um misto de sensações. Era um
privilégio estar na redação onde havia tantas caras conhecidas, gente que
ajudava a fazer o imaginário coletivo. A história dos jornais é a história do
país contada nas páginas dos que tiveram o privilégio de a escrever no seu
tempo. Cada visita à redação, ao templo, constituía uma memória inefável que
guardo na melhor galeria das recordações.
Durante alguns anos escrevi para o
DN-Jovem, aquele suplemento que abria janelas aos jovens escritores. Quando
cheguei a Coimbra o meu primeiro trabalho para o DN-Jovem foi uma entrevista a
Túlia Saldanha, diretora do Círculo de Artes Plásticas. Seguiram-se outros
trabalhos que culminaram com uma gala do DN-Jovem no Teatro Académico de Gil
Vicente, em parceria com o, ainda, jornalista Vitalino Santos. A morte
anunciada do Diário de Notícias é um luto difícil de fazer. Quando pela manhã
vou a quiosque de jornais, não encontro o DN, é como se à mesa faltasse alguém
da família, uma pessoa que tivesse morrido. A sua ausência traz sentimentos
contraditórios: tristeza e raiva. A edição on-line é uma espécie de namoro
virtual, não se cheira, não se toca, não se sente.
Eu prefiro o papel, aquele que
deixa tinta nos dedos, que serve para embrulhar castanhas, que protege o chão
quando pintamos a casa. Em Portugal os grupos económicos compraram os jornais
para fazerem política e controlarem a informação, outros criaram os seus
próprios jornais com os mesmos objetivos. A maior parte dos acionistas dos
velhos jornais são quase analfabetos, mas rodearam-se de lebres obedientes que
nomearam obedientes porteiros. Estes despediram as grandes referências do
jornalismo, fecharam delegações, contrataram inexperientes e baratos mancebos
da palavra e o resultado é um óbito anunciado. É difícil de acreditar, mas a
verdade é que o Diário de Notícias já não existe.
António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
Maternidade
nova? Expliquem lá!
Esta
crónica não pretende ser simpática, nem eu me devo calar por defender certas
posições políticas. Coimbra foi a cidade que adotei para viver. Esta é uma
cidade que eu amo e que me ajudou a ser como sou, com virtudes e defeitos aos
olhos dos que me conhecem. Nunca deixei que me pegassem na mão para escrever
qualquer encomenda. A independência é uma bandeira sem cor, um grito de
liberdade que não se deixa sufocar. Claro que tudo isto tem um preço que eu
conheço-o muito bem. Mas prefiro o compromisso com o livre arbítrio e não
aceito chantagens e pressões pouco éticas.
Vem
isto a propósito do debate que se gerou em Coimbra sobre a localização da nova
maternidade. Há muito que se fala da necessidade de uma nova maternidade que
reúna as existentes: Bissaya Barreto e Daniel de Matos. O debate é antigo e
consensual, mas parece inquinado quanto à sua localização. Este país está cheio
de sábios, que ninguém conhece, até integrarem uma comissão qualquer. O pior
das comissões, que emitem pareceres, é que são nomeadas por quem vai decidir.
Escolhem antecipadamente o perfil da decisão e escrevem os relatórios como
marionetes. Assim, tudo parece lógico, quem dá parecer é escolhido por quem vai
decidir. Entenderam? Claro que todos entendemos. Já ouviram falar de resultados
manipulados no futebol? Eu se fosse hipócrita diria que não, mas todos saberiam
que eu estava a mentir.
Quem não sabe fica a saber que uma comissão nomeada por
quem vai decidir a localização da nova maternidade disse que o melhor local é
onde estão os Hospitais da Universidade de Coimbra (HUC – para todos
perceberem). Nem dá para acreditar! Não é verdade? Mas foi isso que aconteceu.
Essa comissão inspirada por São Jerónimo escolheu o local menos provável para
semear flores. Escolheu o local, com toda a certeza, que tem mais carros por
metro quadrado e mais multas de estacionamento. Às vezes é aconselhável não
saber os nomes dos que constituem certas comissões de sábios para nos pouparem
à vergonha. O futuro não lhes reserva nenhum Doutoramento Honoris Causa por
essa folha curricular.
Vamos
ao que interessa. Sabem quantos partos foram feitos em Coimbra, nas
maternidades Bissaya Barreto e Daniel de Matos? A verdade dos números segundo a
PORDATA atualizados a 20 de Dezembro de 2017: em 2001: 6681; 2009: 5962; 2010:
6128; 2012: 5202; 2013: 4823; 2014: 4725; 2015: 4949 e 2016: 4885. Se olharmos
para os números constatamos que as mesmas maternidades que fizeram em 2016:
4885 partos, foram as mesmas que fizeram em 2001: 6681 partos. Em 2001 não
havia hospitais privados em Coimbra, mas havia espaço, muito espaço disponível
no perímetro dos HUC para a construção da nova maternidade. Mas esta questão
nem se coloca neste momento.
A decisão de asfixiar a nova maternidade nos HUC é
política, não é técnica. Os que se escondem atrás do biombo, aligando questões
técnicas, sabem que a decisão é política e que a semântica utilizada é uma
montanha com pés de barro. A desativação do Hospital dos Covões foi um erro
histórico e que deve entrar no debate sobre a localização da nova maternidade.
É urgente recuperar a memória e desocultar esse processo de desmembramento de
um hospital de referência. Há, com toda a certeza, linhas de contacto entre
aqueles que defendem agora a localização da nova maternidade nos HUC.
Então,
expliquem lá porque eu também quero perceber. Por que razão querem instalar a
nova maternidade num espaço, que já esgotou a sua capacidade física, que não
tem estacionamento, que é uma fábrica desumanizada numa zona que carece
urgentemente de respiração? Por que não aproveitam as instalações do Hospital
dos Covões ou do antigo Hospital Pediátrico? Não venham com argumentos
demagógicos dizer que as grávidas precisam de outros serviços. Então alguém
acredita nisso? Então as maternidades Bissaya Barreto e Daniel de Matos não têm
respondido com competência técnica ao longo da sua existência? Os meus filhos
nasceram numa dessas maternidades e milhares de outras crianças. Este é um caso
em que não vale tudo. A ditadura das comissões, que são nomeadas por quem
decide, são embustes vestidos com roupa emprestada. Haja decoro e bom senso..
Esta
crónica não pretende ser simpática, nem eu me devo calar por defender certas
posições políticas. Coimbra foi a cidade que adotei para viver. Esta é uma
cidade que eu amo e que me ajudou a ser como sou, com virtudes e defeitos aos
olhos dos que me conhecem. Nunca deixei que me pegassem na mão para escrever
qualquer encomenda. A independência é uma bandeira sem cor, um grito de
liberdade que não se deixa sufocar. Claro que tudo isto tem um preço que eu
conheço-o muito bem. Mas prefiro o compromisso com o livre arbítrio e não
aceito chantagens e pressões pouco éticas.
Vem
isto a propósito do debate que se gerou em Coimbra sobre a localização da nova
maternidade. Há muito que se fala da necessidade de uma nova maternidade que
reúna as existentes: Bissaya Barreto e Daniel de Matos. O debate é antigo e
consensual, mas parece inquinado quanto à sua localização. Este país está cheio
de sábios, que ninguém conhece, até integrarem uma comissão qualquer. O pior
das comissões, que emitem pareceres, é que são nomeadas por quem vai decidir.
Escolhem antecipadamente o perfil da decisão e escrevem os relatórios como
marionetes. Assim, tudo parece lógico, quem dá parecer é escolhido por quem vai
decidir. Entenderam? Claro que todos entendemos. Já ouviram falar de resultados
manipulados no futebol? Eu se fosse hipócrita diria que não, mas todos saberiam
que eu estava a mentir.
Quem não sabe fica a saber que uma comissão nomeada por
quem vai decidir a localização da nova maternidade disse que o melhor local é
onde estão os Hospitais da Universidade de Coimbra (HUC – para todos
perceberem). Nem dá para acreditar! Não é verdade? Mas foi isso que aconteceu.
Essa comissão inspirada por São Jerónimo escolheu o local menos provável para
semear flores. Escolheu o local, com toda a certeza, que tem mais carros por
metro quadrado e mais multas de estacionamento. Às vezes é aconselhável não
saber os nomes dos que constituem certas comissões de sábios para nos pouparem
à vergonha. O futuro não lhes reserva nenhum Doutoramento Honoris Causa por
essa folha curricular.
Vamos
ao que interessa. Sabem quantos partos foram feitos em Coimbra, nas
maternidades Bissaya Barreto e Daniel de Matos? A verdade dos números segundo a
PORDATA atualizados a 20 de Dezembro de 2017: em 2001: 6681; 2009: 5962; 2010:
6128; 2012: 5202; 2013: 4823; 2014: 4725; 2015: 4949 e 2016: 4885. Se olharmos
para os números constatamos que as mesmas maternidades que fizeram em 2016:
4885 partos, foram as mesmas que fizeram em 2001: 6681 partos. Em 2001 não
havia hospitais privados em Coimbra, mas havia espaço, muito espaço disponível
no perímetro dos HUC para a construção da nova maternidade. Mas esta questão
nem se coloca neste momento.
A decisão de asfixiar a nova maternidade nos HUC é
política, não é técnica. Os que se escondem atrás do biombo, aligando questões
técnicas, sabem que a decisão é política e que a semântica utilizada é uma
montanha com pés de barro. A desativação do Hospital dos Covões foi um erro
histórico e que deve entrar no debate sobre a localização da nova maternidade.
É urgente recuperar a memória e desocultar esse processo de desmembramento de
um hospital de referência. Há, com toda a certeza, linhas de contacto entre
aqueles que defendem agora a localização da nova maternidade nos HUC.
Então,
expliquem lá porque eu também quero perceber. Por que razão querem instalar a
nova maternidade num espaço, que já esgotou a sua capacidade física, que não
tem estacionamento, que é uma fábrica desumanizada numa zona que carece
urgentemente de respiração? Por que não aproveitam as instalações do Hospital
dos Covões ou do antigo Hospital Pediátrico? Não venham com argumentos
demagógicos dizer que as grávidas precisam de outros serviços. Então alguém
acredita nisso? Então as maternidades Bissaya Barreto e Daniel de Matos não têm
respondido com competência técnica ao longo da sua existência? Os meus filhos
nasceram numa dessas maternidades e milhares de outras crianças. Este é um caso
em que não vale tudo. A ditadura das comissões, que são nomeadas por quem
decide, são embustes vestidos com roupa emprestada. Haja decoro e bom senso..
António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
AS
ASAS FERIDAS DOS VELHOS PÁSSAROS.
Adormecem
nos ramos. Os seus voos nunca se afastaram do horizonte onde esboçaram as
primeiras acrobacias. Quem conhece os seus cantos sabe que a musicalidade varia
consoante o ano. É na Primavera que a polifonia assume o esplendor dos dias
luminosos. Sob a copa frondosa das árvores do terreiro, as sombras cobrem os
bancos de madeira e chamam, todas as tardes, os amigos que cresceram naquele
lugar. Hoje são velhos, dizem. Chegam depois do almoço quando a brisa anuncia a
descida do sol. Não precisam de combinar nada, há uma agenda secreta que clama
o reencontro como se esse fosse o único compromisso da vida que resta.
No largo
da vila ainda resistem as árvores da infância, o chafariz público inaugurado no
ano da República, os candeeiros pregados às paredes, a mercearia da Tia
Joaquina, e argolas na parede onde, outrora, havia um ferrador. No último
sábado de cada mês a feira era o acontecimento mais importante, todos os
caminhos desaguavam no terreiro de terra batida. Havia de tudo: galinhas vivas,
porcos, burros, barraquinhas de tiro, pinhoada de alicante, carrosséis e
vendedores de mantas onde se pagava uma e levava-se cinco. O mundo inteiro
estava ali, onde o barulho das conversas trazia um delta de sons, uma revoada
de gente que, desde sempre, conheceu a feira no Largo dos Pássaros.
O Manuel
recorda-se de ir com a avó comprar farturas, consegue indicar exatamente o
local onde isso acontecia. O Adérito gostava de tirar o retrato sentado no
cavalinho de pau. O Serafim preferia ver os burros que os ciganos levavam para
vender. “Eram os melhores animais do mundo”. São estas as recordações que os
amigos das sombras e dos pássaros falam quando estão juntos. Há muito que estão
reformados, agora o tempo corre ao sabor do dia da reforma. Os netos estão longe,
vivem nas cidades. Quando regressam de férias é ali que brincam. Há um
reencontro de gerações que anima os olhos daqueles homens. Apesar de algumas
dores, continuam a sorrir sem pressa. Em tempo de férias os emigrantes dão
outra vida ao comércio e o largo fica cheio. O momento alto é quando a Nossa
Senhora da Conceição sai da igreja para a procissão.
Nesse dia a vila parece
que cresceu, lembra os velhos tempos da feira. O largo enche-se de gente que
aguarda para ver a Nossa Senhora, é um ritual que se repete em Agosto. Em passo
lento, os que podem, caminham atrás do andor, vão em comunhão rezando sob um
sol inclemente. O Serafim já não pode levar o andor como noutros tempos em que
tinha força, agora são outros “moços” que o fazem. O padre Gregório entrega o
andor, com mais de trezentos quilos, aos jovens bombeiros que o levam até à
Cruz do Horizonte, onde decorre uma missa campal. Dizem que aquele lugar foi
onde a Nossa Senhora da Conceição se protegeu do sol, tendo aí nascido uma
árvore de grandes sombras onde a passarada pernoita. Mas há velhos pássaros que
parecem ter as asas feridas, já não abandonam os ramos.
O Manuel, o Adérito e o
Serafim são amigos desde os tempos da caça às perdizes, conhecem os córregos e
os vales como as suas mãos. Depois das caçadas ficavam na taberna a petiscar e
a cantar. Nesse tempo a vida era dura e o canto ajudava a esquecer. Depois veio
a guerra e a ida para África. De repente tudo mudou. Tudo menos o Largo dos
Pássaros. Quando regressaram da guerra voltaram a encontrar-se no mesmo sítio
de sempre. Ainda recordam esses tempos, mas não gostam de falar muito dessa
experiência. Preferem falar de futebol. A guerra traz sempre uma memória
dolorosa, talvez, por isso, o Adérito diga que ainda há “asas feridas de velhos
pássaros”. Talvez a metáfora seja, também, uma sombra simbólica da memória
inquieta.
António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
AS ASAS FERIDAS DOS VELHOS PÁSSAROS.
Adormecem
nos ramos. Os seus voos nunca se afastaram do horizonte onde esboçaram as
primeiras acrobacias. Quem conhece os seus cantos sabe que a musicalidade varia
consoante o ano. É na Primavera que a polifonia assume o esplendor dos dias
luminosos. Sob a copa frondosa das árvores do terreiro, as sombras cobrem os
bancos de madeira e chamam, todas as tardes, os amigos que cresceram naquele
lugar. Hoje são velhos, dizem. Chegam depois do almoço quando a brisa anuncia a
descida do sol. Não precisam de combinar nada, há uma agenda secreta que clama
o reencontro como se esse fosse o único compromisso da vida que resta.
No largo
da vila ainda resistem as árvores da infância, o chafariz público inaugurado no
ano da República, os candeeiros pregados às paredes, a mercearia da Tia
Joaquina, e argolas na parede onde, outrora, havia um ferrador. No último
sábado de cada mês a feira era o acontecimento mais importante, todos os
caminhos desaguavam no terreiro de terra batida. Havia de tudo: galinhas vivas,
porcos, burros, barraquinhas de tiro, pinhoada de alicante, carrosséis e
vendedores de mantas onde se pagava uma e levava-se cinco. O mundo inteiro
estava ali, onde o barulho das conversas trazia um delta de sons, uma revoada
de gente que, desde sempre, conheceu a feira no Largo dos Pássaros.
O Manuel
recorda-se de ir com a avó comprar farturas, consegue indicar exatamente o
local onde isso acontecia. O Adérito gostava de tirar o retrato sentado no
cavalinho de pau. O Serafim preferia ver os burros que os ciganos levavam para
vender. “Eram os melhores animais do mundo”. São estas as recordações que os
amigos das sombras e dos pássaros falam quando estão juntos. Há muito que estão
reformados, agora o tempo corre ao sabor do dia da reforma. Os netos estão longe,
vivem nas cidades. Quando regressam de férias é ali que brincam. Há um
reencontro de gerações que anima os olhos daqueles homens. Apesar de algumas
dores, continuam a sorrir sem pressa. Em tempo de férias os emigrantes dão
outra vida ao comércio e o largo fica cheio. O momento alto é quando a Nossa
Senhora da Conceição sai da igreja para a procissão.
Nesse dia a vila parece
que cresceu, lembra os velhos tempos da feira. O largo enche-se de gente que
aguarda para ver a Nossa Senhora, é um ritual que se repete em Agosto. Em passo
lento, os que podem, caminham atrás do andor, vão em comunhão rezando sob um
sol inclemente. O Serafim já não pode levar o andor como noutros tempos em que
tinha força, agora são outros “moços” que o fazem. O padre Gregório entrega o
andor, com mais de trezentos quilos, aos jovens bombeiros que o levam até à
Cruz do Horizonte, onde decorre uma missa campal. Dizem que aquele lugar foi
onde a Nossa Senhora da Conceição se protegeu do sol, tendo aí nascido uma
árvore de grandes sombras onde a passarada pernoita. Mas há velhos pássaros que
parecem ter as asas feridas, já não abandonam os ramos.
O Manuel, o Adérito e o
Serafim são amigos desde os tempos da caça às perdizes, conhecem os córregos e
os vales como as suas mãos. Depois das caçadas ficavam na taberna a petiscar e
a cantar. Nesse tempo a vida era dura e o canto ajudava a esquecer. Depois veio
a guerra e a ida para África. De repente tudo mudou. Tudo menos o Largo dos
Pássaros. Quando regressaram da guerra voltaram a encontrar-se no mesmo sítio
de sempre. Ainda recordam esses tempos, mas não gostam de falar muito dessa
experiência. Preferem falar de futebol. A guerra traz sempre uma memória
dolorosa, talvez, por isso, o Adérito diga que ainda há “asas feridas de velhos
pássaros”. Talvez a metáfora seja, também, uma sombra simbólica da memória
inquieta.
António Vilhena
António Arnaut,
o aristocrata da ética.
A
notícia interrompeu outra crónica quase escrita. Deixei tudo, desci as escadas
e procurei o sol. Foi ali, junto a uma parede branca que procurei o alento e a
respiração. A perda de um amigo é uma experiência dolorosa. Num ápice o seu
nome estava em todo o lado: nos jornais, nas rádios, nas televisões e nas redes
sociais. Apercebi-me que se manifestavam com enormes textos, acompanhados de fotografias
com o homem bom. Alguns eram manifestamente excessivos. De repente, o seu nome
estava na rua, em todas as vozes como um pregão: António Arnaut. Nos próximos
dias todos falarão do ministro, do advogado, do maçon, do político ou do poeta.
Todos sabemos quanto os portugueses são generosos e gostam de partilhar a dor
por aqueles que, em vida, foram justos e leais aos princípios. Escrever a
quente tem riscos, mas, também, fotografa a emoção como uma sombra.
O Serviço
Nacional de Saúde, “uma teimosia”, mudou e ajudou a vida de muitos. Mas o que
mudou a minha vida foi um discurso que, ainda adolescente, ouvi a António
Arnaut, nos anos oitenta, aquando das comemorações do 25 de Abril, às portas da
prisão do Forte de Caxias, quando Otelo Saraiva de Carvalho estava detido. As
suas palavras indicaram-me o caminho da Justiça, da Liberdade e da
Fraternidade. O seu discurso evocava a Geração de 70, nomeadamente, Antero de
Quental. Esse caldo de referências foi a gota suficiente para provocar um
terramoto de curiosidade num adolescente inquieto e comprometido com a utopia
de mudar o mundo. Quando cheguei a Coimbra não me cruzei logo com António
Arnaut, mas via-o passear com Miguel Torga. O primeiro contacto surgiu na
Galeria Primeiro de Janeiro, na rua Ferreira Borges. Pedi-lhe um autógrafo para
o seu primeiro livro de poesia que eu tinha comprado em Beja.
