domingo, 27 de janeiro de 2019

Manifesto da contemplação.

Por que demoram tanto a dizer a verdade, a serem transparentes, a conjugarem as palavras com a vida, a reconhecerem que há má vontade e que há outras agendas que ocultam prioridades que não contemplam as pessoas?

Por que razão a hipocrisia é tão sinistra quando se trata de olhar os olhos dos que sofrem e precisam?

Por que fingem não ouvir os gritos que atravessam as paredes e estilhaçam os vidros duplos das janelas?

Por que são feitos de verniz os lábios que ofendem e insultam a dignidade, silenciando-se perante os apelos que atravessam as noites frias?

Por que falam sempre dos pobres os que regressam dos festins, bêbados e pançudos, e, às vezes, até falam de Deus, como se precisassem de certas palavras para adormecerem?

Por que acordam cedo os que dormem na rua e os senhores de poderes alados falam no altar da neve onde o verão parece ter nascido?

Por que precisam de renascer tantas vezes os que precisam de viver os anos que os tubarões vivem a dobrar?

Por que é preciso ser tolerante com quem é míope quando a miséria dorme à sua porta?

Por que nascem fardas e balas onde havia flores e escolas, onde havia cotovias e melros nos caminhos de terra fértil?

Por que fazem acreditar que a crosta terrestre tem dono, herdeiros e feitores das pedras?

Por que somam os dias para acrescentarem as estrelas ao seu património e asfixiarem o ar e as pastagens?

Ah! E as rosas que hão-de perfumar os corpos funestos como há milhares de anos. Ide ler a Ilíada de Homero, esse poema que inspirou Alexandre, e que lia todas as noites antes de adormecer. Ide estudar os heróis de Troia – os gregos e os troianos -, para aprenderem que a dor é universal e proporcional à soma da dor da alma e da carne.


António Vilhena

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