domingo, 29 de outubro de 2017

À porta do quiosque.




Era para ser uma simples conversa à porta do quiosque dos jornais, mas as palavras tensas trouxeram o ar pesado. Os primeiros instantes revelaram uma inquietude ilegível. As unhas descuidadas da mão direita deixaram-me de sobreaviso. A tarde instalara-se, acenderam as luzes e a nossa conversa continuou. Era preciso dar ouvidos, olhar nos olhos, permanecer sem pressa. Nestas circunstâncias é preciso empatia, é urgente que o outro sinta que nos disponibilizamos incondicionalmente, que sentimos as suas dores, que estamos disponíveis para ficarmos perto. Não marcámos encontro, não sabíamos um do outro há muito tempo, desde que frequentámos a Faculdade. O tempo quase apagou as feições do seu rosto, não fosse ter chamado pelo meu nome. A conversa podia não ter acontecido se não fosse esse acaso, e, provavelmente, passariam mais vinte anos sem nos encontrarmos. A história das amizades é, também, feita destes momentos improváveis, deste jogo de dados: Vou comprar o jornal aqui? Vou ler as “gordas”? Entro, não entro? Foi assim que tudo começou, a mão no ombro e um olá afectivo foram suficientes para rememorarmos tanta ausência. Em trinta segundos fiquei a saber onde vivia, o que fazia, que tinha filhos, que se dedicava a divulgar a palavra de Deus. Quase no fim, disse-me que me esperava na sua Igreja. Prometi-lhe que passaria lá um dia. Despedimo-nos como se fossemos vizinhos, mas senti que seriam necessários mais vinte anos para nos encontrarmos.
                                                                                                                                            

António Vilhena

Sem comentários:

Enviar um comentário