O seu espanto foi
enorme, uma vez que esse livro não tinha sido distribuído e havia poucos
exemplares. Foi assim que nos conhecemos. Depois a vida encarregou-se, noutros
lugares fraternos, de nos ajudar a construir uma bela amizade. A literatura foi
a mão que nos aproximou; a política foi o rio inevitável que desaguava na
tolerância. Com António Arnaut conheci imensas personalidades. Quando olho para
trás, já não vejo Emídio Guerreiro, Fernando Vale e Edmundo Pedro. Que
privilégio que eu tive! Mas essas memórias não cabem nesta crónica. As
referências morais de Portugal estão morrendo, aqueles que lutaram por valores,
sacrificando a própria vida, são cada vez menos. E o que fica? E quem fica? Uma
inquietante caldeirada de gente que toma os lugares, sem história, sem
princípios, formada nas bermas do oportunismo e do espertismo. Dirão que estou
a generalizar, mas eu não confundo a árvore com a floresta, eu olho o dedo e a
lua. Infelizmente, a realidade é mais cruel do que a ficção.
António Arnaut
deixou um legado ético, aquilo que são os ideais que orientam a conduta humana,
que exclui o primado das paixões e os actos irrefletidos do Homem; aquilo que
cada um deve valorizar individualmente e que não põe em causa os princípios
sociais; ou seja, a ética republicana. Quando
um homem se agiganta para além das suas convicções, com coerência e
frontalidade, içando a justiça e a tolerância, o povo sai à rua. Foi isso que
se viu na Igreja do Convento de S. Francisco, em Coimbra. Uma ampla
manifestação de reconhecimento e dor pelo homem bom: António Arnaut.
António Vilhena
António Arnaut,
o aristocrata da ética.
A
notícia interrompeu outra crónica quase escrita. Deixei tudo, desci as escadas
e procurei o sol. Foi ali, junto a uma parede branca que procurei o alento e a
respiração. A perda de um amigo é uma experiência dolorosa. Num ápice o seu
nome estava em todo o lado: nos jornais, nas rádios, nas televisões e nas redes
sociais. Apercebi-me que se manifestavam com enormes textos, acompanhados de fotografias
com o homem bom. Alguns eram manifestamente excessivos. De repente, o seu nome
estava na rua, em todas as vozes como um pregão: António Arnaut. Nos próximos
dias todos falarão do ministro, do advogado, do maçon, do político ou do poeta.
Todos sabemos quanto os portugueses são generosos e gostam de partilhar a dor
por aqueles que, em vida, foram justos e leais aos princípios. Escrever a
quente tem riscos, mas, também, fotografa a emoção como uma sombra.
O Serviço Nacional de Saúde, “uma teimosia”, mudou e ajudou a vida de muitos. Mas o que mudou a minha vida foi um discurso que, ainda adolescente, ouvi a António Arnaut, nos anos oitenta, aquando das comemorações do 25 de Abril, às portas da prisão do Forte de Caxias, quando Otelo Saraiva de Carvalho estava detido. As suas palavras indicaram-me o caminho da Justiça, da Liberdade e da Fraternidade. O seu discurso evocava a Geração de 70, nomeadamente, Antero de Quental. Esse caldo de referências foi a gota suficiente para provocar um terramoto de curiosidade num adolescente inquieto e comprometido com a utopia de mudar o mundo. Quando cheguei a Coimbra não me cruzei logo com António Arnaut, mas via-o passear com Miguel Torga. O primeiro contacto surgiu na Galeria Primeiro de Janeiro, na rua Ferreira Borges. Pedi-lhe um autógrafo para o seu primeiro livro de poesia que eu tinha comprado em Beja.
O seu espanto foi enorme, uma vez que esse livro não tinha sido distribuído e havia poucos exemplares. Foi assim que nos conhecemos. Depois a vida encarregou-se, noutros lugares fraternos, de nos ajudar a construir uma bela amizade. A literatura foi a mão que nos aproximou; a política foi o rio inevitável que desaguava na tolerância. Com António Arnaut conheci imensas personalidades. Quando olho para trás, já não vejo Emídio Guerreiro, Fernando Vale e Edmundo Pedro. Que privilégio que eu tive! Mas essas memórias não cabem nesta crónica. As referências morais de Portugal estão morrendo, aqueles que lutaram por valores, sacrificando a própria vida, são cada vez menos. E o que fica? E quem fica? Uma inquietante caldeirada de gente que toma os lugares, sem história, sem princípios, formada nas bermas do oportunismo e do espertismo. Dirão que estou a generalizar, mas eu não confundo a árvore com a floresta, eu olho o dedo e a lua. Infelizmente, a realidade é mais cruel do que a ficção.
António Arnaut deixou um legado ético, aquilo que são os ideais que orientam a conduta humana, que exclui o primado das paixões e os actos irrefletidos do Homem; aquilo que cada um deve valorizar individualmente e que não põe em causa os princípios sociais; ou seja, a ética republicana. Quando um homem se agiganta para além das suas convicções, com coerência e frontalidade, içando a justiça e a tolerância, o povo sai à rua. Foi isso que se viu na Igreja do Convento de S. Francisco, em Coimbra. Uma ampla manifestação de reconhecimento e dor pelo homem bom: António Arnaut.
O Serviço Nacional de Saúde, “uma teimosia”, mudou e ajudou a vida de muitos. Mas o que mudou a minha vida foi um discurso que, ainda adolescente, ouvi a António Arnaut, nos anos oitenta, aquando das comemorações do 25 de Abril, às portas da prisão do Forte de Caxias, quando Otelo Saraiva de Carvalho estava detido. As suas palavras indicaram-me o caminho da Justiça, da Liberdade e da Fraternidade. O seu discurso evocava a Geração de 70, nomeadamente, Antero de Quental. Esse caldo de referências foi a gota suficiente para provocar um terramoto de curiosidade num adolescente inquieto e comprometido com a utopia de mudar o mundo. Quando cheguei a Coimbra não me cruzei logo com António Arnaut, mas via-o passear com Miguel Torga. O primeiro contacto surgiu na Galeria Primeiro de Janeiro, na rua Ferreira Borges. Pedi-lhe um autógrafo para o seu primeiro livro de poesia que eu tinha comprado em Beja.
O seu espanto foi enorme, uma vez que esse livro não tinha sido distribuído e havia poucos exemplares. Foi assim que nos conhecemos. Depois a vida encarregou-se, noutros lugares fraternos, de nos ajudar a construir uma bela amizade. A literatura foi a mão que nos aproximou; a política foi o rio inevitável que desaguava na tolerância. Com António Arnaut conheci imensas personalidades. Quando olho para trás, já não vejo Emídio Guerreiro, Fernando Vale e Edmundo Pedro. Que privilégio que eu tive! Mas essas memórias não cabem nesta crónica. As referências morais de Portugal estão morrendo, aqueles que lutaram por valores, sacrificando a própria vida, são cada vez menos. E o que fica? E quem fica? Uma inquietante caldeirada de gente que toma os lugares, sem história, sem princípios, formada nas bermas do oportunismo e do espertismo. Dirão que estou a generalizar, mas eu não confundo a árvore com a floresta, eu olho o dedo e a lua. Infelizmente, a realidade é mais cruel do que a ficção.
António Arnaut deixou um legado ético, aquilo que são os ideais que orientam a conduta humana, que exclui o primado das paixões e os actos irrefletidos do Homem; aquilo que cada um deve valorizar individualmente e que não põe em causa os princípios sociais; ou seja, a ética republicana. Quando um homem se agiganta para além das suas convicções, com coerência e frontalidade, içando a justiça e a tolerância, o povo sai à rua. Foi isso que se viu na Igreja do Convento de S. Francisco, em Coimbra. Uma ampla manifestação de reconhecimento e dor pelo homem bom: António Arnaut.
António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
Alice Vieira.
“Olha-me como Quem Chove” é
o último livro de Alice Vieira. Há uma Alice Vieira antes e depois desta
obra-prima. Estamos na presença de uma dádiva dos deuses, de uma libação que
obrigou a Esfinge a falar. Este livro só acontece depois de uma vida cheia. É a
súmula da terra e da esperança enquanto o silêncio ganha força para renascer,
enquanto o passado reencontra o silêncio de outros passados que a memória
perpetuou. Um livro tem o prodígio de trazer as lágrimas como vírgulas, de nos
resgatar ao mundo das sombras como se quiséssemos por instantes ser Perséfone.
É um catálogo de memórias, um caleidoscópio de emoções, um passo que não tem
pressa. Às vezes é preciso parar a meio da leitura de um poema, como se
precisássemos de olhar o horizonte, como se sentíssemos dores nos joelhos, como
se o verso seguinte exigisse uns óculos emprestados de alguém da nossa idade.
Vergílio Ferreira escreveu “Em Nome da Terra”, um romance perene; e Alice
Vieira escreveu “Olha-me como Quem Chove”, uma pétala suculenta que não
envelhece. É um livro de amor quando fala da morte, das memórias, dos lugares
ou dos medos.
Vergílio Ferreira escreveu
uma frase intemporal no “Em Nome da Terra”: “O amor é aquele que a gente
encontra no outro, mais aquele que a gente lá põe para depois irmos gastando
com o tempo”. Esta escultura olímpica de Vergílio bem poderia servir de pórtico
a este “Olha-me como Quem Chove”. Às vezes, esperamos por alguém que sabemos
existir, esperamos por esse amor omnipresente que ocupa todos os lugares do
nosso corpo entre o silêncio e o esquecimento, entre a primeira luz da manhã e
a insónia, entre o imaginário de todos os “quereres” e a invisível cumplicidade
das “árvores que um dia aprenderam os nomes” que “ dando sombra ao
que/possivelmente/só elas soubessem que/andaria à deriva pelas nossas vidas”
(pg. 18). Mas há lugares que não mudam com o desenvolvimento das cidades: praças,
ruas, estátuas e lugares de namoro. Lugares de encontro, de piscar de olhos,
atrás de uma mesa de café como se Édipo soletrasse nos olhos o perfume da
paixão.
Da vida, como das viagens, apenas sabemos que começam, depois os deuses
jogam aos dados. “Nunca soube exactamente o que/seria um caminho certo” (pg.19)
mas é nessa incerteza que se constroem sonhos e a força da vida traz “o rumor
das breves noites de fevereiro em que/prometíamos nunca mais amar
ninguém/depois de nós” (pg. 20). A força do amor percorre inexplicáveis
labirintos para não nos perdermos. Ceder “a vida por desleixo” (pg.21) pode ser
uma negligência, mas é “à beira do tempo que foi nosso/e onde tudo se perdeu
menos/a memória…” (pg.22) que cresce a alfazema. O que fica depois de gastarmos
o amor na pele de cada um, a morada de querer tudo mas onde só cabe o que
sentimos, é um espaço de palavras, um poema vendado às incertezas de tanta
ausência. Sim, “só mais tarde percebi que/o nosso amor era apenas um/inquilino
temporário da nossa pele” (pg.22).
Mesmo que o amor seja eterno, ele é “apenas
um/inquilino temporário”- estamos sempre de passagem. A alfazema é uma planta
selvagem, cresce espontaneamente em qualquer lugar, resiste e multiplica-se, é
rebelde. O seu cheiro é capaz de ocupar os silêncios dos amantes quando “as
conversas sem sentido” (pg.24) são “cada vez mais” (pg.24), devolvendo o que
vai faltando ao diálogo dos que ousaram pensar: “nunca mais amar ninguém”
(pg.20) depois desse amor que parecia ser só dos dois no “caminho de Damasco”
(pg.23). Esse caminho leva-se evocar as palavras de Paulo aos Coríntios: “Ainda
que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria
como o metal que soa ou como o címbalo que retine. E ainda que tivesse o dom de
profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse
toda fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, nada
seria.E ainda que distribuísse
todos os meus bens para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo
para ser queimado, e não tivesse amor, nada disso me aproveitaria.”
Viver é seguramente o maior
dos milagres da natureza, mas a voz poética solta o murmúrio: “nunca pensei/
que morrer custasse tanto” (pg.28). Miguel Torga quando estava internado no IPO
de Coimbra e lutava pela vida, no seu último Diário, o XVI, 1993, no poema
“Arritmia” escreveu: “A vida é lenta quando a morte tem pressa”. Depois chega
esse dia em que os objectos são os últimos referentes da cumplicidade, como o
porta-chaves, as pastilhas e os retratos. Mas o pior é quando as aves nocturnas
iniciam o voo de sobrevivência, quando as sombras se fragmentam e as persianas
das janelas não distinguem as estrelas. Este livro doeu-me,
deixou-me uma nódoa no coração. Vou seguramente voltar a lê-lo, é uma carta de
amor, mesmo quando o medo toma os músculos das palavras, quando a “fogueira de
tudo o que está certo” (pg.67) é a constelação de um peregrino em viagem.
Chegar é a certeza da confissão, do “grito da terra sempre pouca/para a noite
em que ficarmos sós” (pg.67).
Alice Vieira.
“Olha-me como Quem Chove” é
o último livro de Alice Vieira. Há uma Alice Vieira antes e depois desta
obra-prima. Estamos na presença de uma dádiva dos deuses, de uma libação que
obrigou a Esfinge a falar. Este livro só acontece depois de uma vida cheia. É a
súmula da terra e da esperança enquanto o silêncio ganha força para renascer,
enquanto o passado reencontra o silêncio de outros passados que a memória
perpetuou. Um livro tem o prodígio de trazer as lágrimas como vírgulas, de nos
resgatar ao mundo das sombras como se quiséssemos por instantes ser Perséfone.
É um catálogo de memórias, um caleidoscópio de emoções, um passo que não tem pressa. Às vezes é preciso parar a meio da leitura de um poema, como se precisássemos de olhar o horizonte, como se sentíssemos dores nos joelhos, como se o verso seguinte exigisse uns óculos emprestados de alguém da nossa idade. Vergílio Ferreira escreveu “Em Nome da Terra”, um romance perene; e Alice Vieira escreveu “Olha-me como Quem Chove”, uma pétala suculenta que não envelhece. É um livro de amor quando fala da morte, das memórias, dos lugares ou dos medos.
É um catálogo de memórias, um caleidoscópio de emoções, um passo que não tem pressa. Às vezes é preciso parar a meio da leitura de um poema, como se precisássemos de olhar o horizonte, como se sentíssemos dores nos joelhos, como se o verso seguinte exigisse uns óculos emprestados de alguém da nossa idade. Vergílio Ferreira escreveu “Em Nome da Terra”, um romance perene; e Alice Vieira escreveu “Olha-me como Quem Chove”, uma pétala suculenta que não envelhece. É um livro de amor quando fala da morte, das memórias, dos lugares ou dos medos.
Vergílio Ferreira escreveu
uma frase intemporal no “Em Nome da Terra”: “O amor é aquele que a gente
encontra no outro, mais aquele que a gente lá põe para depois irmos gastando
com o tempo”. Esta escultura olímpica de Vergílio bem poderia servir de pórtico
a este “Olha-me como Quem Chove”. Às vezes, esperamos por alguém que sabemos
existir, esperamos por esse amor omnipresente que ocupa todos os lugares do
nosso corpo entre o silêncio e o esquecimento, entre a primeira luz da manhã e
a insónia, entre o imaginário de todos os “quereres” e a invisível cumplicidade
das “árvores que um dia aprenderam os nomes” que “ dando sombra ao
que/possivelmente/só elas soubessem que/andaria à deriva pelas nossas vidas”
(pg. 18). Mas há lugares que não mudam com o desenvolvimento das cidades: praças,
ruas, estátuas e lugares de namoro. Lugares de encontro, de piscar de olhos,
atrás de uma mesa de café como se Édipo soletrasse nos olhos o perfume da
paixão.
Da vida, como das viagens, apenas sabemos que começam, depois os deuses jogam aos dados. “Nunca soube exactamente o que/seria um caminho certo” (pg.19) mas é nessa incerteza que se constroem sonhos e a força da vida traz “o rumor das breves noites de fevereiro em que/prometíamos nunca mais amar ninguém/depois de nós” (pg. 20). A força do amor percorre inexplicáveis labirintos para não nos perdermos. Ceder “a vida por desleixo” (pg.21) pode ser uma negligência, mas é “à beira do tempo que foi nosso/e onde tudo se perdeu menos/a memória…” (pg.22) que cresce a alfazema. O que fica depois de gastarmos o amor na pele de cada um, a morada de querer tudo mas onde só cabe o que sentimos, é um espaço de palavras, um poema vendado às incertezas de tanta ausência. Sim, “só mais tarde percebi que/o nosso amor era apenas um/inquilino temporário da nossa pele” (pg.22).
Mesmo que o amor seja eterno, ele é “apenas um/inquilino temporário”- estamos sempre de passagem. A alfazema é uma planta selvagem, cresce espontaneamente em qualquer lugar, resiste e multiplica-se, é rebelde. O seu cheiro é capaz de ocupar os silêncios dos amantes quando “as conversas sem sentido” (pg.24) são “cada vez mais” (pg.24), devolvendo o que vai faltando ao diálogo dos que ousaram pensar: “nunca mais amar ninguém” (pg.20) depois desse amor que parecia ser só dos dois no “caminho de Damasco” (pg.23). Esse caminho leva-se evocar as palavras de Paulo aos Coríntios: “Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o címbalo que retine. E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria.E ainda que distribuísse todos os meus bens para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse amor, nada disso me aproveitaria.”
Da vida, como das viagens, apenas sabemos que começam, depois os deuses jogam aos dados. “Nunca soube exactamente o que/seria um caminho certo” (pg.19) mas é nessa incerteza que se constroem sonhos e a força da vida traz “o rumor das breves noites de fevereiro em que/prometíamos nunca mais amar ninguém/depois de nós” (pg. 20). A força do amor percorre inexplicáveis labirintos para não nos perdermos. Ceder “a vida por desleixo” (pg.21) pode ser uma negligência, mas é “à beira do tempo que foi nosso/e onde tudo se perdeu menos/a memória…” (pg.22) que cresce a alfazema. O que fica depois de gastarmos o amor na pele de cada um, a morada de querer tudo mas onde só cabe o que sentimos, é um espaço de palavras, um poema vendado às incertezas de tanta ausência. Sim, “só mais tarde percebi que/o nosso amor era apenas um/inquilino temporário da nossa pele” (pg.22).
Mesmo que o amor seja eterno, ele é “apenas um/inquilino temporário”- estamos sempre de passagem. A alfazema é uma planta selvagem, cresce espontaneamente em qualquer lugar, resiste e multiplica-se, é rebelde. O seu cheiro é capaz de ocupar os silêncios dos amantes quando “as conversas sem sentido” (pg.24) são “cada vez mais” (pg.24), devolvendo o que vai faltando ao diálogo dos que ousaram pensar: “nunca mais amar ninguém” (pg.20) depois desse amor que parecia ser só dos dois no “caminho de Damasco” (pg.23). Esse caminho leva-se evocar as palavras de Paulo aos Coríntios: “Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o címbalo que retine. E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria.E ainda que distribuísse todos os meus bens para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse amor, nada disso me aproveitaria.”
Viver é seguramente o maior
dos milagres da natureza, mas a voz poética solta o murmúrio: “nunca pensei/
que morrer custasse tanto” (pg.28). Miguel Torga quando estava internado no IPO
de Coimbra e lutava pela vida, no seu último Diário, o XVI, 1993, no poema
“Arritmia” escreveu: “A vida é lenta quando a morte tem pressa”. Depois chega
esse dia em que os objectos são os últimos referentes da cumplicidade, como o
porta-chaves, as pastilhas e os retratos. Mas o pior é quando as aves nocturnas
iniciam o voo de sobrevivência, quando as sombras se fragmentam e as persianas
das janelas não distinguem as estrelas. Este livro doeu-me,
deixou-me uma nódoa no coração. Vou seguramente voltar a lê-lo, é uma carta de
amor, mesmo quando o medo toma os músculos das palavras, quando a “fogueira de
tudo o que está certo” (pg.67) é a constelação de um peregrino em viagem.
Chegar é a certeza da confissão, do “grito da terra sempre pouca/para a noite
em que ficarmos sós” (pg.67).
António Vilhena
António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
À mesa com Miguel Torga.
Miguel Torga é sinónimo de
falar de alguns livros que atravessaram as nossas vidas. É o caso de “A Criação
do Mundo”, “Fogo Preso”, “Contos da Montanha”, “O Senhor Ventura”, “Bichos” e
“Diário”. Coimbra é uma cidade privilegiada, porque foi nela que o poeta
estudou, trabalhou e viveu. A memória de Miguel Torga confunde-se com alguns
lugares, principalmente, o seu antigo consultório no Largo da Portagem. Durante
o desfile dos Quartanistas da Queima das Fitas, era comum ver o poeta, de bata
branca, à janela com a sua companheira, Andrée Crabbé, acenando aos estudantes.
