terça-feira, 29 de janeiro de 2019

JOAQUIM LOURENÇO: ESPALHA OS POETAS.

Joaquim Lourenço nasceu na vila da Chamusca - distrito de Santarém. Aprendeu desde criança quase todos os géneros musicais como instrumentista e nas peças de teatro escolar. Na Universidade de Coimbra estudou Sociologia e Psicologia. Mas a alma da música pegou-lhe na mão. Já dono da sua identidade decide cantar. Primeiro, o American Songbook - influenciado por Sinatra, Tony Bennett, Nat King Cole; depois, os clássicos da Música Portuguesa - como Simone de Oliveira, Paulo de Carvalho, Fernando Tordo, Carlos Mendes, Carlos do Carmo e outros. Em 2003 começou a bem sucedida aventura do Teatro Musical da Broadway e da Off-Broadway Nova Iorquina. Em 2009 estreia a Digressão Ary, O Poeta das Canções que ainda se mantem nas salas nacionais. Produz espectáculos e artistas nacionais internacionalmente. É autor de vários estudos sobre gestão cultural e internacionalização da arte e cultura portuguesas. Aqui ficam as respostas de Joaquim Lourenço.

1ª Assumes-te como autor, performer e produtor independente. Como consegues assumir tanta responsabilidade? Ou é uma forma de sobrevivência?
Faço-o por gosto e por sobrevivência. Por gosto de cada uma das actividades e para viver do que faço. Daqui a uma semana fará 10 anos que estreamos o Espectáculo Ary, O Poeta das Canções e isso só acontecerá, talvez, porque sou ao mesmo tempo cantor, arranjador, produtor, manager, assessor de imprensa, promotor e vendedor deste espectáculo. Só no ano passado contratei uma assistente de produção porque era necessário vender os discos nos espectáculos e estando a recuperar de uma ruptura total do tendão de Aquiles da perna direita (em consequência de uma queda de um palco, no Teatro do Cadaval) aconselharam-me a não conduzir muitas horas seguidas e a não fazer grandes esforços físicos. Reduzir ao mínimo os custos de produção foi uma das principais razões da sobrevivência e da longevidade desta Digressão Nacional.

2ª Os empresários do espetáculo praticamente desapareceram. As redes parecem estar viciadas. Como é possível programar as itinerâncias com tantos custos associados e poucos patrocinadores?
Fazendo uma só pessoa quase tudo. Acumulando funções. Vivendo com muito pouco dinheiro e sendo muito criterioso no investimento financeiro. Este Espectáculo tem hoje: um pianista, um contrabaixista, um baterista, um violinista, um saxofonista, um acordeonista, um guitarrista, uma bailarina, um cantor, um técnico de som, um técnico de luz, um técnico de vídeo, um designer e agora uma assistente de produção: 14 pessoas. Pago a todos estes intervenientes e ainda direitos de autor à Sociedade Portuguesa de Autores, licença à IGAC, refeições, despesas de deslocação, alojamento e muitas vezes a comunicação do espectáculo. Sempre que possível ainda doo pelo menos 1€ de cada bilhete vendido a uma instituição de trabalho relevante para a comunidade. A APAV (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima) é a instituição que mais vezes ajudamos. Quando uma Câmara Municipal compra este Espectáculo durmo as 7 horas de sono ‘de um justo’. Quando tenho de ‘ir à bilheteira’ não durmo quase nada e algumas vezes regresso a casa sem um tostão na algibeira. Tive de aprender a distribuir cartazes e flyers, a fazer marketing digital, a fazer parcerias com instituições locais e com a comunicação social e a gerir cada cêntimo gasto. Nunca tive um subsídio estatal ou de um organismo público. Consegui 2 vezes um patrocinador local para viabilizar o espectáculo em 2 cidades distintas. Um era meu amigo (uma empresa privada de Coimbra). O outro comprou 100 bilhetes para oferecer aos seus clientes (a Caixa de Crédito Agrícola do Cartaxo). Quem programa os auditórios ou os cine-teatros municipais é por norma alguém que escolhe e compra apenas performances denominadas de vanguarda. Quando lêem o nome Ary dos Santos ou ignoram quem foi ou acham que se trata de canções festivaleiras. Nos concelhos onde não há auditórios ou Cine-teatros e só espectáculos ao ar livre (certames de actividades económicas, festas populares, festas da Cidade, etc.) os Vereadores da Cultura acham que o espectáculo não é apropriado. Ou seja, ‘somos presos por ter cão e presos por não ter’. Resta-me, muitas vezes, pedir a cedência do Cine-teatro local para ‘ir à bilheteira’. Mas há muitos espaços que mesmo assim recusam a cedência (porque acham que não nos enquadramos na tal linha programática) ou pedem valores de aluguer inflacionados (por certo para inviabilizarem a realização). Posso enumerar vários de norte a sul. Parece não haver democracia cultural numa boa parte deste país. Tem sido um ‘caminho de pedras’, de insistência, de risco permanente mas de contínuo aguçar de engenho, de criatividade prática e invenção de soluções. É, mais que isso, é a paixão e o amor à Obra do Ary que ainda me faz aqui estar. 


