sexta-feira, 15 de março de 2019

"GENÉTICA PARA TODOS"



A Genética que aprendi na Universidade deixou-me grandes ensinamentos, principalmente, porque aprendi, à custa da cadeira de Genética, que “o mais importante” era descender de alguma dinastia ou ter um nome sonante que tivesse correspondência nalguma das Faculdades. Vem isto a propósito do livro “Genética Para Todos”, de Heloísa G. Santos e André Dias Pereira, editado pela Gradiva. Como se escreve na capa do livro, esta obra viaja de Mendel à Revolução Genómica do Século XXI: a prática, a ética, as leis e a sociedade. Não há muitos anos a ciência exibia a descoberta da dupla hélice de DNA de Watson e Crick, em 1953, tendo recebido o Prémio Nobel de Medicina e Fisiologia (1962). Esta descoberta foi inspiradora para a humanidade que deixou marcas indeléveis em poetas que glosaram o feito. Vitorino Nemésio escreve: I - Afinal sou assim, infeliz e volúvel, // Porque a minha alma guarda uma ordem diversa // De pulsões celulares ao longo do eixo: // Decifre-me quem saiba – que dispersa, // Com o nome de A.D.N. aqui na cruz a deixo //   II – Nervo a pavor, fonte renal de rijo, // Cor dos meus olhos, estatura, gosto, // Quanto me importo, ó Deus, quanto me aflijo, // Tudo A.D.N. inscreve no meu rosto. (Obras Completas, vol. II, Poesia, 1971).

“Genética Para Todos” é um livro pertinente, surge quando se colocam à sociedade desafios que o conhecimento científico traz consigo, questões éticas que prometem alterar os paradigmas até agora existentes. O estudo da sequência do genoma humano, em boa parte motivado pela descoberta de Waston e Crick, foi uma das mais poéticas incursões da ciência na vida humana. Os receios de fanáticos religiosos e de políticos não impediu que mais de cinco mil cientistas tivessem cartografado o genoma humano. A viagem ainda estava no princípio. A descoberta implicava riscos e o Prémio Nobel, John Soulston, chamou a atenção para os problemas éticos que se colocam à Ciência e à humanidade: "Ao longo dos anos, a ética na ciência tem diminuído. Este facto tem a ver com os poderosos interesses económicos e políticos em jogo” (2002). Perante os grandes desafios que o desenvolvimento da ciência nos coloca, cresce na comunidade científica um clamor que apela a uma maior ponderação ética. Em 1983, François Mitterrand, antecipou esta realidade ao criar na Europa a Comissão Nacional de Bioética.  O presidente da Comissão Nacional de Bioética, Jean Bernard, foi bem claro: “a honra da medicina, e também, da sua dificuldade, é a aliança entre o dever da ciência e o dever humanitário. A nossa tarefa é favorecer esta aliança” (1991).

Quais as “implicações jurídicas do conhecimento do genoma humano”? Eis a pergunta que o Professor André Dias Pereira faz, recuperando o título de um estudo visionário de Guilherme de Oliveira, em 1991. Os contornos da revolução científica e tecnológica tem tanto de estimulante como de assustador. No futuro o conceito de “humano” pode não ter nada a ver com aquilo que hoje conhecemos. Talvez o futuro da vida nos próximos milhares de anos esteja nas mãos do que hoje se considera a Revolução GNR (Genética, Nanotecnologia e Robótica). Fukuyama é um pouco pessimista: “O mundo pós-humano pode não ser livre, igual, próspero e propiciador de cuidado e compaixão” (pg. 102), não hesitando em alertar para os perigos que ameaçam a humanidade se não “se abrir os olhos e evitar que o Homem, se torne escravo de um inevitável processo tecnológico que não serve fins humanos”. Não é impunemente que cada vez mais se fala de Eugenia, com má memória, na Alemanha. 

Já imaginou que com base no conhecimento do seu genoma pode não conseguir comprar uma casa, ter acesso ao crédito, arranjar emprego ou fazer um seguro de vida? Apesar da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (2005) que estabelece, no seu artº 11, a “Não descriminação e não estigmatização” de nenhum indivíduo ou grupo. Em Portugal, a Constituição da República consagra no artº13/2 que “ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão do seu património genético (pg. 142). Talvez a ficção científica espreite a realidade ao virar da esquina. Escolher a cor dos olhos dos filhos, o sexo ou a cor da pele pode estar ao alcance de qualquer um dentro de poucos anos. A importância da descoberta de Watson e Crick é indiscutível, mas trouxe novos desafios à humanidade. “Genética Para Todos” é um livro indispensável que proporciona uma visão pertinente sobre a ética e o inevitável progresso científico.


António Vilhena



(Crónica publicada no Diário de Coimbra).

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