A festa chega sempre em Maio e é com saudade que me lembro de ver, na moldura
da janela, do seu consultório, Torga e Crabbé. O fotojornalista Luís Carregã
registou, ao longo dos tempos, alguns desses momentos.
Miguel Torga era um homem de
muitos requintes. A prová-lo saiu, recentemente, o livro “Sabores da Mesa na
obra de Miguel Torga”, da autoria de Dina Fernanda Ferreira de Sousa, e a
chancela da Colares Editora. Com prefácio de Eloísa Álvarez, a obra,
permite-nos uma viagem pelos ambientes e gostos do poeta, convidando-nos à
descoberta das iguarias intemporais: as sopas, as migas, a caça, o fumeiro, as
compotas, os bolos e os doces. Trata-se de um livro necessário, escrito com
rigor científico, mas numa linguagem clara e envolvente. Este estudo, que
resgata os sabores que Torga cultivava em diferentes rituais, em família ou com
os amigos, está amplamente documentado e ilumina um outro lado do poeta menos
conhecido.
A autora viaja pela obra torguiana e, com delicadeza, diz-nos que o
vinho fino era o “sol engarrafado” com que autor de os “Bichos” recebia os
amigos. Ao longo da viagem de cento e cinquenta páginas, Dina de Sousa leva-nos
pela mão aos lugares de afectos, às paisagens, aos nomes dos amigos, como
António Arnaut, Cristóvão de Aguiar ou, ainda, Maria da Conceição Morais
Sarmento. Através deste livro ficamos a saber que torga gostava de pão caseiro,
vinho à lavrador, arroz de carqueja, vitela na púcara e de perdiz à prior. Se é
verdade que a memória dos sabores nos persegue, como disse António Arnaut, esta
obra deixa-nos as impressões do poeta com o escritor Jorge Amada: “Almoço com
Jorge Amado. Perdiz brava de Montesinho, posta mirandesa e tinto maduro do
Douro(…) três horas íntimas, simples, fraternas, sem literatura, só gustativas,
de preito e comunhão”(pg. 29).
Também, nas festividades, as frugalidades são as
rabanadas do Natal, o folar da Páscoa, licores, vinho e aguardente. É preciso
lembrar que Torga era caçador, actividade que cultivou, durante muito tempo, ao
lado do seu amigo Padre Valentim. “De espingarda em punho, a sentir o chão nos
pés, o vento na cara, a luz nos olhos, e a ler no rabo do cão, radar incansável
e certeiro, o movimento invisível da perdiz ou da galinhola” (pg.42).
A festa da matança do porco
constituía uma memória que Miguel Torga gostava de evocar: “Para matar,
chamuscar, limpar, abrir, desmanchar, guardar o sangue, fazer enchidos, cortar
os pedaços de carne ou de toucinho, separar espáduas e corozis, formiga toda
uma multidão atarefada, mas viva e alegre”(pg.35). Esse animal “o porco criado
e cevado com desvelos de que gozam poucos humanos, lá está a sangrar no banco
do sacrifício (…) impressionou-me sempre na vida aldeã este cerimonial
doméstico, que acaba por deixar morto, de pernas para o ar, pendurado na trave
da casa”(pg.35).
“Sabores da Mesa na obra de
Miguel Torga” dedica mais de cem páginas a receitas de iguarias que o poeta
apreciava. Desde o caldo verde, caldo de castanhas, migas de cavalo cansado,
sopa de torresmos ou sopa de carolos. Destaco, ainda, o bacalhau assado com pão
de centeio, sardinhas borrachonas, codornizes estufadas, galinha tostada com
arroz de forno ou lebre de vinho tinto. E para terminar o menu: a tigelada, a
regueifa doce ou o doce de abóbora. Para Miguel Torga, “comer é um acto de
cultura. O civilizado alimenta-se; o selvagem enfarta-se”. Este é um livro
imprescindível para reconhecer e reencontrar o poeta nos “sabores da mesa”.
António Vilhena
À mesa com Miguel Torga.
Miguel Torga é sinónimo de
falar de alguns livros que atravessaram as nossas vidas. É o caso de “A Criação
do Mundo”, “Fogo Preso”, “Contos da Montanha”, “O Senhor Ventura”, “Bichos” e
“Diário”. Coimbra é uma cidade privilegiada, porque foi nela que o poeta
estudou, trabalhou e viveu. A memória de Miguel Torga confunde-se com alguns
lugares, principalmente, o seu antigo consultório no Largo da Portagem. Durante
o desfile dos Quartanistas da Queima das Fitas, era comum ver o poeta, de bata
branca, à janela com a sua companheira, Andrée Crabbé, acenando aos estudantes.
A festa chega sempre em Maio e é com saudade que me lembro de ver, na moldura
da janela, do seu consultório, Torga e Crabbé. O fotojornalista Luís Carregã
registou, ao longo dos tempos, alguns desses momentos.
Miguel Torga era um homem de
muitos requintes. A prová-lo saiu, recentemente, o livro “Sabores da Mesa na
obra de Miguel Torga”, da autoria de Dina Fernanda Ferreira de Sousa, e a
chancela da Colares Editora. Com prefácio de Eloísa Álvarez, a obra,
permite-nos uma viagem pelos ambientes e gostos do poeta, convidando-nos à
descoberta das iguarias intemporais: as sopas, as migas, a caça, o fumeiro, as
compotas, os bolos e os doces. Trata-se de um livro necessário, escrito com
rigor científico, mas numa linguagem clara e envolvente. Este estudo, que
resgata os sabores que Torga cultivava em diferentes rituais, em família ou com
os amigos, está amplamente documentado e ilumina um outro lado do poeta menos
conhecido.
A autora viaja pela obra torguiana e, com delicadeza, diz-nos que o
vinho fino era o “sol engarrafado” com que autor de os “Bichos” recebia os
amigos. Ao longo da viagem de cento e cinquenta páginas, Dina de Sousa leva-nos
pela mão aos lugares de afectos, às paisagens, aos nomes dos amigos, como
António Arnaut, Cristóvão de Aguiar ou, ainda, Maria da Conceição Morais
Sarmento. Através deste livro ficamos a saber que torga gostava de pão caseiro,
vinho à lavrador, arroz de carqueja, vitela na púcara e de perdiz à prior. Se é
verdade que a memória dos sabores nos persegue, como disse António Arnaut, esta
obra deixa-nos as impressões do poeta com o escritor Jorge Amada: “Almoço com
Jorge Amado. Perdiz brava de Montesinho, posta mirandesa e tinto maduro do
Douro(…) três horas íntimas, simples, fraternas, sem literatura, só gustativas,
de preito e comunhão”(pg. 29).
Também, nas festividades, as frugalidades são as
rabanadas do Natal, o folar da Páscoa, licores, vinho e aguardente. É preciso
lembrar que Torga era caçador, actividade que cultivou, durante muito tempo, ao
lado do seu amigo Padre Valentim. “De espingarda em punho, a sentir o chão nos
pés, o vento na cara, a luz nos olhos, e a ler no rabo do cão, radar incansável
e certeiro, o movimento invisível da perdiz ou da galinhola” (pg.42).
A festa da matança do porco
constituía uma memória que Miguel Torga gostava de evocar: “Para matar,
chamuscar, limpar, abrir, desmanchar, guardar o sangue, fazer enchidos, cortar
os pedaços de carne ou de toucinho, separar espáduas e corozis, formiga toda
uma multidão atarefada, mas viva e alegre”(pg.35). Esse animal “o porco criado
e cevado com desvelos de que gozam poucos humanos, lá está a sangrar no banco
do sacrifício (…) impressionou-me sempre na vida aldeã este cerimonial
doméstico, que acaba por deixar morto, de pernas para o ar, pendurado na trave
da casa”(pg.35).
“Sabores da Mesa na obra de
Miguel Torga” dedica mais de cem páginas a receitas de iguarias que o poeta
apreciava. Desde o caldo verde, caldo de castanhas, migas de cavalo cansado,
sopa de torresmos ou sopa de carolos. Destaco, ainda, o bacalhau assado com pão
de centeio, sardinhas borrachonas, codornizes estufadas, galinha tostada com
arroz de forno ou lebre de vinho tinto. E para terminar o menu: a tigelada, a
regueifa doce ou o doce de abóbora. Para Miguel Torga, “comer é um acto de
cultura. O civilizado alimenta-se; o selvagem enfarta-se”. Este é um livro
imprescindível para reconhecer e reencontrar o poeta nos “sabores da mesa”.
António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
O CISNE SEM PESCOÇO.
Devia ser proibido aos loucos tomarem o poder. Mas a verdade
é que a História está repleta de maus e trágicos exemplos. Há quem diga que a
pior das loucuras é o próprio poder, um afrodisíaco compulsivo que gera fome
insaciável e corrompe os sentidos. Muitas vezes usa-se a Lei para cercear os
mais elementares direitos, usa-se a demagogia para manipular a opinião pública
e usa-se o esgoto para regar o jardim. As flores que nascem não recusam a água
suja, mas o jardineiro, que sabe a origem da rega, não ignora que o viço das
flores esconde a mais putrefacta fonte. É o que acontece quando se usa a Lei
mas não se faz justiça. Rega-se, mas o que floresce resulta da retórica urdida
onde as “evidências” condenam, dispensando as provas, e o arguido é condenado
por “indução."
Qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência. Os
loucos dissimulam os seus ímpetos até conquistarem o poder e os caudilhos acham
que o mundo só existe por causa deles: são míopes de umbigo dilatado e surdos
de corpo inteiro. Um cisne deve ter pescoço alto para que a sua beleza possa
inspirar os que sonham vencer as ambições mundanas, estimular as utopias,
mobilizar as mais nobres causas e unir os que, sendo diferentes, são irmãos
neste planeta onde as diferenças adicionam o que há de mais fascinante entre
nós. Um cisne deve ter pescoço alto para inspirar os que acreditam na beleza
das Artes e, assim, receberem da mão gigante dos deuses, que tudo podem e nada
esquecem, a luz da sabedoria. Um cisne representa o voo e a beleza das
fragilidades e, por isso, devia servir de inspiração aos que usam a sobranceria
e a altivez.
Estou a pensar no presidente do meu Sporting Clube de Portugal,
que parece sempre zangado com tudo e com todos. É inaceitável o seu
comportamento truculento e deselegante, como se o Clube fosse seu, como se o
Sporting não tivesse história, como se precisássemos de ter um “bombista” para
implodir a memória dos que fizeram daquela grande instituição um clube
eclético. Ser presidente é ter obrigações e deveres: unir o clube e criar
condições para que os protagonistas possam ser cisnes. Mas quando se confunde
um cisne com um narciso, qualquer brisa é considerada uma ameaça. A idade, só
por si, significa pouco quando o bom senso impera. Bruno de Carvalho pode ter
uma gestão positiva, mas atingiu um nível de conflitualidade que é insustentável,
sendo parte do problema e não da solução.
Ao longo da sua gestão foram
manifestos os tiques fascizantes, que nunca escondeu, nomeadamente na última
assembleia de sócios, onde exigiu que os sportinguistas escolhessem entre ele
ou o caos. Às vezes é preciso o caos, é necessário renascer e retirar do
caminho os abcessos que teimam em deformar as organizações. Os seus defensores
podem vir com uma folha de Excel falar das virtudes do seu mandato, mas o seu
comportamento destrói tudo o que de bom tenha feito. É insustentável, por mais
tempo, dar guarida a um incendiário que não respeita a memória e se assume como
o paladino da verdade. O mundo está repleto de salvadores que não sabem cuidar
de si próprios e prometem o paraíso a quem os seguir. Quero ver Bruno de
Carvalho sair pela porta, sem ódios nem vinganças. A instituição Sporting
continuará a ser grande e a servir Portugal.
O CISNE SEM PESCOÇO.
Qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência. Os
loucos dissimulam os seus ímpetos até conquistarem o poder e os caudilhos acham
que o mundo só existe por causa deles: são míopes de umbigo dilatado e surdos
de corpo inteiro. Um cisne deve ter pescoço alto para que a sua beleza possa
inspirar os que sonham vencer as ambições mundanas, estimular as utopias,
mobilizar as mais nobres causas e unir os que, sendo diferentes, são irmãos
neste planeta onde as diferenças adicionam o que há de mais fascinante entre
nós. Um cisne deve ter pescoço alto para inspirar os que acreditam na beleza
das Artes e, assim, receberem da mão gigante dos deuses, que tudo podem e nada
esquecem, a luz da sabedoria. Um cisne representa o voo e a beleza das
fragilidades e, por isso, devia servir de inspiração aos que usam a sobranceria
e a altivez.
Estou a pensar no presidente do meu Sporting Clube de Portugal,
que parece sempre zangado com tudo e com todos. É inaceitável o seu
comportamento truculento e deselegante, como se o Clube fosse seu, como se o
Sporting não tivesse história, como se precisássemos de ter um “bombista” para
implodir a memória dos que fizeram daquela grande instituição um clube
eclético. Ser presidente é ter obrigações e deveres: unir o clube e criar
condições para que os protagonistas possam ser cisnes. Mas quando se confunde
um cisne com um narciso, qualquer brisa é considerada uma ameaça. A idade, só
por si, significa pouco quando o bom senso impera. Bruno de Carvalho pode ter
uma gestão positiva, mas atingiu um nível de conflitualidade que é insustentável,
sendo parte do problema e não da solução.
Ao longo da sua gestão foram
manifestos os tiques fascizantes, que nunca escondeu, nomeadamente na última
assembleia de sócios, onde exigiu que os sportinguistas escolhessem entre ele
ou o caos. Às vezes é preciso o caos, é necessário renascer e retirar do
caminho os abcessos que teimam em deformar as organizações. Os seus defensores
podem vir com uma folha de Excel falar das virtudes do seu mandato, mas o seu
comportamento destrói tudo o que de bom tenha feito. É insustentável, por mais
tempo, dar guarida a um incendiário que não respeita a memória e se assume como
o paladino da verdade. O mundo está repleto de salvadores que não sabem cuidar
de si próprios e prometem o paraíso a quem os seguir. Quero ver Bruno de
Carvalho sair pela porta, sem ódios nem vinganças. A instituição Sporting
continuará a ser grande e a servir Portugal.
António Vilhena
António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
O
ÚLTIMO PRÍNCIPE DA BAIXA.
A
história das cidades não está apenas nos museus, mas nas ruas, nas casas, nas
estórias, nas tertúlias. Não digo que tenho saudades, apenas me lembro como o
tempo mudou o que era inevitável. Mas entre tantas mudanças há registos da fita
do tempo que resistem à memória. Quando cheguei a Coimbra, em 1984, caloiro e
inocente, encontrei uma Coimbra romântica e fervilhante de academismo, de gente
com livros debaixo do braço, de cafés onde se podia estudar a troco de quase
nada. Entre eles destaco os cafés desaparecidos: Internacional, Arcádia,
Brasileira e Central – a nova Brasileira apenas herdou o nome. Depois havia
espaços de culto como as livrarias Bertrand e Almedina na rua Ferreira Borges.
A Bertrand tinha um livreiro Felisberto Lemos que era uma lenda, cultíssimo e
quem Manuel dedicou o poema “Livreiro da esperança” no livro “Praça da Canção”;
na Almedina perorava o inesquecível Joaquim Machado, homem de visão e amigo dos
livros e dos autores. Dessa cumplicidade sobra a “Loja das Meias”, a
reminiscência que resiste na Rua Ferreira Borges como um ícone do tempo. A
Galeria do Primeiro de Janeiro, onde conheci o pintor Mário Silva, estava ainda
em atividade. Na livraria Bertrand havia uma estante só com livros de Miguel
Torga. Uma vez perguntei ao Felisberto a razão daquela estante ter só livros de
Miguel Torga. Quase em segredo foi dizendo que eram livros que o poeta trazia
para a troca, quando ia comprar outros livros. Comecei a dar mais atenção a
essa estante, pois era possível encontrar títulos raros do autor de “Bichos”.
Essa estante só desapareceu depois da morte do poeta. Havia uma relação muito
forte entre os livreiros de Coimbra e os escritores. O termo “livreiro” remonta
ao século XVI e servia para designar “os promotores das cópias destinadas à
venda". Aqui fica o registo de algumas livrarias conhecidas, em Coimbra,
no século vinte: Livraria Moura Marques, Livraria Moderna e Livraria Cunha,
Livraria Neves, Livraria Académica, Coimbra Editora, Casa do Castelo Editora, Livraria
Gráfica Conimbricense, Livraria e Tipografia Editora Atlântica, Livraria
Gonçalves, Académica Editora, Livraria Santa Cruz, Livraria Portugália,
Livraria Luso-Espanhola e Livraria Arcádia. Desse passado resiste a Livraria
Bertrand e a Loja das Meias. E se insisto nesta última é porque o seu
proprietário é o clarão vivo desse passado. O senhor Cândido Carvalho, homem
educado e de trato irrepreensível, é, ainda, o sopro de uma geração de
comerciantes que conheceram o esplendor da Baixa da cidade. Excelente conversador
e protagonista de muitas histórias, o senhor Carvalho, como é conhecido, é o
último príncipe de uma geração de ouro. Certo dia entra na sua “Loja das Meias”
o escritor Baptista Bastos interessado em ver laços.
O senhor Carvalho
reconheceu-o de imediato. Quando o escritor ia pagar o laço, o senhor Carvalho
disse-lhe que estava pago. Baptista Bastos perguntou-lhe: quem pagou? A
resposta não se fez esperar: “foi um tal de Carvalho”. O Baptista Bastos fez
silêncio e reagiu: É sempre o mesmo, o meu amigo Montezuma de Carvalho.
Enquanto o escritor se despedia, o senhor Carvalho ria. Esta é uma história
fabulosa entre tantas outras que mereciam, também, ser contadas. A livraria de
Miguel Carvalho encerrou recentemente, um livreiro que é, também um poeta, um
editor, um homem de cultura. A sua livraria irá juntar-se às imensas livrarias
que cito nesta crónica e que não resistiram às leis do mercado. Não basta
defendermos causas justas para sermos felizes, é preciso que, também, sejamos
felizes quando perdemos certas causas.
António Vilhena
O ÚLTIMO PRÍNCIPE DA BAIXA.
A
história das cidades não está apenas nos museus, mas nas ruas, nas casas, nas
estórias, nas tertúlias. Não digo que tenho saudades, apenas me lembro como o
tempo mudou o que era inevitável. Mas entre tantas mudanças há registos da fita
do tempo que resistem à memória. Quando cheguei a Coimbra, em 1984, caloiro e
inocente, encontrei uma Coimbra romântica e fervilhante de academismo, de gente
com livros debaixo do braço, de cafés onde se podia estudar a troco de quase
nada. Entre eles destaco os cafés desaparecidos: Internacional, Arcádia,
Brasileira e Central – a nova Brasileira apenas herdou o nome. Depois havia
espaços de culto como as livrarias Bertrand e Almedina na rua Ferreira Borges.
A Bertrand tinha um livreiro Felisberto Lemos que era uma lenda, cultíssimo e
quem Manuel dedicou o poema “Livreiro da esperança” no livro “Praça da Canção”;
na Almedina perorava o inesquecível Joaquim Machado, homem de visão e amigo dos
livros e dos autores. Dessa cumplicidade sobra a “Loja das Meias”, a
reminiscência que resiste na Rua Ferreira Borges como um ícone do tempo. A
Galeria do Primeiro de Janeiro, onde conheci o pintor Mário Silva, estava ainda
em atividade. Na livraria Bertrand havia uma estante só com livros de Miguel
Torga. Uma vez perguntei ao Felisberto a razão daquela estante ter só livros de
Miguel Torga. Quase em segredo foi dizendo que eram livros que o poeta trazia
para a troca, quando ia comprar outros livros. Comecei a dar mais atenção a
essa estante, pois era possível encontrar títulos raros do autor de “Bichos”.
Essa estante só desapareceu depois da morte do poeta. Havia uma relação muito
forte entre os livreiros de Coimbra e os escritores. O termo “livreiro” remonta
ao século XVI e servia para designar “os promotores das cópias destinadas à
venda". Aqui fica o registo de algumas livrarias conhecidas, em Coimbra,
no século vinte: Livraria Moura Marques, Livraria Moderna e Livraria Cunha,
Livraria Neves, Livraria Académica, Coimbra Editora, Casa do Castelo Editora, Livraria
Gráfica Conimbricense, Livraria e Tipografia Editora Atlântica, Livraria
Gonçalves, Académica Editora, Livraria Santa Cruz, Livraria Portugália,
Livraria Luso-Espanhola e Livraria Arcádia. Desse passado resiste a Livraria
Bertrand e a Loja das Meias. E se insisto nesta última é porque o seu
proprietário é o clarão vivo desse passado. O senhor Cândido Carvalho, homem
educado e de trato irrepreensível, é, ainda, o sopro de uma geração de
comerciantes que conheceram o esplendor da Baixa da cidade. Excelente conversador
e protagonista de muitas histórias, o senhor Carvalho, como é conhecido, é o
último príncipe de uma geração de ouro. Certo dia entra na sua “Loja das Meias”
o escritor Baptista Bastos interessado em ver laços.