3ª Ary dos Santos é o teu novo desafio. Achas que o Ary dos Santos mudou o Joaquim Lourenço?
O Ary é um caso raro. Talvez único. Um Poeta que decidiu escrever para a música ligeira para que os seus textos fossem conhecidos por toda a gente e não esquecidos no pó da prateleira lá de casa ou das bibliotecas. E, de facto, um país com quase metade da população analfabeta cantou de cor versos de fino recorte literário. Gente que nunca tinha aberto um livro de poesia (ou qualquer outro) ‘cantou na banheira’ poesia pura! O mais irónico e inquietante de tudo é que 50 anos depois, hoje, quando um país inteiro já sabe ler, o que se ‘canta no banho’ são letras minimais e que de poéticas não parecem ter nada… Para responder objectivamente à tua pergunta acho que o Ary mostrou-me o que eu quero fazer quando esta Digressão terminar: cantar ou teatralizar mais Poetas portugueses. Mesmo que o público pareça desinteressado ou os decisores menosprezem a defesa da língua que ainda falam.

4ª Há muitos poetas que estão esquecidos embora sejam imprescindíveis. Que outro poeta gostarias de levar ao palco?
Quase todos. A tua Natália, o Eugénio de Andrade, o Mário de Cesariny, a Sophia, o Ruy Belo, o Mário de Sá Carneiro (que parece tão fácil a sua dramatização), o José Régio. Isto só para falar dos do século XX. Depois há muito que gostava de juntar o Camões e o Pessoa no mesmo Espectáculo sob a temática da épica portuguesa. Até os Poetas de Coimbra se podem juntar num espectáculo, António. O Camilo Pessanha, o António Nobre, o Torga, o Manuel Alegre… Quero ainda musicar alguns poemas do nosso imaginário colectivo, sendo mais fácil fazê-lo aos formalmente mais rígidos, como os sonetos. Ao mesmo tempo tenho recebido alguns convites para dar voz a alguns textos poéticos especialmente durante lançamentos de livros. Aconteceu isso há algum tempo, na Casa do Alentejo em Lisboa, com a obra de um escritor premiado. O meu pianista acompanhou-me em 6 poemas ditos, musicamos e cantei outros 2 e o resultado foi muito aplaudido. Faço-o enquanto actor mais do que enquanto diseur, inspirado que sou no Mário Viegas. Não sei se imediatamente a seguir à Digressão do Ary, mas juntarei no mesmo espectáculo os grandes Poetas portugueses, do Camões aos contemporâneos, dramatizando/representando os seus poemas mais representativos com actores/bailarinos e com músicos que tocarão uma banda sonora em tempo real ao mesmo tempo que imagens videográficas interagirão com a performance. O desafio é encontrar nos poemas um fio condutor que sirva uma história, uma narrativa e que facilite uma dramaturgia. Provisoriamente dou o nome de Poetas do Meu País a este Espectáculo.
5ª O que te falta fazer?
Para já conseguir levar o Ary aos sítios onde ainda não consegui ir. E internacionaliza-lo. Falta-me fazer uma itinerância pelos Mosteiros, Conventos e Castelos de Portugal cantando versões contemporâneas dos clássicos da música portuguesa. Quero muito com isto juntar património imaterial (neste caso as canções históricas da música portuguesa) ao património material (monumentos e edifícios de interesse histórico e público). Tenho ainda de conseguir despertar nas gerações mais novas o interesse e o amor pelo legado cultural português. O amor ao que de melhor se escreveu e compôs antes de nós. Para além disso falta-me fazer tudo.


Entrevista: António Vilhena e Angel Machado.

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