O senhor Carvalho
reconheceu-o de imediato. Quando o escritor ia pagar o laço, o senhor Carvalho
disse-lhe que estava pago. Baptista Bastos perguntou-lhe: quem pagou? A
resposta não se fez esperar: “foi um tal de Carvalho”. O Baptista Bastos fez
silêncio e reagiu: É sempre o mesmo, o meu amigo Montezuma de Carvalho.
Enquanto o escritor se despedia, o senhor Carvalho ria. Esta é uma história
fabulosa entre tantas outras que mereciam, também, ser contadas. A livraria de
Miguel Carvalho encerrou recentemente, um livreiro que é, também um poeta, um
editor, um homem de cultura. A sua livraria irá juntar-se às imensas livrarias
que cito nesta crónica e que não resistiram às leis do mercado. Não basta
defendermos causas justas para sermos felizes, é preciso que, também, sejamos
felizes quando perdemos certas causas.
António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
Clotilde
Fava e Trópico de Câncer.
Coimbra
é a cidade de encontros, de probabilidades e de grandes paixões. A sua história
dispensa qualquer introdução que não seja amá-la. Habituou-nos à surpresa, ao
agigantamento, pese embora, a crítica fácil e destrutiva. Mas a sua grandeza
inclui a tolerância e releva as línguas viperinas que persistem numa miopia de
tendência única. Infelizmente, sabemos que fazer bem é um exercício que exige
diálogo e disponibilidade. Acontece que, muitas vezes, nenhuma destas variáveis
estão presentes quando se trata de agigantar a cidade da Rainha Santa Isabel.
Coimbra está, inequivocamente, nas rotas da modernidade, foi exemplo a Geração
de 70, quando as novidades chegavam de Paris no comboio da Beira Alta.
A
secular Universidade de Coimbra projetou o nome da cidade, mas a
contemporaneidade exige o “regresso” da sua diáspora cultural. As influências
do seu universalismo ligam-nos diretamente à independência do Brasil e aos
países irmãos de África. No Museu do Chiado, em Coimbra, está patente uma
exposição da artista Clotilde Fava que exige uma visita. Se digo exige, é
porque a considero um acontecimento cultural relevante. Corro o risco de me
repetir, mas as obras expostas são uma viagem pelas reminiscências culturais
que o universalismo português soube cultivar ao longo dos séculos. As cores fortes
de África, emprestam às mulheres, que carregam um quotidiano difícil, a
expressão de resistência que as ajuda a vencerem as trevas e as dificuldades.
O
tempo e o espaço são partilhados com animais domésticos e de criação, pertencem
ao círculo íntimo da família, estabelecem diálogos afetivos, cultivam relações
de vizinhança e de proximidade, devolvem um conceito de liberdade onde a
existência é a possibilidade de uma Arca de Noé sem exclusões. O perfume da
terra escura mistura-se com as tintas, dá aroma psicológico à pigmentação,
metamorfoseia-se no erotismo, alimenta uma narrativa que adquire vida na
expressão feminina, não feminista, nos corpos retratadas. Clotilde Faca
frequentou a Escola Superior de Belas Artes de Lisboa - Curso de Escultura –
1962, é membro das Associações: Sociedade de Belas Artes de Lisboa, Cooperativa
Árvore, Porto, Círculo de Bellas Artes de Madrid. “Para Além do Trópico de
Câncer” traz-nos a vivência de Angola, o apego à cultura do sul: Cabo Verde e o
Alentejo.
As figuras retratadas habitam o nosso imaginário colectivo,
misturam-se com os mitos, a água e o fogo, elementos de outras cosmogonias,
antes dos deuses se apropriarem do amor. A paleta de emoções que a exposição de
Clotilde Fava proporciona é uma espécie de casa em mudança: queremos ver tudo
em simultâneo com receio de não ter tempo, ou, ainda, um parece que já vimos
tudo em cada tela, porque o seu traço é identificado em todas as suas obras.
Temos pressa de ver e depois demoramo-nos a saborear os olhos grandes, os seios,
os lábios grossos, os braços volumosos, os cabelos amanhados, as cores vivas, o
antropomorfismo dos galos, dos peixes, a sexualidade. As obras expostas são as
joias da artista, o caleidoscópio do seu templo íntimo. A prova do que afirmo
está no exemplo de uma tela exposta, que a artista voltou a comprar a um
particular, para a devolver ao seu templo. É uma oportunidade ver as obras de
Clotilde Fava, em Coimbra, uma artista que já expôs em Itália, Argentina,
Alemanha, China, França, Macau, Inglaterra e em quase todas as cidades de
Portugal.
António Vilhena
Clotilde
Fava e Trópico de Câncer.
Coimbra
é a cidade de encontros, de probabilidades e de grandes paixões. A sua história
dispensa qualquer introdução que não seja amá-la. Habituou-nos à surpresa, ao
agigantamento, pese embora, a crítica fácil e destrutiva. Mas a sua grandeza
inclui a tolerância e releva as línguas viperinas que persistem numa miopia de
tendência única. Infelizmente, sabemos que fazer bem é um exercício que exige
diálogo e disponibilidade. Acontece que, muitas vezes, nenhuma destas variáveis
estão presentes quando se trata de agigantar a cidade da Rainha Santa Isabel.
Coimbra está, inequivocamente, nas rotas da modernidade, foi exemplo a Geração
de 70, quando as novidades chegavam de Paris no comboio da Beira Alta.
A
secular Universidade de Coimbra projetou o nome da cidade, mas a
contemporaneidade exige o “regresso” da sua diáspora cultural. As influências
do seu universalismo ligam-nos diretamente à independência do Brasil e aos
países irmãos de África. No Museu do Chiado, em Coimbra, está patente uma
exposição da artista Clotilde Fava que exige uma visita. Se digo exige, é
porque a considero um acontecimento cultural relevante. Corro o risco de me
repetir, mas as obras expostas são uma viagem pelas reminiscências culturais
que o universalismo português soube cultivar ao longo dos séculos. As cores fortes
de África, emprestam às mulheres, que carregam um quotidiano difícil, a
expressão de resistência que as ajuda a vencerem as trevas e as dificuldades.
O
tempo e o espaço são partilhados com animais domésticos e de criação, pertencem
ao círculo íntimo da família, estabelecem diálogos afetivos, cultivam relações
de vizinhança e de proximidade, devolvem um conceito de liberdade onde a
existência é a possibilidade de uma Arca de Noé sem exclusões. O perfume da
terra escura mistura-se com as tintas, dá aroma psicológico à pigmentação,
metamorfoseia-se no erotismo, alimenta uma narrativa que adquire vida na
expressão feminina, não feminista, nos corpos retratadas. Clotilde Faca
frequentou a Escola Superior de Belas Artes de Lisboa - Curso de Escultura –
1962, é membro das Associações: Sociedade de Belas Artes de Lisboa, Cooperativa
Árvore, Porto, Círculo de Bellas Artes de Madrid. “Para Além do Trópico de
Câncer” traz-nos a vivência de Angola, o apego à cultura do sul: Cabo Verde e o
Alentejo.
As figuras retratadas habitam o nosso imaginário colectivo,
misturam-se com os mitos, a água e o fogo, elementos de outras cosmogonias,
antes dos deuses se apropriarem do amor. A paleta de emoções que a exposição de
Clotilde Fava proporciona é uma espécie de casa em mudança: queremos ver tudo
em simultâneo com receio de não ter tempo, ou, ainda, um parece que já vimos
tudo em cada tela, porque o seu traço é identificado em todas as suas obras.
Temos pressa de ver e depois demoramo-nos a saborear os olhos grandes, os seios,
os lábios grossos, os braços volumosos, os cabelos amanhados, as cores vivas, o
antropomorfismo dos galos, dos peixes, a sexualidade. As obras expostas são as
joias da artista, o caleidoscópio do seu templo íntimo. A prova do que afirmo
está no exemplo de uma tela exposta, que a artista voltou a comprar a um
particular, para a devolver ao seu templo. É uma oportunidade ver as obras de
Clotilde Fava, em Coimbra, uma artista que já expôs em Itália, Argentina,
Alemanha, China, França, Macau, Inglaterra e em quase todas as cidades de
Portugal.
António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
João
Varela Gomes.
A
morte de João Varela Gomes (1924 -2018) traz-me à memória um episódio
significativo: o assalto ao quartel de Beja, na madrugada de 1 de Janeiro de
1962. Um dia o meu pai, já eu era adolescente, contou-me uma história
fantástica: “Eu trabalhava no Hospital da Santa Casa da Misericórdia, em Beja,
quando se deu o assalto ao quartel. Nessa noite entraram muito feridos, mas
houve um deles que vinha mesmo mal. Ele entrou pela porta da carvoaria para não
ser registado. Estava a sangrar muito e com dores. Ele pensava que ia morrer,
pediu-me ajuda. Eu fiquei junto dele, sem saber o que fazer. Fui buscar
compressas e lavei-lhe as feridas – isto tudo na carvoaria. Fiquei ali algum
tempo e ele perguntou-me se era casado, se tinha filhos. Disse que tinha um
filho com um ano. - Então, amanhã, se puderes traz-me o teu filho para o ver.
No dia seguinte, assim fiz. Ele começou a chorar quando te viu ao meu colo. No
final disse-me: Já posso morrer. Nunca mais me esqueço disso. Ele pensava que
ia morrer. Esse homem chamava-se Varela Gomes”.
Muitos
anos mais tarde, em Beja, reconheci-o num café com amigos, de que destaco o
antifascista João Honrado. Aproximei-me e disse que tinha uma história para lhe
contar. Reproduzi o que o meu pai me contou anos antes. No final, ele não resistiu,
sucumbiu num mar de lágrimas inacreditável, abraçou-me e mandou-me sentar.
Fiquei ali, no café Luís da Rocha, entre homens de barba rija, que sabiam o que
era a luta contra a ditadura e que tinham sofrido na pele todas as torturas.
Por exemplo, o João Honrado, era um homem gigante e de voz grossa, passou mais
de vinte anos nas prisões sujeito à tortura do sono e outras indizíveis. De vez
em quando, o Coronel Varela Gomes dava-me uma palmadinha nas costas, a sua
maneira de me lembrar que havia uma cumplicidade que nos ligava à vida. Foi
para mim um dos momentos mais extraordinários, uma lição de história, de
heroísmo e de solidariedade.
O
Coronel Varela Gomes foi um homem de carácter, determinado e solidário. A força
das suas convicções não lhe trouxe mordomias depois do 25 de Abril de 1974.
Pelo contrário, em 1975 viu-se obrigado ao exílio. Durante o fascismo foi
condenado a seis anos de prisão, tendo cumprido a pena na Penitenciária, Aljube
e Peniche. Apoiante desde a primeira hora da candidatura de Humberto Delgado,
em 1958, atravessou a resistência ao antigo regime ao lado da sua mulher, Maria
Eugénia, ela também prisioneira política, já com quatro filhos menores. Foi ele
que em 1974 mudou o nome de “Ponte Salazar “ para “Ponte 25 de Abril”.
O filho
mais velho – já falecido -, o escritor Paulo Varela Gomes escrevia no
“Público”, em 2012: "Lembro-me: a minha mãe, a quem não deixaram abraçar
os filhos pequenos, encharcando com lágrimas os punhos cerrados de fúria com
que agarrava as grades do parlatório de Caxias. O nosso terror. O meu pai, numa
cela da Penitenciária de Lisboa, entubado, magríssimo, a voz quase apagada, um
fantasma desvanecido contra a luz da janela". Não
pedimos para nascer em lugar nenhum, mas Beja, minha pátria de berço, deu-me,
também, o privilégio de ter esta história fantástica que o tempo perpetuará
para que os meus filhos a possam contar aos meus netos.
António Vilhena
João Varela Gomes.
A
morte de João Varela Gomes (1924 -2018) traz-me à memória um episódio
significativo: o assalto ao quartel de Beja, na madrugada de 1 de Janeiro de
1962. Um dia o meu pai, já eu era adolescente, contou-me uma história
fantástica: “Eu trabalhava no Hospital da Santa Casa da Misericórdia, em Beja,
quando se deu o assalto ao quartel. Nessa noite entraram muito feridos, mas
houve um deles que vinha mesmo mal. Ele entrou pela porta da carvoaria para não
ser registado. Estava a sangrar muito e com dores. Ele pensava que ia morrer,
pediu-me ajuda. Eu fiquei junto dele, sem saber o que fazer. Fui buscar
compressas e lavei-lhe as feridas – isto tudo na carvoaria. Fiquei ali algum
tempo e ele perguntou-me se era casado, se tinha filhos. Disse que tinha um
filho com um ano. - Então, amanhã, se puderes traz-me o teu filho para o ver.
No dia seguinte, assim fiz. Ele começou a chorar quando te viu ao meu colo. No
final disse-me: Já posso morrer. Nunca mais me esqueço disso. Ele pensava que
ia morrer. Esse homem chamava-se Varela Gomes”.
Muitos
anos mais tarde, em Beja, reconheci-o num café com amigos, de que destaco o
antifascista João Honrado. Aproximei-me e disse que tinha uma história para lhe
contar. Reproduzi o que o meu pai me contou anos antes. No final, ele não resistiu,
sucumbiu num mar de lágrimas inacreditável, abraçou-me e mandou-me sentar.
Fiquei ali, no café Luís da Rocha, entre homens de barba rija, que sabiam o que
era a luta contra a ditadura e que tinham sofrido na pele todas as torturas.
Por exemplo, o João Honrado, era um homem gigante e de voz grossa, passou mais
de vinte anos nas prisões sujeito à tortura do sono e outras indizíveis. De vez
em quando, o Coronel Varela Gomes dava-me uma palmadinha nas costas, a sua
maneira de me lembrar que havia uma cumplicidade que nos ligava à vida. Foi
para mim um dos momentos mais extraordinários, uma lição de história, de
heroísmo e de solidariedade.
O
Coronel Varela Gomes foi um homem de carácter, determinado e solidário. A força
das suas convicções não lhe trouxe mordomias depois do 25 de Abril de 1974.
Pelo contrário, em 1975 viu-se obrigado ao exílio. Durante o fascismo foi
condenado a seis anos de prisão, tendo cumprido a pena na Penitenciária, Aljube
e Peniche. Apoiante desde a primeira hora da candidatura de Humberto Delgado,
em 1958, atravessou a resistência ao antigo regime ao lado da sua mulher, Maria
Eugénia, ela também prisioneira política, já com quatro filhos menores. Foi ele
que em 1974 mudou o nome de “Ponte Salazar “ para “Ponte 25 de Abril”.
O filho
mais velho – já falecido -, o escritor Paulo Varela Gomes escrevia no
“Público”, em 2012: "Lembro-me: a minha mãe, a quem não deixaram abraçar
os filhos pequenos, encharcando com lágrimas os punhos cerrados de fúria com
que agarrava as grades do parlatório de Caxias. O nosso terror. O meu pai, numa
cela da Penitenciária de Lisboa, entubado, magríssimo, a voz quase apagada, um
fantasma desvanecido contra a luz da janela". Não
pedimos para nascer em lugar nenhum, mas Beja, minha pátria de berço, deu-me,
também, o privilégio de ter esta história fantástica que o tempo perpetuará
para que os meus filhos a possam contar aos meus netos.
António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
“Hora
pequena”
Há
expressões que resumem séculos de sabedoria popular, são a condensação de
muitas gerações que sintetizaram as aprendizagens. Ao longo da vida, ouvimos
provérbios que parecem feitos para ilustrarem quase tudo, são a síntese da voz
colectiva. Isso acontece em quase todas as áreas. Por exemplo, na agricultura:
“tudo vem no seu tempo e o nabal pelo advento”, “caindo o Natal à
segunda-feira, pode o lavrador alugar a eira”, “sete nevadas e um nevão dão
muito pão” ou, ainda, “quem vareja antes do Natal deixa o azeite no olival”.
Mas a mais estranha das expressões é a “hora pequena” que é desejada quando uma
mulher está grávida. Ou seja, deseja-se que o bebé saia de patins ou de esquis,
de preferência sem tocar à campainha. Quem viu a série dos Monty Phyton deve lembrar-se
daquele sketch da dama irlandesa que, enquanto passava a ferro, o filho decide
cair. Não vejo nada mais ilustrador da hora pequena, a não ser na política.
O
que ontem era, logo já não é; ou, ainda, “fui convidada e desconvidada”. Em
política os provérbios mais adequados serão: “quem com ferros mata, com ferros
morre” ou “quem semeia ventos, colhe tempestades”. Todos conhecemos situações
que ilustram estas curtas frases. Infelizmente temos uma galeria cheia de maus
exemplos que fazemos questão de esquecer. Não há melhor resposta do que a
indiferença e o esquecimento. Na verdade, é muito comum a deslealdade. Em
política a incoerência e a falta de solidariedade podem ter juros elevados. Não
se pode estar bem com Deus e com o Diabo, eles são incompatíveis e,
principalmente, não jogam aos dados. A coerência é, em política, o “ethos” que
deve servir de referência.
A “hora pequena” bem podia ser a “porta pequena”.
Respigando um provérbio agrícola para a política, diria que “talo sem espiga
não pode dar farinha”. Nestes tempos de grandes e pequenos desvios, a ironia e
o humor parecem afigurar-se como a receita mais adequada para interpretarmos os
fundamentalismos - são todos maus, porque ocupam territórios de exclusão em
nome de reivindicações aparentemente justas. Há neste momento uma autocensura
em relação a determinados temas, porque os “puros”, diga-se os hipócritas,
funcionam como corporações ofendidas, legitimadas pelo “sangue-azul da
linhagem”. São justiceiros sem acusação, denunciadores com selo de vingança e
oportunistas sem escrúpulos. Pelo meio há, com toda a certeza, aquele(a)s que
têm razões e que devem ser protegido(a)s.
Não há pachorra para tantos “ismos” e
bonecas loiras. A poeira há-de assentar e a indústria da hipocrisia terá tempo
para reescrever a sua história, não ocultando as estórias que não chegam à
ribalta. A “hora pequena” pode servir de exemplo semântico aos que têm pressa
em mudar de vida. Às vezes, é preciso começar de novo, avaliar e mudar de
margem. Pior do que ver as águas, aparentemente as mesmas, é habituarmo-nos à
lama que nos impede de ver os peixes no fundo do rio. “A isca é que engana e
não o pescador que tem a cana" - lá diz o provérbio. Nesta quadra de
Carnaval Trapalhão não faltaram referências satíricas a quem a molhou o pé na
água-benta e é mais papista do que o Papa. Que os deuses sejam argutos e saibam
fazer justiça, porque no nosso mundo há quem precise de ler a “Oresteia” de
Ésquilo.
António Vilhena
“Hora pequena”
Há
expressões que resumem séculos de sabedoria popular, são a condensação de
muitas gerações que sintetizaram as aprendizagens. Ao longo da vida, ouvimos
provérbios que parecem feitos para ilustrarem quase tudo, são a síntese da voz
colectiva. Isso acontece em quase todas as áreas. Por exemplo, na agricultura:
“tudo vem no seu tempo e o nabal pelo advento”, “caindo o Natal à
segunda-feira, pode o lavrador alugar a eira”, “sete nevadas e um nevão dão
muito pão” ou, ainda, “quem vareja antes do Natal deixa o azeite no olival”.
Mas a mais estranha das expressões é a “hora pequena” que é desejada quando uma
mulher está grávida. Ou seja, deseja-se que o bebé saia de patins ou de esquis,
de preferência sem tocar à campainha. Quem viu a série dos Monty Phyton deve lembrar-se
daquele sketch da dama irlandesa que, enquanto passava a ferro, o filho decide
cair. Não vejo nada mais ilustrador da hora pequena, a não ser na política.
O
que ontem era, logo já não é; ou, ainda, “fui convidada e desconvidada”. Em
política os provérbios mais adequados serão: “quem com ferros mata, com ferros
morre” ou “quem semeia ventos, colhe tempestades”. Todos conhecemos situações
que ilustram estas curtas frases. Infelizmente temos uma galeria cheia de maus
exemplos que fazemos questão de esquecer. Não há melhor resposta do que a
indiferença e o esquecimento. Na verdade, é muito comum a deslealdade. Em
política a incoerência e a falta de solidariedade podem ter juros elevados. Não
se pode estar bem com Deus e com o Diabo, eles são incompatíveis e,
principalmente, não jogam aos dados. A coerência é, em política, o “ethos” que
deve servir de referência.
A “hora pequena” bem podia ser a “porta pequena”.
Respigando um provérbio agrícola para a política, diria que “talo sem espiga
não pode dar farinha”. Nestes tempos de grandes e pequenos desvios, a ironia e
o humor parecem afigurar-se como a receita mais adequada para interpretarmos os
fundamentalismos - são todos maus, porque ocupam territórios de exclusão em
nome de reivindicações aparentemente justas. Há neste momento uma autocensura
em relação a determinados temas, porque os “puros”, diga-se os hipócritas,
funcionam como corporações ofendidas, legitimadas pelo “sangue-azul da
linhagem”. São justiceiros sem acusação, denunciadores com selo de vingança e
oportunistas sem escrúpulos. Pelo meio há, com toda a certeza, aquele(a)s que
têm razões e que devem ser protegido(a)s.
Não há pachorra para tantos “ismos” e
bonecas loiras. A poeira há-de assentar e a indústria da hipocrisia terá tempo
para reescrever a sua história, não ocultando as estórias que não chegam à
ribalta. A “hora pequena” pode servir de exemplo semântico aos que têm pressa
em mudar de vida. Às vezes, é preciso começar de novo, avaliar e mudar de
margem. Pior do que ver as águas, aparentemente as mesmas, é habituarmo-nos à
lama que nos impede de ver os peixes no fundo do rio. “A isca é que engana e
não o pescador que tem a cana" - lá diz o provérbio. Nesta quadra de
Carnaval Trapalhão não faltaram referências satíricas a quem a molhou o pé na
água-benta e é mais papista do que o Papa. Que os deuses sejam argutos e saibam
fazer justiça, porque no nosso mundo há quem precise de ler a “Oresteia” de
Ésquilo.
António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
“ACORDARAM AS BORBOLETAS”
Havia
um jardim com bancos de madeira espalhados entre os canteiros. As crianças
corriam e escondiam-se atrás das árvores, exorcizavam os medos, mas sempre com
os pais à distância de um olhar. Ao final da tarde, as crianças divertiam-se no
parque, havia um lago ao fundo com cisnes emproados e “gaivotas” de todas as
cores. O verde da mata trazia a paz e o canto dos pássaros, era uma paleta de
cores e sons, talvez o paraíso começasse ali, talvez o mundo tivesse começado
assim. Naquele lugar ninguém falava alto, a natureza modelava as vozes, a
paisagem impunha a soturnidade poética e, na folhagem mais frondosa, os
namorados ensaiavam o amor.
Aquele lugar sem pressa era a memória de muitas
gerações, o manto a céu aberto, o limbo do encontro. As sombras atraiam as
famílias, o parque era amplo e, em cada recanto, os murmúrios dos antepassados
faziam esquina. Quando se é criança não se tem a dimensão da escala, tudo parece
gigante, principalmente, se o espaço dá a ideia que nos podemos perder. Quanto
maior é esta perceção, mais cresce o receio de um bosque sem fim, maior é a
insegurança. Mas se regressamos mais tarde a esse universo, as dimensões
aproximam as estrelas das copas das árvores e o sombreado traz a nostalgia. O
que era grande passa a ser normal, e o que era pequeno torna-se insignificante.
Há parques que permanecem eternamente nos álbuns de fotografias, com os bancos
onde nos sentávamos, o homem que vendia gelados, a mulher dos balões, o cavalo
para a fotografia ou, ainda, o bazar dos brinquedos de madeira. Este passado
resiste indelevelmente, tem o seu lugar como as cartas de Fernando Pessoa a
Ofélia. Crescemos a imaginar outras memórias, a sonhar as “saudades do futuro”,
a viver no desassossego criativo que clama a paz em movimento. Há em cada um de
nós um parque de emoções onde a infância nunca envelheceu, por isso,
regressamos sempre ao convívio das borboletas, a esse friozinho na barriga que
suspende a respiração e aumenta a ansiedade.
O cais das borboletas é assim um
convite à viagem, ao reencontro das paisagens, à sedução, à cumplicidade que
não pode esperar. Se se olha o horizonte e as palavras libertam as letras, é lá
que o voo permite todos os abraços com que se embala a noite. Depois chegam as
vozes murmuradas, as sinfonias íntimas nota a nota, num desfiladeiro de
esperança sequioso das mãos, rasgando os caminhos rebeldes como as acácias
vindouras. Neste trapézio de equilíbrios difíceis, somos tanta coisa, deixamos
de ser e renascemos onde o vento abre as janelas. Nessa corrente de ar
soltam-se os lobos, amam-se os demónios, conquistam-se as plumas, incendeiam-se
os anjos. A terra queimada transforma-se num bordado de vontades, cresce o que
tem de florir no tempo certo. É preciso acordar as borboletas, ouvir o
chamamento das suas asas, sermos a metáfora e a metamorfose, a filigrana da
construção.
Esse painel simbólico e ritualista exige a interpretação da vida, o
que é inadiável e intransmissível. Se não o fizermos, adensamos a angústia,
projetamos as sombras e o sol não será mais do que uma estrela em viagem. No
parque, as borboletas cirandam de pétala em pétala, ensaiam a combinação do
perfume, conjugam os verbos da água e da sede, da beleza e do amor. A urgência
das coisas raras dorme nos sentidos como a volúpia na música, tateia a terra e
o livre arbítrio, devolve espaço ao corpo e liberdade ao desejo. Entre a
folhagem, reencontramos as Artes, em cadeia de união, ávidas do passo, como no
primeiro beijo. Nos troncos estão, esculpidas a canivete, palavras universais,
talvez escritas sob cúmplices olhares e, também, as mãos gigantes de Zeus,
testemunhadas por nascentes e raízes. Agora, essas palavras vivem como ramos da
esperança, são como as canções que falam de amor, resistem ao tempo e despertam
emoções sempre que a Primavera traz os aromas do encantamento. Um dia vamos
descobrir as borboletas no parque de todas as Artes.
“ACORDARAM AS BORBOLETAS”
Havia
um jardim com bancos de madeira espalhados entre os canteiros. As crianças
corriam e escondiam-se atrás das árvores, exorcizavam os medos, mas sempre com
os pais à distância de um olhar. Ao final da tarde, as crianças divertiam-se no
parque, havia um lago ao fundo com cisnes emproados e “gaivotas” de todas as
cores. O verde da mata trazia a paz e o canto dos pássaros, era uma paleta de
cores e sons, talvez o paraíso começasse ali, talvez o mundo tivesse começado
assim. Naquele lugar ninguém falava alto, a natureza modelava as vozes, a
paisagem impunha a soturnidade poética e, na folhagem mais frondosa, os
namorados ensaiavam o amor.
Aquele lugar sem pressa era a memória de muitas
gerações, o manto a céu aberto, o limbo do encontro. As sombras atraiam as
famílias, o parque era amplo e, em cada recanto, os murmúrios dos antepassados
faziam esquina. Quando se é criança não se tem a dimensão da escala, tudo parece
gigante, principalmente, se o espaço dá a ideia que nos podemos perder. Quanto
maior é esta perceção, mais cresce o receio de um bosque sem fim, maior é a
insegurança. Mas se regressamos mais tarde a esse universo, as dimensões
aproximam as estrelas das copas das árvores e o sombreado traz a nostalgia. O
que era grande passa a ser normal, e o que era pequeno torna-se insignificante.
Há parques que permanecem eternamente nos álbuns de fotografias, com os bancos
onde nos sentávamos, o homem que vendia gelados, a mulher dos balões, o cavalo
para a fotografia ou, ainda, o bazar dos brinquedos de madeira. Este passado
resiste indelevelmente, tem o seu lugar como as cartas de Fernando Pessoa a
Ofélia. Crescemos a imaginar outras memórias, a sonhar as “saudades do futuro”,
a viver no desassossego criativo que clama a paz em movimento. Há em cada um de
nós um parque de emoções onde a infância nunca envelheceu, por isso,
regressamos sempre ao convívio das borboletas, a esse friozinho na barriga que
suspende a respiração e aumenta a ansiedade.
O cais das borboletas é assim um
convite à viagem, ao reencontro das paisagens, à sedução, à cumplicidade que
não pode esperar. Se se olha o horizonte e as palavras libertam as letras, é lá
que o voo permite todos os abraços com que se embala a noite. Depois chegam as
vozes murmuradas, as sinfonias íntimas nota a nota, num desfiladeiro de
esperança sequioso das mãos, rasgando os caminhos rebeldes como as acácias
vindouras. Neste trapézio de equilíbrios difíceis, somos tanta coisa, deixamos
de ser e renascemos onde o vento abre as janelas. Nessa corrente de ar
soltam-se os lobos, amam-se os demónios, conquistam-se as plumas, incendeiam-se
os anjos. A terra queimada transforma-se num bordado de vontades, cresce o que
tem de florir no tempo certo. É preciso acordar as borboletas, ouvir o
chamamento das suas asas, sermos a metáfora e a metamorfose, a filigrana da
construção.
Esse painel simbólico e ritualista exige a interpretação da vida, o
que é inadiável e intransmissível. Se não o fizermos, adensamos a angústia,
projetamos as sombras e o sol não será mais do que uma estrela em viagem. No
parque, as borboletas cirandam de pétala em pétala, ensaiam a combinação do
perfume, conjugam os verbos da água e da sede, da beleza e do amor. A urgência
das coisas raras dorme nos sentidos como a volúpia na música, tateia a terra e
o livre arbítrio, devolve espaço ao corpo e liberdade ao desejo. Entre a
folhagem, reencontramos as Artes, em cadeia de união, ávidas do passo, como no
primeiro beijo. Nos troncos estão, esculpidas a canivete, palavras universais,
talvez escritas sob cúmplices olhares e, também, as mãos gigantes de Zeus,
testemunhadas por nascentes e raízes. Agora, essas palavras vivem como ramos da
esperança, são como as canções que falam de amor, resistem ao tempo e despertam
emoções sempre que a Primavera traz os aromas do encantamento. Um dia vamos
descobrir as borboletas no parque de todas as Artes.
António Vilhena
António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
"Hedonismo"
Há
gente que não é crente, mas acredita em tudo; há gente que vai à missa todas as
semanas, mas não pratica o bem; há gente que faz juramentos, mas esquece o que
leu; há gente que vai à bruxa, faz reiki, ginásio e tanta coisa, mas o que
precisa mesmo é de se sentir confortável sob a sua pele. Há gente que gasta o
seu tempo como se o mundo fosse acabar no instante seguinte, infernizam a vida
dos outros, andam sobre brasas, e, pior do que tudo, dormem mal. Em cada época
há um conjunto de palavras que parece soltar-se do baú, elas pretendem
satisfazer as necessidades, as modas e as patologias, são uma espécie de licor
semântico, vêm com manual de instruções, onde não falta a recomendação
obrigatória de sorrir, jantaradas e a recomendável dança do momento. Depois
basta ir às redes sociais, está lá tudo. É fácil encontrarmos o que nem as
Páginas Amarelas ofereciam.
As redes sociais são o maior catálogo de
patologias, de excessos e de enganos. A palavra que está na moda é
“resiliência”. É uma espécie de praga, é usada para todos os gostos e para as
mais inusitadas circunstâncias. Ela surge quase sempre como se estivesse à
espreita no céu-da-boca para cair na primeira oportunidade, intromete-se na
conversa, parece uma vizinha do piso de cima a chamar os gatos. A verdade é que
a palavra “resiliência” é interclassista e de banda larga, é usada por todos e
serve para as mais disparatadas explicações.
Às vezes dá muito jeito ter à mão
um conjunto de palavras da moda, basta abrir o fole e soprar, o ambiente fica
enxameado dessa inócua verdade coletiva em que todos se reveem, é uma espécie
de solidariedade de boas intenções, daquelas confissões em que a água benta não
adianta nem atrasa. Contudo, quem usa esse catálogo faz um figurão,
assemelha-se a um baile de debutantes onde a mais bonita nem sempre é a mais
exuberante e, por isso, não é a escolhida. É o mundo do faz-de-conta, do
parece, da realidade escondida com a sombra à vista ou, ainda, do mistério
valioso que promete fazer o milagre de autoajuda.
Num mundo em que as pessoas
estão cansadas, sem tempo para si próprias e com níveis de stress elevados, há
palavras que são hóstias, não fazem mal nem bem. É comum ouvir um político
dizer que Portugal precisa de mais “resiliência” para enfrentar os problemas,
mas, a verdade e que são os portugueses que precisam de menos resiliência para
ouvir alguns políticos; é habitual ouvir alguns comentadores opinarem sobre a
necessária “resiliência” da economia para enfrentarmos os desafios externos,
mas o que nós precisamos é de ter menos resiliência com certos comentadores que
nunca semearam uma batata e pensam, quiçá, que os ovos nascem nos
supermercados; há certos gestores que pedem mais “resiliência” aos portugueses,
que ganham o ordenado mínimo, quando eles gastam isso num só jantar com os seus
amigos.
Há palavras que não se deviam prostituir, deviam ficar quietinhas no
seu berço semântico e não alimentar a luxúria hedonista do liberalismo. A
promiscuidade “literária” usa luvas de boxe em vez de luvas brancas, e deixa
que certas palavras sejam cozinhadas em sopa de letras. É o que acontece quando
se está sentado à espera que a cana mexa ou a terra trema para anunciar uma
catástrofe ética. Vivemos num labirinto civilizacional, onde certas palavras
são usadas para dizerem aos pobres e aos fracos que têm de ser resilientes com
o capitalismo, com os predadores, com o fundamentalismo de género – a nova moda
-, ou, ainda, com os vendilhões dos evangelhos. Sejamos sérios: há muito lixo à
venda, muita coisa desnecessária que só ocupa espaço e gasta tempo útil. Se a
palavra “resiliência” está na moda é porque a sua bondade foi usada pelos
mercantilistas e oportunistas de fragilidades sem escrúpulos.
Há
gente que não é crente, mas acredita em tudo; há gente que vai à missa todas as
semanas, mas não pratica o bem; há gente que faz juramentos, mas esquece o que
leu; há gente que vai à bruxa, faz reiki, ginásio e tanta coisa, mas o que
precisa mesmo é de se sentir confortável sob a sua pele. Há gente que gasta o
seu tempo como se o mundo fosse acabar no instante seguinte, infernizam a vida
dos outros, andam sobre brasas, e, pior do que tudo, dormem mal. Em cada época
há um conjunto de palavras que parece soltar-se do baú, elas pretendem
satisfazer as necessidades, as modas e as patologias, são uma espécie de licor
semântico, vêm com manual de instruções, onde não falta a recomendação
obrigatória de sorrir, jantaradas e a recomendável dança do momento. Depois
basta ir às redes sociais, está lá tudo. É fácil encontrarmos o que nem as
Páginas Amarelas ofereciam.
As redes sociais são o maior catálogo de
patologias, de excessos e de enganos. A palavra que está na moda é
“resiliência”. É uma espécie de praga, é usada para todos os gostos e para as
mais inusitadas circunstâncias. Ela surge quase sempre como se estivesse à
espreita no céu-da-boca para cair na primeira oportunidade, intromete-se na
conversa, parece uma vizinha do piso de cima a chamar os gatos. A verdade é que
a palavra “resiliência” é interclassista e de banda larga, é usada por todos e
serve para as mais disparatadas explicações.
Às vezes dá muito jeito ter à mão
um conjunto de palavras da moda, basta abrir o fole e soprar, o ambiente fica
enxameado dessa inócua verdade coletiva em que todos se reveem, é uma espécie
de solidariedade de boas intenções, daquelas confissões em que a água benta não
adianta nem atrasa. Contudo, quem usa esse catálogo faz um figurão,
assemelha-se a um baile de debutantes onde a mais bonita nem sempre é a mais
exuberante e, por isso, não é a escolhida. É o mundo do faz-de-conta, do
parece, da realidade escondida com a sombra à vista ou, ainda, do mistério
valioso que promete fazer o milagre de autoajuda.
Num mundo em que as pessoas
estão cansadas, sem tempo para si próprias e com níveis de stress elevados, há
palavras que são hóstias, não fazem mal nem bem. É comum ouvir um político
dizer que Portugal precisa de mais “resiliência” para enfrentar os problemas,
mas, a verdade e que são os portugueses que precisam de menos resiliência para
ouvir alguns políticos; é habitual ouvir alguns comentadores opinarem sobre a
necessária “resiliência” da economia para enfrentarmos os desafios externos,
mas o que nós precisamos é de ter menos resiliência com certos comentadores que
nunca semearam uma batata e pensam, quiçá, que os ovos nascem nos
supermercados; há certos gestores que pedem mais “resiliência” aos portugueses,
que ganham o ordenado mínimo, quando eles gastam isso num só jantar com os seus
amigos.
Há palavras que não se deviam prostituir, deviam ficar quietinhas no
seu berço semântico e não alimentar a luxúria hedonista do liberalismo. A
promiscuidade “literária” usa luvas de boxe em vez de luvas brancas, e deixa
que certas palavras sejam cozinhadas em sopa de letras. É o que acontece quando
se está sentado à espera que a cana mexa ou a terra trema para anunciar uma
catástrofe ética. Vivemos num labirinto civilizacional, onde certas palavras
são usadas para dizerem aos pobres e aos fracos que têm de ser resilientes com
o capitalismo, com os predadores, com o fundamentalismo de género – a nova moda
-, ou, ainda, com os vendilhões dos evangelhos. Sejamos sérios: há muito lixo à
venda, muita coisa desnecessária que só ocupa espaço e gasta tempo útil. Se a
palavra “resiliência” está na moda é porque a sua bondade foi usada pelos
mercantilistas e oportunistas de fragilidades sem escrúpulos.
António Vilhena
António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
“Feios, porcos e maus”
Já pensámos no fim do mundo,
nos dias que pareciam não ter fim, na chuva que anunciava o dilúvio e na noite
que parecia eterna; já limpámos a testa com as mãos e amaldiçoámos os deuses
maus com palavras interditas; já falámos sozinhos nas ruas perante os olhares
incrédulos dos que nos ouviam; já chamámos os amigos que não estavam e por
estranhos que pareciam amigos de sempre; já gritámos no silêncio e rendemo-nos
à candura das coisas simples. Fizemos o caminho das palavras que se libertam
dos sentidos e, em revoada, sobrevoam o mundo das pequenas coisas, das pequenas
misérias, das miopias erráticas, dos mitómanos heróis, dos demagogos com egos
inchados e frustrações gordurosas.
Os “feios, porcos e maus” sempre existiram,
mas agora vivem com a bomba atómica dos tempos modernos à distância de um clic,
são as toupeiras de vidas privadas que mudam de perfil como se mudassem de
pele, assediam os mais frágeis, manipulam, têm vidas duplas, fazem negócios e
apresentam grandes currículos para impressionarem: são os agiotas azedos,
muitos deles com patologia. As redes sociais são o maior mostruário de gente
desequilibrada. O boato de outros tempos, como arma política, é um bebé
comparado com os monstros que se escondem nas redes socias. Há verdadeiros
psicopatas dissimulados a jogarem com a vida dos outros. Normalmente essa gente
acaba mal, é só uma questão de tempo.
Agora que começa um novo ano, é hora de
separar as águas, de decantar o supérfluo e entrar nas vias da sabedoria e da
beleza. Todos conhecemos gente medíocre que se sente importante face à sua
sombra, e gente que tem importância e cuja humildade a torna gigante pela
bondade. Felizmente o rei acaba nu, e os leitos dos rios galgam as margens
levando no seu arresto o trono vazio. O terrorismo psicológico é hoje uma arma
de terra queimada, não tem rosto e, principalmente, muda de nome de acordo com
a vítima. Começam por ser prestáveis, aduladores, simpáticos, “íntimos”,
disponíveis…Mas tudo isto é uma máscara que serve os objectivos mais grotescos
do predador. Atrás da moita os coelhos deixam os seus vestígios e, mais tarde
ou mais cedo, o luar denuncia a sua sombra.
As palavras que se libertam
da semântica renascem na infância, nas perguntas indefesas onde as verdades
exigem muito mais dúvidas do que certezas. Esse bálsamo inspirador da procura
do significado, sem algemas, é um estímulo a quem se perdeu no labirinto.
Começar de novo, passo a passo, tateando as paredes e descobrindo nas texturas
os relevos que não magoam a pele, significa muitas vezes olhar o Minotauro,
enfrentá-lo, exorcizar os fantasmas que se colaram às paredes através do tempo.
Com ou sem venda nos olhos, a pior cegueira é a que o orgulho não deixa ver e a
razão envelheceu para a novidade. Gastar as mãos tentado decifrar o cume das
montanhas, parece uma tarefa inglória, seria mais fácil ter asas. Mas essa
impossibilidade escapa às terapias tradicionais, o jogo da representação é à
custa da dramatização, em que o actor não se assume como imagem no espelho.
O
mundo da dissimulação é, hoje, uma pandemia social, vive-se no limite do
“quase”, onde “quase “ tudo existe e não existe, onde “quase” se vive e se
morre, onde “quase” é proibido estar triste, onde o sorriso é um meio de
combater a solidão e inventar a “quase” felicidade. Entre tanta coisa “quase”
real vivem os escovilhões de sarjeta, os que mudam da noite para o dia, os que
se refugiam em pseudónimos pidescos e usam a “linguagem do terrorismo urbano”
para invadirem a intimidade da decência. Na clausura dos que têm várias vidas
“quase” reais nas redes socias e na vida real, deve ser fascinante ter vários
perfis: serem homens à noite com as esposas e os filhos, amantes durante as
horas de trabalho e, fora de horas, serem mulheres. É este “admirável mundo
novo” que Aldous Huxley não previu. Há pouco tempo confessava-me um amigo
especialista em tecnologias que seria fácil desencadear uma nova guerra se se
revelassem as conversas privadas – fáceis de conhecer. “O silêncio de quem as
conhece revela um grande sentido de responsabilidade”. Os sociopatas são
egocêntricos, manipuladores e gostam de mostrar poder para impressionarem, são
os escovilhões da sua própria sarjeta. Mas a verdade é como o azeite, sobrevive
à mentira.
“Feios, porcos e maus”
Já pensámos no fim do mundo,
nos dias que pareciam não ter fim, na chuva que anunciava o dilúvio e na noite
que parecia eterna; já limpámos a testa com as mãos e amaldiçoámos os deuses
maus com palavras interditas; já falámos sozinhos nas ruas perante os olhares
incrédulos dos que nos ouviam; já chamámos os amigos que não estavam e por
estranhos que pareciam amigos de sempre; já gritámos no silêncio e rendemo-nos
à candura das coisas simples. Fizemos o caminho das palavras que se libertam
dos sentidos e, em revoada, sobrevoam o mundo das pequenas coisas, das pequenas
misérias, das miopias erráticas, dos mitómanos heróis, dos demagogos com egos
inchados e frustrações gordurosas.
Os “feios, porcos e maus” sempre existiram,
mas agora vivem com a bomba atómica dos tempos modernos à distância de um clic,
são as toupeiras de vidas privadas que mudam de perfil como se mudassem de
pele, assediam os mais frágeis, manipulam, têm vidas duplas, fazem negócios e
apresentam grandes currículos para impressionarem: são os agiotas azedos,
muitos deles com patologia. As redes sociais são o maior mostruário de gente
desequilibrada. O boato de outros tempos, como arma política, é um bebé
comparado com os monstros que se escondem nas redes socias. Há verdadeiros
psicopatas dissimulados a jogarem com a vida dos outros. Normalmente essa gente
acaba mal, é só uma questão de tempo.
Agora que começa um novo ano, é hora de
separar as águas, de decantar o supérfluo e entrar nas vias da sabedoria e da
beleza. Todos conhecemos gente medíocre que se sente importante face à sua
sombra, e gente que tem importância e cuja humildade a torna gigante pela
bondade. Felizmente o rei acaba nu, e os leitos dos rios galgam as margens
levando no seu arresto o trono vazio. O terrorismo psicológico é hoje uma arma
de terra queimada, não tem rosto e, principalmente, muda de nome de acordo com
a vítima. Começam por ser prestáveis, aduladores, simpáticos, “íntimos”,
disponíveis…Mas tudo isto é uma máscara que serve os objectivos mais grotescos
do predador. Atrás da moita os coelhos deixam os seus vestígios e, mais tarde
ou mais cedo, o luar denuncia a sua sombra.
As palavras que se libertam
da semântica renascem na infância, nas perguntas indefesas onde as verdades
exigem muito mais dúvidas do que certezas. Esse bálsamo inspirador da procura
do significado, sem algemas, é um estímulo a quem se perdeu no labirinto.
Começar de novo, passo a passo, tateando as paredes e descobrindo nas texturas
os relevos que não magoam a pele, significa muitas vezes olhar o Minotauro,
enfrentá-lo, exorcizar os fantasmas que se colaram às paredes através do tempo.
Com ou sem venda nos olhos, a pior cegueira é a que o orgulho não deixa ver e a
razão envelheceu para a novidade. Gastar as mãos tentado decifrar o cume das
montanhas, parece uma tarefa inglória, seria mais fácil ter asas. Mas essa
impossibilidade escapa às terapias tradicionais, o jogo da representação é à
custa da dramatização, em que o actor não se assume como imagem no espelho.
O
mundo da dissimulação é, hoje, uma pandemia social, vive-se no limite do
“quase”, onde “quase “ tudo existe e não existe, onde “quase” se vive e se
morre, onde “quase” é proibido estar triste, onde o sorriso é um meio de
combater a solidão e inventar a “quase” felicidade. Entre tanta coisa “quase”
real vivem os escovilhões de sarjeta, os que mudam da noite para o dia, os que
se refugiam em pseudónimos pidescos e usam a “linguagem do terrorismo urbano”
para invadirem a intimidade da decência. Na clausura dos que têm várias vidas
“quase” reais nas redes socias e na vida real, deve ser fascinante ter vários
perfis: serem homens à noite com as esposas e os filhos, amantes durante as
horas de trabalho e, fora de horas, serem mulheres. É este “admirável mundo
novo” que Aldous Huxley não previu. Há pouco tempo confessava-me um amigo
especialista em tecnologias que seria fácil desencadear uma nova guerra se se
revelassem as conversas privadas – fáceis de conhecer. “O silêncio de quem as
conhece revela um grande sentido de responsabilidade”. Os sociopatas são
egocêntricos, manipuladores e gostam de mostrar poder para impressionarem, são
os escovilhões da sua própria sarjeta. Mas a verdade é como o azeite, sobrevive
à mentira.
António Vilhena
António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
“Não digas nada…”
A
vara do tempo dobra e a sua sombra fica obesa. Os peixes que nadam no fundo
lago estranham a curva, o seu rosto parece-se com as imagens de um espelho
convexo, sobra corpo onde falta a explicação para entender as coisas simples da
vida. Quando não se tem a vista completa do horizonte, podemos saltar, mas as
pernas são curtas. O mais fácil é redescobrir o sentido de orientação que nos
dê asas. Voar é a mais fascinante utopia para vencer a saudade. E nesta quadra
natalícia há palavras que se impõem, são como as laranjas num areal, estranhas
e desajustadas, são feitas de fragilidades semânticas, cheiram a hipocrisia e
duram uma noite. O que é efémero é o “teatro”, a representação da conveniência,
quando a realidade se impõe pela falta de exemplo.
Quando chega o Natal as
cidades ficam mais bonitas, ou seja, as iluminações ajudam e fazem esquecer que
tudo continua na mesma; a música toma conta das ruas, a azáfama e o passo
apressado não combinam com os que esperam um olhar benemérito. Todos sabemos
como é, talvez, por isso, há quem deseje que o Natal passe depressa, que a
noite de consoada se transforme na manhã do dia seguinte, que o brilho fácil
das coisas dê lugar a um racionalismo menos piegas. Ah, mas as crianças! Essas
almas coloridas que acreditam no Pai Natal – como eu -, e que cansam o olhar de
tanto olharem a estrela flamejante na noite fria de todas as esperanças.
As
crianças ensinam-nos que há um mundo efémero que devia ser eterno; um mundo de
fantasia que não precisa de explicações, basta sentir, o que importa é
acreditar de olhos abertos. Elas não conhecem a fome dos pássaros, imaginam-se
no seu voo como os heróis que adormecem depois de se lhes contar a história da
noite. Talvez o seu sono possa resgatar as memórias e as vozes que embalam os
seus medos e trazer-lhes de volta a ternura do último beijo, antes da sua
respiração afundar na noite. É tão belo viver estas emoções como criança. Quem
atravessa esta experiência sabe que nada é tão grandioso como o cheiro da pele
de um bebé, como sentir a sua mão no nosso rosto e o seu sorriso de flor
aberta. As crianças emprestam-nos a vida em estado puro, sem maldade nem
traições, sem mentiras e jogos de azar.
Quando chega o Natal é para elas que se
dirige o nosso pensamento, que nos lembramos de nós através delas e fazemos a
maldade de as imitar ocultando a verdadeira razão da mimese. Todos temos
recordações da rua ou do jardim onde brincámos, dos amiguinhos e, também, da
voz que nos chamava para regressarmos a casa. O Natal é uma longa galeria de
imagens, um desfiladeiro de emoções onde as mãos escorregam na vara do tempo,
que se recusa a ser um bordão de saudosismos. Revisitar os lugares onde tudo
era grande, quando eramos pequenos, é redescobrir o mundo onde este parecia
feito por gigantes. Crescemos para descobrirmos esses lugares e recriarmos as
noites de Natal.
Os tempos mudaram os cheiros, as prendas, os “pinheiros”, as lareiras,
as famílias, os dias seguintes. Importa o que não importa, permanece o que não
tem pressa de existir, resiste o que vem do passado e nasce a cada instante
dentro de nós. É esta cumplicidade incondicional, de quem vive perto de quem
ama, de quem se recusa a ser clonado, de quem diz não à espuma dos dias, que
pode partilhar o espírito de natal. Sabemos que há zonas no mundo onde o dia de
Natal não será diferente dos outros dias do ano. Os desalojados das guerras
constituem hoje um drama civilizacional. Urge, em nome da dignidade humana,
proteger estas pessoas que foram obrigadas a fugir dos seus países e que
perderam tudo. Há uma responsabilidade colectiva, que é a da solidariedade
humana. Pensar que não nos pertence o sofrimento dos outros é o contrário da
essência da mensagem da Natividade. Se cada um cumprir o seu dever, cumpre-se,
também, o melhor de nós. Há momentos em que só devemos ouvir a mulher que
amamos – falo por mim – ou os poetas. O ideal são os dois. Respigo um poema de
Adélia Prado: “A borboleta pousada/ou é Deus/ou é nada”. Não digas nada de que
te possas arrepender no futuro, verdade não tem voz grossa, não se esconde, não
se dissimula; a verdade é como a borboleta do poema de Adélia Prado: ou é Deus
ou é nada.
“Não digas nada…”
A
vara do tempo dobra e a sua sombra fica obesa. Os peixes que nadam no fundo
lago estranham a curva, o seu rosto parece-se com as imagens de um espelho
convexo, sobra corpo onde falta a explicação para entender as coisas simples da
vida. Quando não se tem a vista completa do horizonte, podemos saltar, mas as
pernas são curtas. O mais fácil é redescobrir o sentido de orientação que nos
dê asas. Voar é a mais fascinante utopia para vencer a saudade. E nesta quadra
natalícia há palavras que se impõem, são como as laranjas num areal, estranhas
e desajustadas, são feitas de fragilidades semânticas, cheiram a hipocrisia e
duram uma noite. O que é efémero é o “teatro”, a representação da conveniência,
quando a realidade se impõe pela falta de exemplo.
Quando chega o Natal as
cidades ficam mais bonitas, ou seja, as iluminações ajudam e fazem esquecer que
tudo continua na mesma; a música toma conta das ruas, a azáfama e o passo
apressado não combinam com os que esperam um olhar benemérito. Todos sabemos
como é, talvez, por isso, há quem deseje que o Natal passe depressa, que a
noite de consoada se transforme na manhã do dia seguinte, que o brilho fácil
das coisas dê lugar a um racionalismo menos piegas. Ah, mas as crianças! Essas
almas coloridas que acreditam no Pai Natal – como eu -, e que cansam o olhar de
tanto olharem a estrela flamejante na noite fria de todas as esperanças.
As
crianças ensinam-nos que há um mundo efémero que devia ser eterno; um mundo de
fantasia que não precisa de explicações, basta sentir, o que importa é
acreditar de olhos abertos. Elas não conhecem a fome dos pássaros, imaginam-se
no seu voo como os heróis que adormecem depois de se lhes contar a história da
noite. Talvez o seu sono possa resgatar as memórias e as vozes que embalam os
seus medos e trazer-lhes de volta a ternura do último beijo, antes da sua
respiração afundar na noite. É tão belo viver estas emoções como criança. Quem
atravessa esta experiência sabe que nada é tão grandioso como o cheiro da pele
de um bebé, como sentir a sua mão no nosso rosto e o seu sorriso de flor
aberta. As crianças emprestam-nos a vida em estado puro, sem maldade nem
traições, sem mentiras e jogos de azar.
Quando chega o Natal é para elas que se
dirige o nosso pensamento, que nos lembramos de nós através delas e fazemos a
maldade de as imitar ocultando a verdadeira razão da mimese. Todos temos
recordações da rua ou do jardim onde brincámos, dos amiguinhos e, também, da
voz que nos chamava para regressarmos a casa. O Natal é uma longa galeria de
imagens, um desfiladeiro de emoções onde as mãos escorregam na vara do tempo,
que se recusa a ser um bordão de saudosismos. Revisitar os lugares onde tudo
era grande, quando eramos pequenos, é redescobrir o mundo onde este parecia
feito por gigantes. Crescemos para descobrirmos esses lugares e recriarmos as
noites de Natal.
António Vilhena
António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
“Diálogo improvável”
Quando
a linguagem é feita de cores que trazem o melhor da natureza ao convívio dos
sentidos, não se pode falar de um “Diálogo improvável”. Talvez se queira
alertar os mais incautos ou distraídos para a liberdade semântica da Arte que vive
para além de ideólogos e moralistas. A visita acompanhada traz-me à memória
períodos da história que não são os melhores. Uma obra de arte é a incompletude
por excelência, é uma “tarefa aberta” que nunca se esgota, mas interpela-nos.
Esse diálogo entre dois pintores - Victor Costa e Roxanne Bueso -, resultou na
exposição que pode ser visitada na Galeria do Arnado, em Coimbra, até 17 de
Dezembro. As grandes dimensões das obras expostas devolvem-nos uma atmosfera de
luz e cor levando-nos a lugares que são referências simbólicas dos artistas.
Roxanne Bueso nasceu em Porto Rico e, possivelmente, as suas telas são uma
paleta de cores onde a mulher, através do seu vestuário, surge como uma
policromia poética. Victor Costa, natural de Coimbra, convida-nos a entrar no
seu universo abstrato de cidades difusas onde vivemos. “Diálogo improvável” é
um reencontro de culturas e de sensibilidades, um cais de viagem onde devemos
ancorar. Neste período natalício, que convida à introspecção e à tolerância, a
Arte tem uma função apelativa e indutora, ela aproxima e concilia, questiona e fractura, resiste e conspira.
Qual
a função da Arte na vida dos homens? As respostas são muitas e diferentes, mas
interessa-me a certeza de que não podíamos viver sem ela, a nossa vida seria
outra coisa, não sabemos o quê, mas, talvez, o nosso imaginário fosse mais
cinzento. Quando uma criança desenha uma flor, não imaginamos os girassóis de Vincent
van Gogh, mas reconhecemos que há um manto de sensibilidade que nos toca como
as telas do pintor holandês. Não saber explicar a Arte, sentir a Arte, é esse o
seu prodígio. Cada um nós leva consigo a parte que dá mais sentido à sua vida,
ainda que a circunstância permita apenas um simples olhar.
O
acaso ou o “Diálogo improvável”, aquilo que acontece quando não esperamos e somos
surpreendidos pela combinação das diferenças, é, quiçá, uma janela de
oportunidade onde cada encontro alimenta a esperança com a sua novidade.
Precisamos de estimular a nossas vidas com as linguagens do encontro/desencontro,
elas trazem a hermenêutica que ajuda a explicar o que a lógica não permite. O
mundo sorumbático dos pessimistas não se abre ao improviso, neste jogo, em que
os deuses são chamados, no Oráculo de Delfos, Apolo convida a Beleza, a
Perfeição e a Harmonia. Este legado vive, ainda que secretamente, em cada um de
nós, quando escrevemos, pintamos, esculpimos ou, ainda, quando admiramos a flor
desenhada por uma criança. Somos muito do que conseguimos imaginar, mesmo que
não tenhamos consciência dessa construção enquanto meninos. Regressar a essa
biblioteca de fantasias é recriar os caminhos iniciáticos das viagens de
infância. Estão lá, como números nas portas, os riscos, as linhas, as cores, as
paisagens e as pessoas que esculpiram a invisível identidade do que somos. Às
vezes não sabemos dar nomes ao que nos acontece, mas não esquecemos, para mais
tarde nos reencontrarmos com esse passado, que há-de fazer sentido em qualquer
circunstância. Ninguém mata o passado, ele sobrevive independentemente da
vontade, em silêncio, no recato como um palimpsesto.
A
pintura de Victor Costa e Roxanne Bueso perpetua-se na memória de cada um, é um
exercício de paisagens psicológicas resgatadas à infância. As cores vivas de
Porto Rico desafiam a melancolia de Portugal. Como escreveu Frida Kahlo, “cada
tic tac é um segundo da vida que passa, foge e não se repete. E há nele tanta
intensidade, tanto interesse, que o problema é só sabê-lo viver. Que cada um o
resolva como puder”.
“Diálogo improvável”
Quando
a linguagem é feita de cores que trazem o melhor da natureza ao convívio dos
sentidos, não se pode falar de um “Diálogo improvável”. Talvez se queira
alertar os mais incautos ou distraídos para a liberdade semântica da Arte que vive
para além de ideólogos e moralistas. A visita acompanhada traz-me à memória
períodos da história que não são os melhores. Uma obra de arte é a incompletude
por excelência, é uma “tarefa aberta” que nunca se esgota, mas interpela-nos.
Esse diálogo entre dois pintores - Victor Costa e Roxanne Bueso -, resultou na
exposição que pode ser visitada na Galeria do Arnado, em Coimbra, até 17 de
Dezembro. As grandes dimensões das obras expostas devolvem-nos uma atmosfera de
luz e cor levando-nos a lugares que são referências simbólicas dos artistas.
Roxanne Bueso nasceu em Porto Rico e, possivelmente, as suas telas são uma
paleta de cores onde a mulher, através do seu vestuário, surge como uma
policromia poética. Victor Costa, natural de Coimbra, convida-nos a entrar no
seu universo abstrato de cidades difusas onde vivemos. “Diálogo improvável” é
um reencontro de culturas e de sensibilidades, um cais de viagem onde devemos
ancorar. Neste período natalício, que convida à introspecção e à tolerância, a
Arte tem uma função apelativa e indutora, ela aproxima e concilia, questiona e fractura, resiste e conspira.
Qual
a função da Arte na vida dos homens? As respostas são muitas e diferentes, mas
interessa-me a certeza de que não podíamos viver sem ela, a nossa vida seria
outra coisa, não sabemos o quê, mas, talvez, o nosso imaginário fosse mais
cinzento. Quando uma criança desenha uma flor, não imaginamos os girassóis de Vincent
van Gogh, mas reconhecemos que há um manto de sensibilidade que nos toca como
as telas do pintor holandês. Não saber explicar a Arte, sentir a Arte, é esse o
seu prodígio. Cada um nós leva consigo a parte que dá mais sentido à sua vida,
ainda que a circunstância permita apenas um simples olhar.
O
acaso ou o “Diálogo improvável”, aquilo que acontece quando não esperamos e somos
surpreendidos pela combinação das diferenças, é, quiçá, uma janela de
oportunidade onde cada encontro alimenta a esperança com a sua novidade.
Precisamos de estimular a nossas vidas com as linguagens do encontro/desencontro,
elas trazem a hermenêutica que ajuda a explicar o que a lógica não permite. O
mundo sorumbático dos pessimistas não se abre ao improviso, neste jogo, em que
os deuses são chamados, no Oráculo de Delfos, Apolo convida a Beleza, a
Perfeição e a Harmonia. Este legado vive, ainda que secretamente, em cada um de
nós, quando escrevemos, pintamos, esculpimos ou, ainda, quando admiramos a flor
desenhada por uma criança. Somos muito do que conseguimos imaginar, mesmo que
não tenhamos consciência dessa construção enquanto meninos. Regressar a essa
biblioteca de fantasias é recriar os caminhos iniciáticos das viagens de
infância. Estão lá, como números nas portas, os riscos, as linhas, as cores, as
paisagens e as pessoas que esculpiram a invisível identidade do que somos. Às
vezes não sabemos dar nomes ao que nos acontece, mas não esquecemos, para mais
tarde nos reencontrarmos com esse passado, que há-de fazer sentido em qualquer
circunstância. Ninguém mata o passado, ele sobrevive independentemente da
vontade, em silêncio, no recato como um palimpsesto.
A
pintura de Victor Costa e Roxanne Bueso perpetua-se na memória de cada um, é um
exercício de paisagens psicológicas resgatadas à infância. As cores vivas de
Porto Rico desafiam a melancolia de Portugal. Como escreveu Frida Kahlo, “cada
tic tac é um segundo da vida que passa, foge e não se repete. E há nele tanta
intensidade, tanto interesse, que o problema é só sabê-lo viver. Que cada um o
resolva como puder”.
António Vilhena
António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
Epopeia da esperança.
Quantas
vezes olhaste as flores que nascem nas superfícies das poças de águas? Quantas
vezes pensaste que o belo não precisa de histórias profundas? A beleza que
cresce com escassas raízes é mais espontânea e surpreendente, deixa seduzir-se
pela luz, emerge quase sempre inclinada para oriente, onde supostamente mora a sabedoria, e desafia a incredibilidade. No
último jantar, as flores da mesa deixaram cair algumas pétalas nos pratos,
pareciam ter nascido no branco e ali se perpetuariam se não fosse a desmesura
de um empregado cumpridor. A delicadeza do empregado apressou-se a pedir
desculpa, por tão grande profanação das pétalas intrusas e indesejadas. Aos
poucos serviu a comida, com requinte francês e sotaque de um país de leste. O
avental até aos joelhos fazia-o atarracado. Eu gosto de empregados altos, com
unhas limpas, esquálidos e dentes brilhantes. Imagino-os enviados por Dioniso
para servirem os homens e as suas bacantes. Durante algum tempo os pratos ainda
cheiravam a rosas, perpetuavam o perfume dos deuses num recanto de
esconjurados. Naquela noite os fios de luz e os botões dos casacos cerziam a
ostensiva intentona dos conspiradores. Tudo foi acautelado: o guarda-roupa
tinha de ser como as pétalas que caíram no prato: leve, simbólico e sedutor.
Era domingo à tarde, o céu tinha esmaecido entre nuvens de longos vestidos que
os artistas do Olimpo gostam de tecer para gáudio dos pintores. Ao fundo, quase
no fim do horizonte, uma longa linha de espinhas de peixe celebravam os últimos
raios de sol, o que era belo não tinha equivalente nos dicionários dos homens. A
natureza ensina-nos o inefável e a humildade. Foi quase na finitude da luz,
quando surgiram as primeiras estrelas, que se ouviram as suas palavras:
- Vou viajar para renascer.
Miguel Bernardo guardou os silêncios enquanto
rodava o copo de vinho entre os dedos, depois, foi soltando sons e palavras,
aparentemente, sem nexo. Os convivas cruzavam as conversas, quando há muito
para dizer, ou a solidão está ávida de companhia, atropela-se a sintaxe. Ana
insistia que ia viajar, estava na idade de mudar de vida, de paisagens e de
sonhos. Foi neste ponto que Pedro Oliveira acordou para a conversa. “Vais
a/para onde?” Aos poucos todos pareciam interessados em falar das suas viagens,
mas foi Rosa Raimundo que ousou erguer a taça de vinho para celebrar, há vinte
cinco anos, o seu primeiro beijo no escurinho do cinema.
-
Até aí, eu pensava que os lábios dos rapazes eram de pele de cobra – o que
desencadeou uma rizada. Escusado será dizer que o tema da conversa mudou.
Aquele domingo era para celebrar a viagem de Ana, para beber uns copos e puxar
pelos sentimentos. Mas todos foram lestos em encontrar relação entre o beijo de
Rosa e a viagem de Ana.
-
Porque não vais de Lua-de-mel?
Para que isso acontecesse era preciso que Ana
deixasse a sua solidão abrir-lhe as janelas do quarto e que os raios da manhã
brincassem com os vestígios intimistas da noite. Quando se quer ajudar alguém a
vencer as suas dificuldades não é bom começar por lhe falar dos temas
desconfortáveis. Dito dessa forma, as palavras são pistolas preparadas a
disparar a qualquer momento, e o melhor é fugir à questão enquanto é tempo.
Normalmente, essas pessoas saem, delicadamente, para irem à cozinha, à casa de
banho…Depois regressam na esperança de que o tema da conversa seja outro, dão
uma gargalhada, dizem uma piada e disponibilizam-se para fazerem alguma tarefa:
mudar os copos, os pratos, as comidas etc.
-
Mas vais viajar, Ana?
Foi então que Ana se sentou novamente, pegou
num copo, para ganhar tempo, e começou lentamente a falar do seu sonho:
No
regresso às aulas, quando eu andava na escola, todos os meus amigos traziam
muitas novidades de férias, falavam sempre das viagens que faziam com os seus
pais. Eu ficava ali, quietinha, a ouvir e sem nada para contar. Conhecia como
ninguém os lugares da minha terra, talvez ninguém os conhecesse melhor do que
eu, mas isso não tinha a importância das viagens dos meus colegas. Eles iam
sempre para outras cidade e outros países. Agora já não sou mais menina, mas
lembro-me de alguns lugares que os meus colegas contavam. Preciso de renascer
para as viagens, talvez, para misturar esses lugares numa paleta de cores e
desenhar em cada sítio da minha terra a geografia dos afectos imaginários onde
ainda seja possível trazer comigo o jardineiro das minhas flores. Quando se
visita um jardim, possivelmente, a probabilidade de encontrar o jardineiro é
maior.
Todos ficaram admirados com o sonho de Ana, mas
um domingo à tarde, quase noite, convida à epopeia da memória e da esperança.
Epopeia da esperança.
António Vilhena
António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
O falso brilho do desejo.
A
luz que se vê nem sempre aquece os corpos. A luminosidade é uma espécie de
brilho que não chega para sabermos se o ouro é falso. O que brilha é a
superfície daquilo que se nos oferece na primeira linha do horizonte. Ficamos
fascinados, deixamos os sentidos envoltos na dança ébria da estética rodopiarem
sobre um eixo imaginário, fechamos os olhos e todas as verdades são feitas dos
fragmentos que trazem os nomes e os anos. Aos poucos juntamos as partes,
encaixamos os bocados, e construímos uma balsa onde caibam os despojos para
fazermos o resto da viagem. É nos momentos em que o supérfluo nos ameaça que a
lucidez faz a seleção, que se junta o que disperso dá sentido ao momento e,
principalmente, se este compromete o futuro.
Precisamos sempre de sentir as
mãos dos outros, o contacto devolve-nos a nossa existência, fica-se mais perto
das vidas ao ficarmos menos longe de nós; fica-se mais vulnerável quando
parecemos fortes, e quando se mistura o Solstício e o Equinócio coexistem a Primavera
e o Outono, as flores e as folhas secas, os aromas e o frio, o inevitável
segredo da natureza ensina a ancestralidade com que se renova e renasce.
Precisamos de aprender com a natureza o que ela nos dá ao longo das estações.
No mais profundo silêncio esculpe-se a rosa que há-de exibir as suas pétalas,
uma escultura de sobreposições cuja mimese transcende o labor minucioso da
roseira. “Por dentro das coisas é que as coisas são”, e o que faz sentido é
querermos pertencer a esse labirinto invisível das verdades.
Há
uns anos dois amigos procuraram casa na zona centro. A Jane vivia na Holanda, o
José tinha-se apaixonado pelos olhos verdes da sua musa. Combinaram vir para
Portugal, encontraram uma casa em ruinas, José era pintor e Jane socióloga.
Durante muitos anos escreveram cartas, têm, por isso, uma biblioteca de folhas
soltas – como José afirmava com alguma ironia. A obra era exigente, havia que
erguer as paredes, pôr os telhados, as janelas, as portas e tudo o que fosse
necessário para que a “biblioteca de folhas soltas” encontrasse o ambiente das
palavras sonharam ao longo de muitos anos. Jane e José demoraram quase um ano a
fazer das ruínas um “canto” confortável com vista para a serra.
Esse trabalho a
dois uniu-os, ficaram, cúmplices e mais divertidos. Investiram o seu tempo em
mudar o que era necessário, viam o nascer e o pôr-do-sol e as suas mãos
misturavam-se com a terra, a água, a madeira e o pão. Demoraram a erguer a
casa, essa galeria, biblioteca, gruta de Minotauro, metáfora de imaginação e de
vontade. Quando se juntam os poetas, os que fazem, e a vontade dos deuses que
inspiram, as ruínas devolvem o esplendor que os nossos olhos procuram, o brilho
celeste que agiganta a escala do olhar perante a pequenez das dificuldades.
“Falta cumprir-se Portugal”!
A obra inacabada é a que cada um de nós tem de
fazer em seu silêncio, procurar o livre arbítrio que concede a razão e a
emoção, que dá sentido às coisas pequenas que se tornam grandes quando as
perdemos. Jane voltou à Holanda cinco anos depois, fez uma festa de amigos e
celebrou a ousadia poética de José, sem a crença e a visão otimista do seu
namorado de sempre, a casa teria continuado em ruínas e ela teria ficado na
Holanda a escrever cartas. Agora a Serra da Lousã é um manto de céu e montanha,
o tempo fica preso às aldrabas, entra quando quer, quase sempre com a permissão
do gato Jacob que se assume como guarda interno.
Quando visitei a casa do casal
reparei que havia uma frase em cerâmica à entrada da porta: Nesta casa o Sol és
tu. Fiquei a pensar nesta frase enquanto a Jane servia o chá e o José explicava
cada uma das suas obras de pintura espalhadas nas paredes. Não tenho a certeza
se era Março ou Abril, mas a tarde convidava a usar um casaco, os pássaros
regressavam em bando para os abrigos da noite, ao fundo outras chaminés
libertavam o fumo das lareiras. O silêncio era inspirador e o melhor do lugar
foi a descoberta que fiz: Jane e José anunciaram que sempre se procuraram, mas
foi ali, na Lousã, que verdadeiramente se encontraram reconstruindo a casa que
era a metáfora das suas vidas. A ruína das ruínas deu lugar a um capitólio de
esperança.
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
O falso brilho do desejo.
A
luz que se vê nem sempre aquece os corpos. A luminosidade é uma espécie de
brilho que não chega para sabermos se o ouro é falso. O que brilha é a
superfície daquilo que se nos oferece na primeira linha do horizonte. Ficamos
fascinados, deixamos os sentidos envoltos na dança ébria da estética rodopiarem
sobre um eixo imaginário, fechamos os olhos e todas as verdades são feitas dos
fragmentos que trazem os nomes e os anos. Aos poucos juntamos as partes,
encaixamos os bocados, e construímos uma balsa onde caibam os despojos para
fazermos o resto da viagem. É nos momentos em que o supérfluo nos ameaça que a
lucidez faz a seleção, que se junta o que disperso dá sentido ao momento e,
principalmente, se este compromete o futuro.
Precisamos sempre de sentir as
mãos dos outros, o contacto devolve-nos a nossa existência, fica-se mais perto
das vidas ao ficarmos menos longe de nós; fica-se mais vulnerável quando
parecemos fortes, e quando se mistura o Solstício e o Equinócio coexistem a Primavera
e o Outono, as flores e as folhas secas, os aromas e o frio, o inevitável
segredo da natureza ensina a ancestralidade com que se renova e renasce.
Precisamos de aprender com a natureza o que ela nos dá ao longo das estações.
No mais profundo silêncio esculpe-se a rosa que há-de exibir as suas pétalas,
uma escultura de sobreposições cuja mimese transcende o labor minucioso da
roseira. “Por dentro das coisas é que as coisas são”, e o que faz sentido é
querermos pertencer a esse labirinto invisível das verdades.
Há
uns anos dois amigos procuraram casa na zona centro. A Jane vivia na Holanda, o
José tinha-se apaixonado pelos olhos verdes da sua musa. Combinaram vir para
Portugal, encontraram uma casa em ruinas, José era pintor e Jane socióloga.
Durante muitos anos escreveram cartas, têm, por isso, uma biblioteca de folhas
soltas – como José afirmava com alguma ironia. A obra era exigente, havia que
erguer as paredes, pôr os telhados, as janelas, as portas e tudo o que fosse
necessário para que a “biblioteca de folhas soltas” encontrasse o ambiente das
palavras sonharam ao longo de muitos anos. Jane e José demoraram quase um ano a
fazer das ruínas um “canto” confortável com vista para a serra.
Esse trabalho a
dois uniu-os, ficaram, cúmplices e mais divertidos. Investiram o seu tempo em
mudar o que era necessário, viam o nascer e o pôr-do-sol e as suas mãos
misturavam-se com a terra, a água, a madeira e o pão. Demoraram a erguer a
casa, essa galeria, biblioteca, gruta de Minotauro, metáfora de imaginação e de
vontade. Quando se juntam os poetas, os que fazem, e a vontade dos deuses que
inspiram, as ruínas devolvem o esplendor que os nossos olhos procuram, o brilho
celeste que agiganta a escala do olhar perante a pequenez das dificuldades.
“Falta cumprir-se Portugal”!
A obra inacabada é a que cada um de nós tem de
fazer em seu silêncio, procurar o livre arbítrio que concede a razão e a
emoção, que dá sentido às coisas pequenas que se tornam grandes quando as
perdemos. Jane voltou à Holanda cinco anos depois, fez uma festa de amigos e
celebrou a ousadia poética de José, sem a crença e a visão otimista do seu
namorado de sempre, a casa teria continuado em ruínas e ela teria ficado na
Holanda a escrever cartas. Agora a Serra da Lousã é um manto de céu e montanha,
o tempo fica preso às aldrabas, entra quando quer, quase sempre com a permissão
do gato Jacob que se assume como guarda interno.
Quando visitei a casa do casal
reparei que havia uma frase em cerâmica à entrada da porta: Nesta casa o Sol és
tu. Fiquei a pensar nesta frase enquanto a Jane servia o chá e o José explicava
cada uma das suas obras de pintura espalhadas nas paredes. Não tenho a certeza
se era Março ou Abril, mas a tarde convidava a usar um casaco, os pássaros
regressavam em bando para os abrigos da noite, ao fundo outras chaminés
libertavam o fumo das lareiras. O silêncio era inspirador e o melhor do lugar
foi a descoberta que fiz: Jane e José anunciaram que sempre se procuraram, mas
foi ali, na Lousã, que verdadeiramente se encontraram reconstruindo a casa que
era a metáfora das suas vidas. A ruína das ruínas deu lugar a um capitólio de
esperança.
António Vilhena
António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
Escreve nos meus
olhos.
Era
tempo de olhar, de ver o que antes era de todos, mas não nos pertencia; era
tempo de ir na garupa do vento soletrar os instantes que não valorizámos e
violentamente arrancar flores. Passeámos a horas tardias para ver o que antes
era apenas paisagem, e descobrimos as melodias que tecem vozes ocultas onde os
inomináveis aromas se escodem. Abrimos as bocas e deixámos que as palavras
voassem como garatujas infantis no solilóquio sem remissão. Fomos o mar numa
gota de água, aprendemos a navegar na voragem da tempestade, perdemos o
horizonte, deixámos que o tempo fosse lesto e perdulário. A fragilidade das
coisas gastas pelas mãos insinua os caminhos e as viagens, as dores nos pés, a
memória das pedras, a sede e a esperança. Depois de chegar é que a viagem
começa, a evocação do simbólico, o diálogo com a ausência, o que não se disse
depois de “gastar as palavras”. Nesse rio de margens largas crescem, ainda, as
árvores da infância, como se fossem eternas, como se tivessem vindo da origem
do mundo, como se tivessem vida perene. Contudo, o rio permanece incólume no
seu leito de preguiça e indiferença, alimenta o olhar quando as perguntas são
más companhias.
Um
rio é um sopro de sons antiquíssimos, um espelho de mil caras ancorado nas
margens desafiando o que se sonha e há-de acontecer. É preciso navegar sem
vento, ir na proa da vontade rasgando os itinerários e as marés, dialogando com
os cardumes e os corais. Na beleza da água transparente cresce o desenho do
rosto que se reflete e desfaz. Ao longe, o azul é todo o universo, uma paleta
arrancada ao braço do pintor num gesto compulsivo de recriação. Precisamos de
acreditar para além do horizonte, onde, possivelmente, vive um Adamastor bom.
Quando o caminho é não ter caminho, todos os lugares são catedrais de um culto sem
dogma. O deslumbramento da paisagem traz o compromisso que não se escreve, mas
que se sente. É a impossibilidade que aproxima, é o querer que sugere a
possibilidade. Sobra tanto silêncio entre o Homem e a paisagem!
Escolher
é a arte dos enganos, precisamos de jogar aos dados com a razão, como se
abríssemos a garganta da terra e soltássemos as inconfidências. O jogo dos
silêncios é uma espécie de resiliência, uma tolerância consentida onde cada uma
das partes finge não ver o que a natureza desnuda. Há tanto pudor na palavra,
por isso, o silêncio sustenta o fio da semântica no labirinto dos confrontos.
Escrever nos olhos é ler de pálpebras fechadas, intuir quando nos falta a luz,
soletrar as memórias que resistem na cartografia emocional. Escrever nos olhos
é ver o que a mão esconde, a filigrana que o tempo revela. Todos precisamos
desse compromisso, onde ver o que não se diz é um exercício de ingenuidade e de
grandeza.
Álvaro
Alves de Faria, poeta luso-brasileiro, diz-nos: “Não é da música esse som que
corta o teto do quarto,/mas da aranha que caminha lenta em seu desespero,/dos
insectos que correm nas frestas das janelas/onde me deixo estar e me espero.” (in
23 Elegias da Mão Esquerda, Palimage,
2017). As metáforas transformam as coisas banais num fluxo de desejos e
vontades, são elas próprias a essência do vazio que se preenche no mundo banal
das coisas que nos fazem falta. Abrir caminho na floresta dessas incompreensões,
aproxima-nos das “frestas das janelas” e permite-nos ver o que escrevemos nos
próprios olhos. Resistir à nudez da compreensão, erguendo biombos entre os
sentidos, é a escolha mais fácil, é a cegueira que autocensura, a morbidez que
antecipa a morte, a inveja que conspira, a insegurança que desespera, são os relógios
parados quando a esperança tem pressa.
António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
Escreve nos meus olhos.
António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
Fuga ao tacho no Exploratório.
No dia 29 de Setembro, no Exploratório – Ciência Viva Coimbra, comemorou-se a Noite Europeia de Investigadores. O programa foi diversificado e rechiado de degustações pouco habituais entre nós: gafanhotos, grilos e larvas. Sim, leu bem: gafanhotos, grilos e larvas. Para tão significativa efeméride não faltaram cientistas e curiosos. Os “protagonistas” dos pratos não quiseram ser carne para canhão. Quem não se lembra do episódio da “Praga dos Gafanhotos”, do livro do Êxodo, em que o Senhor disse a Moisés: “ Estende a tua mão sobre o Egipto para que venham contra eles os gafanhotos e acabem com todas as plantas do país, com tudo o que escapou ao granizo.” Moisés assim fez e o Faraó percebeu que tinha cometido um grave erro. O Senhor mudou os ventos e todos os gafanhotos mergulharam no Mar Vermelho. Esta passagem bíblica diz-nos que os gafanhotos estão associados à paz e à guerra entre os povos. Também, a canção “A Fuga dos Grilos” (1970) do quarteto 1111 (José Cid, Tozé Brito, Mike Sergeant e Michel Silveira) lembra quão “longos foram os caminhos percorridos…” mas necessários. Para além das fábulas estes invertebrados surgem como salvadores, capazes de vencerem a fome num futuro não muito longínquo.
Quem o diz é a ONU que prevê, em 2050, que seremos mais de 9 biliões de pessoas. Assim, citando um relatório (2013), a “Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) defende a criação em larga escala desses e outros invertebrados, para garantir a segurança alimentar da humanidade.” A verdade é que o gafanhoto é referido na Bíblia como alimento de João Baptista no deserto. Na Antiguidade Clássica muitos foram os que se ocuparam desses insetos de asas rectas. A classicista Ália R. Rodrigues refere, no seu estudo ÂNITE de TÉGEA, (Boletim de Estudos Clássicos — 45), que “Ânite tratou a morte de animais como o golfinho, a cadela, o cavalo, mas também de insetos, como a cigarra e o grilo.” Num desses epigramas, Ânite deixa transparecer a sua compaixão para com os insetos: “A um gafanhoto, rouxinol do campo, a uma cigarra,/ habitante do carvalho, Miro preparou um túmulo comum,/ derramando a jovem uma lágrima pura, pois foram dois/ os deleites que o implacável Hades levou consigo.” A importância dos gafanhotos, grilos e outros insetos sempre inspirou poetas e escritores ao longo dos tempos.
Quem não se lembra do filme “A Fuga das Galinhas”(2000)? Ginger era a galinha que sonhava ser livre e fugir do galinheiro com as suas companheiras. O mesmo aconteceu com os gafanhotos e os grilos que aguardavam a sua vez para irem parar ao churrasco na Noite Europeia de Investigadores que teve lugar no Exploratório – Ciência Viva Coimbra. Os bichanos, guardados em caixas adequadas, ensaiaram uma fuga noturna – qual fuga de Alcatraz! – na vã esperança de conseguirem chegar às margens do rio Mondego. O espanto foi total quando os “cientistas” se viram privados de tão delicioso repasto. A ordem foi solene: “Devem render-se sem resistência”. Muitos desobedeceram, escondendo-se em lugares inacessíveis aos olhares lestos dos caçadores. Imagine-se o que seria a Noite Europeia de Investigadores sem estes invertebrados no churrasco? Não seria a mesma coisa. Todos os colaboradores procuraram nos cantos possíveis e inimagináveis os insurretos.
O seu castigo seria o churrasco científico. Não consta que tenha havido perdão de penas, nem benesses para os delatores – Roma não paga a traidores. Para que conste e a memória futura não olvide, os gafanhotos, os grilos e outros companheiros de fuga acabaram no prato como uma mordomia gastronómica. Mas fica o registo da sua insubordinação e o exemplo de que vale sempre a pena lutar pela liberdade. A fuga ao tacho pode ser uma boa metáfora. Acabar no churrasco pode não ser um fatalismo, mas é, com toda a certeza, uma guloseima científica. A Noite Europeia de Investigadores ficaria incompleta se não vos contasse a fuga ao tacho da bicharada, uma belíssima iniciativa do Exploratório.
O seu castigo seria o churrasco científico. Não consta que tenha havido perdão de penas, nem benesses para os delatores – Roma não paga a traidores. Para que conste e a memória futura não olvide, os gafanhotos, os grilos e outros companheiros de fuga acabaram no prato como uma mordomia gastronómica. Mas fica o registo da sua insubordinação e o exemplo de que vale sempre a pena lutar pela liberdade. A fuga ao tacho pode ser uma boa metáfora. Acabar no churrasco pode não ser um fatalismo, mas é, com toda a certeza, uma guloseima científica. A Noite Europeia de Investigadores ficaria incompleta se não vos contasse a fuga ao tacho da bicharada, uma belíssima iniciativa do Exploratório.
António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
Sim, José.
Habituei-me a vê-lo com uma máquina fotográfica a calcorrear as ruas que ligam a Baixa à Alta da cidade de Coimbra; a ouvi-lo cantar fado nas longas noites da Diligência Bar, nomeadamente, o tema Pomba Branca, do madeirense Max. Olhos no chão, passos cadenciados, seguia lesto e imperturbável, excepto se alguém o interpelava. Aí o seu sorriso soltava-se como uma pomba branca, a bater asas, em busca da liberdade. Soturno e calmo, como uma tarde de Outono, atravessava a Sé Velha rumo à Universidade, percorria as Faculdades, uma a uma, deixava as fotografias da rapaziada que celebravam a Festa das Latas ou a Queima das Fitas. Misturava-se com a “estudantada”, contava histórias de outros tempos, aconselhava os mais novos. A sua simpatia ganhava rapidamente uma mão cheia de amigos. O Zé foi sempre assim, generoso, um homem fraterno e amigo, sem maldade e disponível. Quando cheguei a Coimbra, nos anos oitenta, era um cravo de sedução, andava sempre de gravata e fato escuro, embora já tivesse nevado no seu cabelo. Consta que, nesse tempo, ainda tinha uma casa comercial junto à Sé Velha, mas eu já não conheci esse espaço. A sua presença nos jantares de curso tornou-se familiar, pois foi aí que o Zé começou a fazer parte das minhas amizades. Cruzávamos as mesmas ruas, os mesmos cafés, as mesmas tertúlias, os mesmos becos e esplanadas.
O Zé era uma sombra na vida dos estudantes, não havia quem não o conhecesse e todos tinham o seu cartão profissional, pois mais tarde ou mais cedo, o Zé seria chamado a fazer “clic” num convívio. Mas os tempos mudaram com a chegada da fotografia digital. E o Zé lamentava-se que o seu negócio tinha chegado ao fim. A verdade é que soube actualizar-se e encontrou ânimo para continuar a sua actividade. Os seus itinerários mudaram um pouco quando a Universidade cresceu para os pólos II e III e, por isso, a frequência com que nos cruzávamos diminuiu. Mesmo ao longe, o Zé erguia o polegar da mão direita, como se gritasse do fim da rua, para saber se eu estava bem, era a mímica da curiosidade e da amizade.
O tempo encarregou-se de tornar os nossos encontros menos frequentes, mas a memória é, também, uma biblioteca de afectos que sabe sempre preservar o que é eterno e inesquecível. Recordo uma viagem (18 de Abril de 1989) que fiz com a escritora Natália Correia e Fernando Dacosta numa barca serrana à Lapa. Para essa viagem convidei o Zé. Ao seu jeito, sentou-se num canto, e à medida que a barca se afastava da margem, o Zé ensaiava a melhor posição para não perder o melhor ângulo da poetisa. Natália Correia tentava ignorar a presença do fotógrafo, mas Fernando Dacosta lembrava-lhe que devia sorrir. O Zé compenetrado no seu ofício sabia que aquela era uma viagem diferente. Quando chegámos à Lapa, onde estava a Guarda Fiscal, fomos recebido pelo comandante que tinha à nossa espera uma mesa farta com bons vinhos. O Zé teve pouco tempo para os petiscos.
A exigência dos dias faz-nos arrumar as prioridades onde as coisas acontecem quase sempre com muita pressa. Foi num desses dias, em que o Verão desocultava a luz, que oiço chamar pelo meu nome, enquanto lia os títulos dos jornais num quiosque. Olho e percebo que é o Zé. Mas rapidamente os meus olhos quiseram fechar-se. Olhámo-nos, mas desta vez o Zé, o meu fotógrafo de tantas circunstâncias e cantor de fado, estava numa cadeira de rodas. Em parte estava explicada a sua ausência, mas o Zé quis explicar-me tudo. Tinham-lhe amputado uma perna. Agora já não seria possível vê-lo a percorrer as ruas da Baixa de Coimbra como no passado, a misturar-se com as capas negras com a sua máquina a tiracolo ou a distribuir cartões profissionais. O Zé explicou-me tudo o que lhe aconteceu. O meu interesse pelos jornais acabou nesse momento, trouxe a imagem de um homem bom, sem uma perna, sentado numa cadeira de rodas, nostálgico e humilde a desculpar-se com a sorte: “É a vida…”. O Zé Baptista merece um abraço fraterno e muito mais.
António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
Os bajuladores.
Daqui a cem anos não haverá
a mais pequena memória deles, ninguém saberá desenhar os seus rostos, nem dizer
se tinham cabelo preto ou loiro, se eram altos ou baixos, se tinha cão ou gato.
Daqui a cem anos, ou menos, não restará a mais pequena lembrança da cor dos
seus olhos, da sua roupa, das verrugas ou dos seus tiques sociais. O tempo
apagará os que forem cúmplices por omissão, os que não tiverem coluna, os que
se prestarem a vergar a cabeça, os que cuidarem apenas da sua vidinha pondo
pedras no caminho dos outros. Daqui a cem anos, ou menos, a lápide estará
ilegível com os seus nomes. Há gente que se presta a todo o tipo de serviços,
que se vende por um sorriso de circunstância, por um favor para filha, para o
primo, para a sobrinha, para a amiga, para a amante, para mulher, para o animal
de estimação. Há gente que se dedica à intriga para cair na graça da(o) chefe a
troco de uma boa conversa à hora da bica.
Todos conhecemos a Maria, o
José, a Fernanda e o Miguel que são zelosos cuidadores das vidas dos outros –
cuidam do que existe e da sua imaginação prolixa -, fazem guiões e desenham
figurinos. Quem se dedica a cultivar a amizade das estrelas não tem tempo para
a pequena vaidade, nem para o espaço da representação. Há um mundo de pequenas
urgências que não pode esperar, gente que carece de cuidados, que merece
respeito e admiração. É muito fácil destruir a vida do Orlando, da Clara, do
Rodrigo ou da Inês. Basta ouvir a Maria, o José, a Fernanda ou o Miguel falarem
da “moral dos bons costumes” – hipocrisia, claro. Quando eles falam dos outros
conseguimos ver os seus armários.
Os bajuladores não têm
fronteiras, estão em todo o lado, adaptam-se facilmente, vestem a pele de
camaleão, ficam dóceis, simpáticos, sorridentes, encostam-se às paredes, estão
sempre quase a sair, ainda mal entraram, e lá vão destilando o veneno e o
charme. Ficam em pé, quase nunca se sentam, antecipam a chegada do bajulado(a)
e apressam-se a cumprimentar, distribuem salamaleques, enfim, são seres
perigosos porque vêem nos outros uma ameaça irreal. Os bajuladores não têm
escrúpulos, só conhecem a delação como instrumento de subserviência. São muito
úteis como “pides”, estão de serviço em todo o lado: nos corredores, nos
elevadores, nas casas-de-banho, onde eles sentirem o mundo de sombras que lhes
alimenta a paranóia.
Os bajuladores nunca são
leais, mas tentam transmitir essa ideia, pelo muito que parecem fazer, pela
excessiva presença, pela ausência de crítica, pela obscena concordância. Quando
o poder muda, são os primeiros a enviarem mensagens de felicitações, a
disponibilizarem-se, a oferecerem-se. Sabem de cor o dia de aniversário dos
chefes e dos seus filhos, tentam agradar a qualquer preço, estão sempre
presentes, “confundem” o dever com a obrigação. Esquecem-se, facilmente, a quem
serviram, o que interessa ao bajulador é o presente e o futuro. O presente para
perpetuarem a sedução das “Mil e Uma Noites”; e o futuro para arredarem da sua
proximidade aqueles que não fazem parte da roda da hipocrisia. Barack Obama
tinha consciência dessa perversão: “livre-se dos bajuladores. Mantenha perto as
pessoas que o avisem quando errar”. O bajulador sabe que todos
queremos ser felizes e, por isso, tenta, a coberto da sua “bondade”, ajudar.
Apenas a sua felicidade lhe interessa, mesmo que para isso tenha que implodir
as vidas dos outros. Daqui a cem anos, ou menos, ninguém falará desta gentinha.
António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
Vais explicar-me papá?
Tudo
parecia correr bem, na véspera tinha ido ao mercado, à cabeleireira, ao
sapateiro, tinha feito as coisas banais, as rotinas eram rotinas, os dias eram
os dias e as noites eram as escarpas onde ficava o silêncio e o cansaço. Tudo
parecia correr bem, ou melhor, tudo parecia ser o que era porque os seus olhos
eram os olhos de sempre, sem brilho e sem chama, os seus lábios eram a púrpura
esquecida pela urgência do tempo, as suas mãos operárias ostentavam a sede de
terras outrora férteis. Tudo parecia correr bem, não gritava, a sua voz era um
Zodíaco programado, existia para alimentar a esperança. Andava sobre os pés mal
tratados, não tinha amigos, nem próximos, limitava-se a existir na solidão que
construiu, parecia não precisar dos outros, o seu mundo era-lhe bastante e
sobrava o suficiente para a perturbar.
Raramente levantava os olhos do chão,
parecia que o horizonte era feito de sol em chamas, que não havia azul nem
rosa, que não havia além nem distância. Tudo parecia correr bem, aos
fins-de-semana ia à missa, procurava o seu Deus e o seu conforto para alimentar
o vazio. Era disciplinada mas insegura, escutava mas não se impressionava,
funcionava como uma mágoa cristalizada, uma mão entorpecida, um corpo quase
frio. Os peixes perderam as cores e as flores eram nenúfares que flutuavam na
invisível melancolia da sua existência. Quem a conhecia não estranhava o
mutismo, sempre fora de poucas conversas, não alimentava fofoquices ao fim da
rua, não trocava cebolas por hortelã com os vizinhos, não falava dos filhos com
outras mães. A discrição confundia-se com um certo exílio, uma ostentação de
ausência.
Quando tinha que aparecer, escolhia os cantos ou o fundo das salas,
onde ninguém a pudesse ver. A sua autoestima tinha dias, na sua maioria eram
cinzentos. Pelos seus olhos o mundo era um lugar estranho e ameaçador, assim
chegava o Inverno quando era tempo da Primavera; as manhãs eram madrugadas
irrespiráveis que perturbavam a noite, a poesia era uma espécie de inutilidade,
uma “extravagância de gente inútil”. O que importava era a técnica, o suspiro
útil que a natureza reconhece capaz de fazer crescer as cenouras e as batatas.
Apesar do elogio à terra, a sombra agreste dos tempos não é condescendente com
o perfume das Artes. O viço da vida exige disponibilidade e contemplação,
afectos e sonhos. Pela estrada dos anos, talvez, tenham ficado alguns lampejos
de beleza, mas não os suficientes para fazerem doutrina. A beleza que perdura é
a que alimentamos dentro de nós, quando a reconhecemos na metafísica dos
sentidos e nos entregamos ao melhor da existência. Uma vida com pressa
raramente concilia a força das águas com as margens do rio. Os pescadores, que
desesperam por um peixe, são a metáfora inútil para quem o tempo é, apenas,
para olhar as correntes das águas. Sob a força invisível das correntes
desenham-se outros encontros que misturam as margens e os caudais velozes, o
presente e o futuro, o desejado e o vivido.
Tudo
parecia correr bem, não havia trânsito, cheirava a café, o cheiro a torradas
inundava o bulício da tarde, as glicínias libertavam-se da clausura, havia o que
sempre houve, um lugar no mundo onde as pequenas coisas eram apenas as memórias
que resistiam à espessura das mãos. Depois vinham as legendas, as datas, o uso,
o local, os dedos de bebé, as caixas de música, os objectos com que se cresce,
os desenhos onde estão todos “os riscos com se faz uma flor”, o nome rodeado de
corações, as recordações do Dia do Pai pintadas por ti, as fotografias que me
ensinam quanto “crescer é a maior aventura do Homem”. Nessa tarde, ajeitaste-te
no meu colo, agarraste o meu pescoço, ficámos silenciosos a mexer nos papéis, a
revolver as fotos que tirámos juntos, principalmente, as que procuravas
interpretar o mundo sem palavras. Passámos a tarde mais bela do mundo, os teus
cabelos loiros ficavam presos aos meus lábios, punhas os meus óculos e
deixavas-te adormecer. “O tempo é um grande escultor” e nas dobras, onde se
esconde o inexplicável, é preciso dar tempo para que o escultor defina os
contornos que hão-de alimentar a tua curiosidade. “Vais explicar-me papá?”
António
Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
O Amor e a Liberdade.
A
morte de Mário Soares fez-me resgatar um texto que escrevi quando Maria Barroso
faleceu em 2015. Ela foi um bastião de
amor e de dedicação; foi, antes tudo, uma mulher de cultura, uma indefectível
amiga dos poetas e dos actores, uma voz incómoda mas respeitada. Todos lhe
reconhecemos um caminho próprio ao lado de Mário Soares. Tinha uma luz e um carisma
que não careciam de bengalas. Foi sempre protagonista da discrição, matriarca
da família e âncora dos afectos. O que mais me impressiona na sua longa vida,
foi o seu exemplo de paixão a um homem. Dedicou-lhe uma vida como se pode ler
nas cartas que lhe escreveu. Hoje, neste espaço, curvo-me perante o seu exemplo
de paixão. Deixo-vos uma carta de amor de Maria Barroso a Mário Soares. É uma
escolha pessoal, subjectiva, mas onde é possível ler o outro lado, o menos
visível, de uma mulher apaixonada e, assim, compreender melhor por que quis
casar-se com Mário Soares, a 22 de Fevereiro de 1949, quando este estava preso.
O amor vence quase tudo.
“Meu
Querido Amor Senti tanto a tua falta hoje – em quase 20 anos de casados é a
primeira vez que passamos separados esta noite. Separados materialmente, claro,
porque nunca, nunca deixaste o meu pensamento, meu Querido. Tivemos a D.
Eugénia e o marido [Joaquim Jacobetty Rosa] para jantar connosco. Comemos uma
canjinha e um pouco de peru, daquele de que eu cortei as fatias do peito para
te levar e que eu própria preparei. Portámo-nos todos à altura, embora sem
festas nem saúdes. Tu estavas bem presente no pensamento de todos nós – para
quê fazer saúdes? Foi um jantar simples, como qualquer outro. Teria sido, como
tem sido sempre, um jantar de festa se tu estivesses. O Pai esteve bem,
distraiu-se a conversar e por volta das 11 horas foi-se deitar. Ainda
apareceram os nossos afilhados para nos darem um abraço e trazerem um presente
à Isabel. Mas eu, meu querido, eu que não quero que ninguém me veja senão de
olhos enxutos e cheia de coragem, afastei-me um pouco por volta das 10 e 1/4,
10,30 e pensei em ti com uma intensidade tal que tinha a impressão de que o meu
coração pulsava em todo o meu corpo – era um bater tão forte que a minha cabeça
parecia uma caixa-de-ressonância. Pensei em ti com toda a força – passei as
minhas mãos ternamente pelos teus cabelos e fechei-te os olhos com um beijo tão
cheio do meu Amor – que tu deves ter sentido a minha presença junto de ti. Disseste-me
que às 10,30 adormecias e eu quis estar só nesse momento em que pensei que te
deitavas e adormecias. Para te acompanhar, para pensar que não estavas tão só
nesta noite que foi para nós sempre uma noite de família em que nunca nos
separámos. Foi tanta a intensidade com que pensei em ti, sozinha, que quase se
tornou palpável a tua presença junto de mim – as pancadas do meu coração eram
tão fortes que eu tinha a impressão de que sentia o teu próprio coração bater
com o meu. Acredita, meu Amor. Podem separar-nos, arrancar-te fisicamente de
junto de nós como o estão fazendo agora. Mas há uma coisa de que eu estou
segura e de que tu podes ter a certeza – eu estarei sempre contigo, meu
Querido! Sinto-me de tal modo identificada contigo, todos estes anos em que
caminhamos juntos estão tão repassados de Amor, de ternura, de compreensão, que
é impossível separarem-me de ti – eu estarei sempre onde tu estiveres. «Não há
machado que corte a raiz ao pensamento» diz um poema [de Carlos de Oliveira] e
é verdade! O pensamento atravessa as grades mais fortes, não conhece paredes
nem montanhas e vai para onde nós quisermos... Por isso podem as grades ser
fortes, as paredes espessas, as distâncias enormes que eu estarei presente onde
estiveres, sobretudo se te sentir só, como agora, injusta e incrivelmente só.
Não sei se conheces uns versos lindos de uma poetisa nossa amiga [Sophia de
Mello Breyner Andresen], que diz:
«Para
atravessar contigo o deserto do mundo Para enfrentarmos juntos o temor da morte
Para ver a verdade, para perder o medo Ao lado dos teus passos caminhei!».
Esses maravilhosos versos dizem bem o que eu te poderei dizer de uma maneira
mais desajeitada. Os beijos mais amigos dos teus Filhos, Pai e Tio Nobre.
Abraços, muitos abraços de toda a família e amigos. Para ti sempre toda a minha
ternura mais profunda e os beijos mais carinhosos. Sempre tua Maria de
Jesus"
Sem
este lado firme e apaixonado de Maria Barroso, talvez, Mário Soares tivesse
sido diferente, ainda que um combatente indomável pela liberdade. O amor não
faz milagres, mas ajuda quando tudo parece perdido.
António Vilhena
(Crónica publicada no Diário de Coimbra).
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